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Redundâncias

"Quando as escolas são coniventes com o fomento da boçalidade burocrática, os professores que nelas resistem desesperam." Leia a série de José Pacheco

Publicado em 10/09/2011

por Redação revista Educação



O meu neto é bem melhor ouvinte que os peixes do Padre Vieira. Crente de que me entenda, comunico num dialecto que só nós entendemos. Estranho linguarejar este de avô para neto, através do qual lhe conto histórias, sem receio de infantis perplexidades. Excepto quando me faz perguntas que adultos não fariam. Quando um neto insiste em perguntar se a escola que o espera será a dos seus sonhos, ou a travessia de um pesadelo, o que poderá um avô responder? Dirá ao neto que já fez essa pergunta duas ou três vezes? Dirá que não quer ser repetitivo, redundante?…



Mitigo o desconforto que de mim se apossa por estar sempre a falar do mesmo. É bem verdade que o faço! Vou-me repetindo, vezes sem fim, porque as crianças perguntam sempre, sempre, até à última pergunta com resposta. Para não mentir, desvio a conversa. Dou-lhe a conhecer realidades, sob a forma de apelos de professores anónimos:




Venha ver com os seus olhos, professor, venha ver! As turmas da manhã são as dos filhos dos papás. As da tarde são as dos maus alunos. Os melhores horários são dados aos amigos, ou faz-se valer a “casta” de professor mais antigo. Desculpe-me por falar somente de problemas, mas acho que preciso partilhar a indignação. Estou a escrever como falo, à medida que respiro, e estou a respirar muito depressa…




Quando as escolas são coniventes, ainda que por omissão, com o fomento da boçalidade burocrática, que as transformam em lugares de desperdício, os professores que nelas resistem desesperam. E escrevem para que eu lhes dê voz. Porque, desgraçadamente, os que ousam erguer vozes dissonantes, são alvo de chacota e de perseguições por parte dos seus próprios colegas de profissão.



O que fizeram dos professores? Por que se deixaram os professores atolar neste lodaçal? Quem impede que novos modos de fazer Escola invadam as escolas? Quem impõe a conspiração de silêncio que impede a denúncia do que se oculta por detrás da reprodução de práticas que geram ignorância e infelicidade?



O Alberoni disse que
“enquanto as instituições envelhecem e se tornam rígidas, novas forças pressionam lá do fundo para as destroçarem”

. Mas acrescentou que
“aquilo que nasce como impulso criativo e de liberdade, em poucas décadas torna-se dogma. E segue-se a época dos burocratas e do medo”.

Todos os estudos confirmam a falência de um modelo de Escola (dito tradicional), que já não cumpre os objectivos da modernidade que a engendrou. É evidente que as suas dinossáuricas práticas apenas se reproduzem por demissão dos que não colocam ideias novas nos espaços usurpados pelos preconceitos. O absurdo apenas se perpetua por acção dos que dele beneficiam. Nos actos da administração – que é quem continua a determinar os actos das escolas, relegando a pedagogia para um estatuto de menoridade – o obsoleto modelo de Escola de há cinquenta, ou de há cem anos, impera. Perdurará, enquanto as medidas de política forem paridas por titulares de cargos púbicos inaptos para as funções que desempenham.



Tentei explicar ao meu neto o modo como a administração domina as escolas e como as escolas aceitam a dominação e reproduzem vícios. Não consegui fazer-me entender. Ou ele não quis acreditar, tal a dimensão do absurdo.



Apenas com uma assinatura, qualquer manga-de-alpaca, numa qualquer recôndita secretaria, pode tomar uma decisão administrativa que atire por terra o mais coerente e promissor dos projectos educativos. Criaturas para quem a pedagogia é uma batata, controlam as escolas a partir de gabinetes, sem nada entenderem do que nelas se passa.



Criticam-me por eu ter esta “estranha mania de ter fé na vida” e de reiterar a minha fé dos professores que não perderam a fé. Mas eu sou assim, insistente, redundante. Acredito nos professores que o são. E incito-os, desafio-os, dirijo-lhes exortações, como faria o Padre Vieira. Mudar só parece impossível para quem nunca tentou. Eu sei que quando fazemos pontaria à perfeição, descobrimos que ela é um alvo móvel, mas surge um momento em que a porta se abre e deixa entrar o futuro.



Blá, blá, blá.? Repetições fúteis? Talvez. Mas insisto até à exaustão e para além da saturação. Até que se abram os olhos dos que não querem ver. Algum dia, a decência e o bom-senso hão-de assentar arraiais nas escolas, relegando o administrativo para uma função supletiva e complementar do pedagógico.



Enquanto houver directores que fecham os olhos a imoralidades e ilegalidades, mas que estão sempre disponíveis para complicar a vida de quem arrisca fazer diferente, repetir-me-ei, serei redundante. Enquanto houver professores que despendem mais tempo e energia a defenderem-se das armadilhas semeadas pela administração, do que a desenvolver o seu projecto, serei gongórico…



É paradoxal que aqueles a quem compete assegurar condições para um bom exercício da função de educar sejam os que maiores dificuldades colocam aos professores e às escolas que querem desenvolver verdadeiros projectos.






Consegues entender, Marcos? Nem eu! Mas continuarei repetindo o que venho dizendo, até que os peixes me escutem. Que me chamem redundante, que eu não me importo.




Leia também os outros textos publicados na série inédita e exclusiva do educador português José Pacheco:




Educar da cidadania





O pai do Watson





O Senhor Carlos





A divisão das orações





Bem pelo contrário!…





A caixinha dos segredos





O padre, o poeta e a professora de francês





Para os filhos dos filhos dos nossos filhos





Tempus fugit





Autor

Redação revista Educação


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