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José Pacheco

Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)

Publicado em 26/01/2012

Diálogos de surdos

O estrago que a burocracia produz nas escolas

Diálogos de surdos

Enquanto aguardava que o gestor de uma escola me atendesse, percebi que ele falava ao telefone com um qualquer departamento de um qualquer patamar ministerial, e que rogava a compreensão de uma qualquer “doutora”. Num país onde os doutores são mais do que as mães e onde poucos serão aqueles que fizeram doutorado, o tratamento de “doutor” lisonjeia, ajuda. Porém, pelo que me pareceu, aquela “doutora” era lenta de raciocínio e o gestor daquela escola insistia num diálogo de surdos sem fim, do qual reproduzo um excerto, crente de que o leitor adivinhará aquilo que a “doutora” terá dito, no outro lado da linha.

“Doutora, tente compreender. Não poderei preencher o documento, porque ele não se adequa ao modo de organização desta escola. Senhora doutora, já lhe disse que não temos horários, nem disciplinas distribuídas por tempos letivos.”

“Sim, os nossos alunos trabalham todo o currículo, como qualquer outra escola. Mas não consigo enquadrar os professores nestas rubricas. Não posso utilizar o que a doutora chama de ‘crédito horário’, ou ‘disciplina de oferta’. Aqui, não temos disso.”

“É claro que os professores têm horário completo! Já lhe disse, doutora. Mas os professores não têm horário. Tente perceber: eu sei que esse despacho divide os tempos letivos por disciplina, mas nós não temos tempos letivos. A doutora diz-me que poderei usar de criatividade ao preencher o mapa, mas quem assume a responsabilidade sou eu, não é, doutora?”

“Não, doutora, não temos blocos horários. Já lhe disse duas vezes! (neste momento, um esgar de desespero percorreu a face do gestor e a sua voz endureceu). Como é que eu consigo? Diga-me, doutora! Não posso colocá-los em “grupos de recrutamento”. Eu sei que um professor do primeiro ciclo cumpre 25 horas letivas e que só há reduções para o segundo, terceiro ciclo, secundário e ensino especial. Mas, aqui, todos trabalham as mesmas horas.”

“E por que razão não pode ser assim? Está na lei? Mas poderá dizer-me por que está na lei? Por que está na lei, doutora? Diga-me, doutora!”
“Não! A doutora é quem está a fazer confusão, não sou eu. Nós não temos de fazer aquilo que as outras escolas fazem. Acho estranho que não seja contemplada a especificidade desta escola…”

Neste momento, o gestor olhou para o telefone, duas vezes carregou numa tecla de chamada, por duas vezes chamou a doutora (melhor dizendo, gritou). Mas a funcionária havia desligado. É enorme o estrago que a burocracia produz nas escolas. Se os professores já não eram produtores de currículo, serão reprodutores de formulários, papéis…

O mestre da teoria crítica (Henry Giroux) diz-nos que “o conceito de tempo nas escolas restringe o desenvolvimento de relacionamentos sociais e intelectuais saudáveis (.) com seus relacionamentos de trabalho hierárquicos, a rotina atua como um freio à participação e aos processos democráticos”. Mas a “doutora” nada entendeu, relativamente à gestão do tempo naquela escola. E nada quis entender quanto ao resto. Porque burocracia não rima com pedagogia. A burocracia na educação rima com maldição. É desperdício de tempo significativo em inúteis formalidades.

Um amigo, que, por motivos óbvios, manterei no anonimato, disse: “a gente senta a bunda numa cadeira da secretaria de Educação e vem uma pilha de administrativos que matam o teu sonho pedagógico. Ficas preso a papéis”. E finalizo com outra citação desse amigo, que permanecerá incógnito: “a educação brasileira está em grande parte nas mãos de tecnocratas conservadores e de proprietários de escolas que raramente sabem o que é educação”.

*José Pacheco é educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)

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