Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)
Publicado em 10/04/2013
Para que essa prova seja dispensada, é preciso mudar a avaliação realizada nas escolas
O máximo a que um jovem nascido em favela poderia aspirar seria um curso técnico. Para ele escolheram o curso de eletricista. Detestava as aulas, mas decorava conteúdos que lhe asseguraram o exercício de uma profissão. No trabalho, conseguiu autonomia financeira para continuar a estudar. E tudo o conduzia para uma vida de engenheiro, quando quis ser professor.
Durante a passagem pela escola do magistério, encontrou refúgio na biblioteca, onde teve acesso a obras de pedagogos de que os seus professores não falavam. Para que lhe dessem um diploma, decorou conteúdos dos pedagogos oficiais. Descartada a obrigação, viu-se livre para realizar utopias.
Foi muito mais alto o preço de outras liberdades. Forçado a cumprir serviço militar, foi colocado num quartel de infantaria. Portugal tinha três frentes de guerra em África. Alguém, talvez sabendo das suas andanças de ativista contra a ditadura, decidiu que um professor estrábico deveria ser. atirador. Durante a instrução de tiro, não conseguia acertar nos alvos. Chegado à África, seria um alvo fácil. Que lhe restava? Desertar, como fizeram muitos companheiros de armas? Mas não poderia prever quando tempo o tenebroso regime se manteria, poderia nunca mais voltar ao seu país. Decidiu aceitar o desafio de ficar e encontrar algum modo de se libertar daquela situação. Sujeitou-se à decoreba de tipos de armas, de calibres, do alcance das balas, de como matar. Com excelentes desempenhos nos testes, escapou ao africano e fatal destino. Mas foi enorme o preço pago por um pacifista, para alcançar a liberdade.
Após participar na revolução que restituiu a liberdade ao seu país, decidiu fazer um curso universitário. Mais uma vez, gastou insanas horas a decorar conteúdo. Conseguido o acesso à faculdade, mais uma vez, livrou-se da tralha cognitiva, que foi o seu passaporte para a liberdade de aprender.
Esta é uma história comum a tantas outras, feitas de destinos desviados de rotas desejadas, na sujeição a rituais absurdos como os vestibulares. Para que serve o vestibular, esse tão caro instrumento de darwinismo social? São tantos os gastos, em transporte de provas, em taxas, em viagens entre cidades, no pagamento a policiais e seguranças, a professores que elaboram as provas e àqueles que as aplicam e vigiam. sem conseguir evitar as fraudes. O filtro, que impede muitos jovens de realizar dons, não logra evitar que analfabetos funcionais entrem na Universidade (são cerca de 8%, segundo as últimas pesquisas). O vestibular só faz sentido no contexto de uma escola pública sucateada, que reproduz desigualdades sociais, inventa cotas compensatórias e limita o direito a aprender. Para que possa ser dispensado, será necessário que aconteça verdadeira avaliação nas escolas. Porém, há quem creia na infalibilidade de uma prova e quem confunda avaliação com classificação.
Eis o dilema: ensinar para o vestibular, ou educarmo-nos na vida? Se em países considerados de primeiro mundo não existe vestibular, por que se mantém esse anacronismo? Para alimentar a indústria dos cursinhos? Se o Brasil já produziu mais de um milhão de leis, uma a mais não fará diferença. O que impede que se publique uma extinguindo o vestibular?
* José Pacheco é educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)