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Fronteiras e oportunidades

"Apenas apelo à atenção e à sensibilidade dos educadores. Peço-lhes que saibam identificar fronteiras" Leia aqui mais um texto de José Pacheco

Publicado em 10/09/2011

por Redação revista Educação



Sem premeditação, deixei o Marcos no cruzamento de três histórias. Foi o seu olhar sempre atento que me surpreendeu na encruzilhada narrativa. Se foi assim, assim teria de ser. Sem me dar à tarefa de as re-ligar, ou delas extrair uma moral comum, assim as deixo expostas a eventuais leituras.


Poderão dizer alguns especialistas que o estádio de desenvolvimento sócio-moral de uma criança com a idade do Marcos não comporta a compreensão profunda destas histórias. Mas que especialista será capaz de medir tal profundidade? E, se o Marcos me escuta sem pestanejar, é porque é tão profunda a sua compreensão, que entende que o seu avô está contando histórias a si próprio, enquanto as partilha com o seu neto.



A primeira aconteceu no fim dos anos sessenta, num tempo em que a juventude deste país tinha por curto horizonte uma guerra em África e fronteiras solidamente vigiadas. O João, futuro professor e protagonista comum das três histórias, era, ao tempo, um jovem quase a fazer vinte anos. Hesitava entre passar a fronteira e o ficar. Exilava-se cá dentro e por dentro. Habitava secretas fraternidades, que desenhavam futuros sem fronteiras nem medos. Eram fraternidades precárias, que sofriam a erosão das prisões da polícia política, desertificadas por sucessivas fugas para a aventura e para a morte.



Encontrou o Paulo, num cineclube e conversaram sobre o último filme do Bergman. O Paulo disse sentir-se sufocado pelo silêncio e pela indiferença reinantes no seu país de brandos costumes. Depois, foi cada qual para seu destino. O Paulo, sozinho. O João, seguido por um “cinzentão” da polícia política já seu conhecido de outros passeios.



Já passava da hora de jantar, quando o telefone tocou. Um irmão do Paulo perguntava se o João o havia visto nesse dia. Era o dia de o Paulo fazer dezoito anos. A festa-surpresa estava preparada, a mesa posta, mas o Paulo ainda não chegara a casa.



O João tratou de o sossegar. Eram nove horas da noite. Estivera com o Paulo até às oito horas. No caminho entre o cinema e a casa não gastaria mais de meia hora. Mas deveria ter-se encontrado com amigos. Estaria a comemorar.



Na manhã seguinte, o João passou pela casa do amigo, para lhe dar uns “parabéns atrasados”. A família estava ausente. Só a irmã mais nova o atendeu. Olhos chorosos, sem dizer uma só palavra, abriu a porta e, como era habitual, conduziu-o até ao quarto do Paulo. Em cima da cama, estava um poema de despedida. Na certidão de óbito, o médico registou a hora exacta do suicídio: “vinte horas e trinta minutos”.



No último ano dessa fatídica década, muitos amigos do João optaram por transpor a fronteira a caminho do exílio. Outros passaram a última das fronteiras: a superfície de um rio, ou o mergulhar no ácido das drogas pesadas. Era o que estava prestes a suceder com o Pedro, quando o João o encontrou, caído na cave de um bar.



Exangue, com um olhar manso, implorou ao João que lhe injectasse a droga nas massacradas veias. Em desespero, o João fez a seringa em pedaços. E implorou:




Pedro, pára enquanto é tempo! E deixa andar o barco. Um dia, ele há-de encalhar.




Chamou uma ambulância. Acompanhou o Pedro ao hospital. Mas, quando o deixou, estava quase certo de que a morte lhe iria levar mais um amigo.



A vida fê-los percorrer diferentes caminhos. O João passou à clandestinidade, na oposição ao regime ditatorial. E não mais voltou a ver o Pedro.



Decorridos vinte anos, viajou até Paris. Enquanto lia as inscrições nas paredes do Arco do Triunfo, entretinha os ouvidos em conversas de gentes de origem diversa, numa multiplicidade de idiomas que nem tentava decifrar. Subitamente, num português com sotaque francês, uma voz familiar fê-lo voltar-se:




Deixa andar o barco. Um dia, ele há-de encalhar .




Por detrás de um rosto burilado por muitos anos e duras experiências, reconheceu o olhar manso do seu amigo Pedro. Abraçaram-se em silêncio. Choraram em silêncio. Haverá palavra, numa qualquer língua, que faça sentido ser dita, quando se saboreia o resgate de uma vida?



E assim ficaram, sorrindo, longos e saborosos instantes. Depois, desceram a avenida, conversando, como se fora há vinte anos. O Pedro passara longos meses lutando contra a tentação do regresso à heroína, agarrado a uma frase que usava como âncora: D
eixa andar o barco. Um dia, ele há-de encalhar

. Andara por hospitais e clínicas de recuperação de toxicodependentes. Refizera a vida. Casara com uma cidadã francesa. Tinha dois filhos. Considerava-se uma pessoa feliz.



Quando regressou de férias, o João vinha mais atento a fronteiras e oportunidades. Mais ou menos por essa altura, Lucas já contava doze anos de idade. Foi transferido para a escola do professor João.



Na escola de onde viera, tinha passado seis anos no fundo da sala, sem sair da primeira classe. Estava rotulado de autismo, imaturidades e atrasos vários, como escrevera a psicóloga no relatório. Também enfermava de epilepsia e incontinência urinária.



Com persistência e trabalho de equipa, os professores da escola do João foram montando cerco a um Lucas relutante de contacto, ou sequer de ténues aproximações. Durante semanas, foi impossível passar a fronteira que bordejava o círculo vazio que o Lucas a todos impunha. Até que, certa manhã, o professor João se apercebeu do interesse do Lucas por uma revista que estava lendo, e deixou-a sobre a mesa. O Lucas logo a apanhou e foi sentar-se no canto da sala.



Absorvido pelo conteúdo da revista, não deu pela aproximação do professor, que se sentou ao seu lado, e o sossegou. Disse-lhe que poderia ficar com a revista, se a quisesse. Aquietado, o Lucas pousou o dedo indicador sobre a legenda da fotografia de um carro.




Queres saber o que está aí escrito?



O Lucas não respondeu. Mas o professor João leu a legenda:
Ford

.


O Lucas deslocou o dedo para a legenda da gravura ao lado.



Queres saber o que está aí escrito?



O Lucas acenou com a cabeça. E o professor disse:
Peugeot

.


De gravura em gravura, o João foi ditando ao Lucas:
Nissan, Renault, Volvo, Toyota

.



O Lucas, que, ao cabo de seis anos, nem o seu nome escrito conseguia reconhecer, aprendeu a ler e a escrever. em três meses. Pelo método global de palavras, como é de ver. Aprendeu a ler e a escrever em português, mas também em inglês, em francês, em alemão, em sueco. e até mesmo em japonês! .






Não se pense que eu defendo o espontâneo e o improviso na aprendizagem. Apenas apelo à atenção e à sensibilidade dos educadores. Peço-lhes que saibam identificar fronteiras. Mas que também saibam gerar e gerir oportunidades.





Leia aqui os outros textos já publicados na série inédita e exclusiva do educador português José Pacheco:




Conversões e resiliências





Tudo era possível





Herrar é umano





Olhares e modos de ver





In illo tempore





Gracias a la vida





Perfilados de medo





Entre dois fogos





Mais uma história da Ana





La porte-plume redevient oiseau





Redundâncias





Educar da cidadania





O pai do Watson





O Senhor Carlos





A divisão das orações





Bem pelo contrário!…





A caixinha dos segredos





O padre, o poeta e a professora de francês





Para os filhos dos filhos dos nossos filhos





Tempus fugit



Autor

Redação revista Educação


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