NOTÍCIA
Entre problemas de diagnóstico e de falta de informação, a dislexia ainda é um assunto delicado para pais, escolas e para a própria comunidade científica
Uma das situações mais frustrantes para o professor é ter um aluno que apresenta dificuldades para aprender e não saber como ajudá-lo. Geralmente, pequenas melhoras no desempenho demoram e são conquistadas à custa de muito esforço. Silvana Chatagnier Perez, hoje coordenadora da escola Vila Alpha, em Alphaville (SP), sentia-se exatamente assim em 2000, quando atuava como docente em turmas de reforço e tinha uma aluna com graves problemas de aprendizagem. “Ela esquecia tudo depois de dois dias, e suas notas não passavam de 2,5”, conta.
O que chamava a atenção de Silvana é que quando ela lia as questões dos exercícios para a estudante, os resultados eram melhores. Nessa mesma época, a docente ficou sabendo, através de colegas, que haveria um simpósio internacional da Associação Brasileira de Dislexia (ABD). “Não havia recebido informação alguma sobre dislexia no magistério e na pedagogia. Conforme fui me inteirando sobre o assunto, percebi que o que acontecia com minha aluna era típico da dislexia”, relata. Silvana entendeu, então, que a estudante não possuía um problema que afetava sua capacidade intelectual – tratava-se de um distúrbio de aprendizagem. Por isso, uma vez feito o diagnóstico, medidas relativamente simples poderiam ajudar a menina a driblar as dificuldades de leitura e escrita.
Entre a suspeita e o encaminhamento médico, porém, existe um longo caminho. Em primeiro lugar, porque a dislexia é um distúrbio para o qual não há cura ou tratamento médico. O tratamento acontece através de um processo de aprendizagem, no qual o disléxico desenvolve meios de contornar as suas dificuldades. Por isso, a tendência é que os pais fiquem bastante temerosos e reticentes. “O professor nunca deve dizer a eles que acha que o aluno tem dislexia”, sugere Valéria de Andrade Cozzolino, professora e coordenadora do Colégio Albuquerque, da rede Pueri Domus. “Esse cuidado é fundamental para não substituir uma hipótese por algo que pode rotular o aluno”. O ideal, continua Valéria, é descrever o que se observou, apontando que, apesar de o aluno se esforçar, ele não consegue reter o conteúdo no dia seguinte. “O professor pode falar, então, que esse aluno sofre por não aprender, ou que, por tudo isso, parece ter um aprendizado diferente. Uma opção é passar tudo isso por meio de um relatório, para deixar os pais mais à vontade para decidir o que fazer”, indica.
No caso dos pais da aluna de Silvana, houve um agravante: a própria psicóloga da menina descartou a necessidade do encaminhamento médico (como veremos adiante, muitos profissionais recomendam que o problema não seja tratado). Diante do impasse, Silvana procurou a professora de sua aluna no turno regular. Por sorte, era uma colega com quem tinha proximidade para conversar e dar sugestões. “Pedi que ela lesse a próxima prova em voz alta para a menina”, conta. Com o procedimento, a estudante surpreendeu e tirou uma retumbante nota sete. Os pais decidiram encaminhar, então, a filha, que recebeu o diagnóstico de dislexia. Ela manteve o bom nível de desempenho e passou no vestibular.
Apesar do exemplo positivo, o conselho dos especialistas é claro: tanto pais como professores não devem se precipitar quando o assunto é dislexia. Isso porque diagnosticá-la é tarefa bastante complexa e o professor não tem, de fato, condições de ir muito além de uma suspeita. “Os exames são feitos por uma equipe multidisciplinar, que inclui fonoaudiólogo, psicopedagogo, neurologista, psicólogo e psiquiatra. A avaliação inclui uma bateria de testes que visam excluir outros problemas que poderiam causar a dificuldade na leitura e escrita, desde problemas visuais e auditivos até deficiência mental”, diz Abram Topczewski, neurologista do Hospital Albert Einstein e autor do livro Dislexia: como cuidar?.
A própria realização do exame não é simples, já que o Sistema Único de Saúde (SUS) não reconhece o problema, deixando os testes nas mãos de entidades privadas, que costumam cobrar preços proibitivos para muitas famílias. Uma alternativa é procurar a Associação Brasileira de Dislexia (ABD), que examina crianças carentes. Além disso, como se trata de um distúrbio de leitura e escrita, a dislexia só pode ser diagnosticada quando a linguagem oral e escrita já está bem desenvolvida, ou seja, dois anos após o início da alfabetização, quando o aluno está com oito anos. “Por isso, o professor tem um papel fundamental de observar os alunos e notar dificuldades que pareçam estar fora do normal”, diz Topczewski.
Questionamentos
O diagnóstico da dislexia foi criado em 1896. De lá para cá, foram acumuladas diversas evidências de sua origem orgânica, desde alterações anatômicas e funcionais no cérebro (observadas através de ressonância magnética) até evidências de transmissão genética ao longo das famílias. Mas nem toda a comunidade científica acredita que ela realmente exista. Maria Aparecida de Moysés, pediatra da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), tem se destacado como uma das maiores defensoras desse ponto de vista. “A dislexia não existe, ela é apenas o resultado da baixa qualidade do ensino e de escolas mal estruturadas”, afirma. Para os neurologistas, esse argumento não se sustenta na prática. “Também há disléxicos em famílias letradas e que frequentam excelentes escolas”, diz Topczewski.
O combate ao distúrbio faz parte de um movimento contra a medicalização, liderado pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, em parceria com Maria Aparecida. A tese central dos participantes é a de que os remédios colocam no sujeito o peso de questões sociais. Embora a dislexia não seja tratada com medicamento, ela também entra nesse questionamento – é comum que o disléxico apresente outros distúrbios, como déficit de atenção e hiperatividade, para os quais são usados medicamentos. O movimento sugere que a dislexia seja simplesmente ignorada, e não propõe nenhum tipo de tratamento.
A importância do professor nessa área também é questionada. “O docente não deve fazer triagem de alunos; deve focar na sua função pedagógica”, diz Carla Bianca Agnelucci, diretora do Conselho Regional de Psicologia (CRP). “Dificuldades de aprendizado devem ser tratadas apenas dentro da escola, sem a ajuda de profissionais de outras áreas”, diz ela, na contra-mão das várias escolas que têm se adaptado para receber o disléxico. Outra dúvida comum é se o diagnóstico é realmente necessário, ou se não daria para resolver o problema ajudando o aluno da mesma forma que se faz com outros alunos com dificuldade. A resposta depende, em primeiro lugar, do nível da dislexia. Em casos mais severos, o tratamento é, sim, imprescindível. “Cerca de 80% dos casos são tratáveis, inclusive em adultos”, diz Maria Inez Ocaña de Luca, psicóloga e membro da ABD. Nos casos mais leves, é possível que a pessoa consiga contornar o problema sem uma ajuda especial. “Ela abrirá mão, porém, de todo um conhecimento que existe hoje para ajudar o disléxico”, aponta Maria Inez.
Dislexia e sociedade
Desde 2000, quando a professora Silvana Perez ajudou a encaminhar sua aluna para diagnóstico, houve um aumento em termos de circulação de informações sobre o tema. Prova disso é que o poder legislativo tem registrado – em seus três níveis, municipal, estadual e federal – a proposição de diversos projetos de lei que estabelecem a oferta de exame e tratamento por parte do poder público. Alguns exemplos: neste ano, o deputado federal Manoel Júnior (PMDB/PB) introduziu o PL 3394/12; na Assembleia Estadual de Goiás, o deputado Luiz Carlos do Carmo (PMDB/GO) é autor de projeto semelhante, proposto também neste ano; um pouco mais antigo, o PL 712/05, de Adilson Amadeo, vereador por São Paulo, tramita na Câmara Municipal desde então.
O tema é tão complexo que nem a própria ABD não parece entusiasmada com a instituição de legislação específica para o tema. “Leis como a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) seriam suficientes para proteger o disléxico. Em Cingapura, não há legislação específica, mas o país oferece toda estrutura necessária para diagnóstico e tratamento”, afirma Ricardo Bandeira de Mello, advogado e presidente da ABD. Paralelo ao debate sobre a instituição dos projetos de lei está a existência de um buraco na outra ponta: a pouca experiência que as escolas têm com o assunto. “Orientei um colégio a fazer prova oral com o aluno disléxico, mas eles argumentaram que o Ministério da Educação não autorizava”, conta Maria Angela Nico, fonoaudióloga, psicopedagoga e membro da equipe de diagnóstico da ABD. “No MEC, fui informada de que a escolar tem autonomia para fazer isso”, desabafa.