NOTÍCIA
Educação entrevistou o educador catalão Antoni Zabala, que fala sobre a restauração educacional na Espanha, o qual foi foi responsável, e ainda sobre as dificuldades brasileiras
Publicado em 13/02/2019
Ousadia, inteligência, formação densa e muita vontade de retirar o mofo do sistema educacional de seu país. A soma desses fatores rendeu ao educador, consultor e palestrante catalão Antoni Zabala a admiração dos espanhóis e o status de referência internacional na área. Formado em Filosofia e Ciências da Educação pela Universidade de Barcelona, ele preside, na mesma cidade, o Instituto de Recursos e Investigação para a Formação.
Seu maior feito foi liderar quatro reformas do ensino espanhol a partir de 1990, atualizando, com novos conceitos e competências, o sistema burocrático e conservador mantido desde o início da ditadura militar de cunho fascista do generalíssimo Francisco Franco, que durou do fim da Guerra Civil Espanhola, em 1939, até 1976, um ano depois da morte do ditador. Zabala visitou o Brasil algumas vezes. Na última delas, em outubro do ano passado, fez uma palestra na Escola da Vila do bairro paulistano do Butantã sobre o tema Construtivismo hoje: implicações para o ensino. Um dia antes de embarcar rumo ao Brasil, concedeu, de Barcelona, esta entrevista à revista Educação.
Leia também
Criador da Teoria das Inteligências Múltiplas quer aplicar novo projeto no Brasil
Ela abrigava uma série de mudanças profundas para professores, alunos e gestores de educação. A ponto de eu adotar uma imagem do esporte para estabelecer sua dimensão. Dizia que era como se uma comunidade esportiva – atletas, comissões técnicas, dirigentes e clubes – abandonasse totalmente o futebol e passasse a jogar basquete. A bola, o espaço, o sistema de pontos, as metas, os tempos, tudo passaria a ser diferente. Uma mudança sistêmica, que implicaria, logicamente, uma mudança cultural. E mudanças culturais consomem tempo. A primeira proposta de mudança era de caráter ideológico. Estava relacionada com o tipo de cidadão que o país desejava para o futuro. O desafio foi estabelecer novos roteiros de construção de conhecimentos, habilidades, valores, técnicas, atitudes e estratégias. Isso implica mudanças nos conteúdos de aprendizagem e nos currículos.
Esse dilema foi relativamente bem resolvido. Os currículos na Espanha contemplam conteúdos nacionais, regionais e os de cada escola. Este último abriga também as referências das cidades, vilas ou aldeias que abrigam as unidades escolares. Percebemos desde o início que eles deveriam ser flexíveis o suficiente para promover a fusão respeitando as diferenças culturais do país. A parte nacional deveria ser a menor das três, para ser possível privilegiar os aspectos culturais mais próximos e caros a cada aluno, relacionados à sua região, cidade e escola. A Espanha, como se sabe, é dividida em 17 comunidades com autonomia legislativa, competências executivas e importantes diferenças culturais.
Não posso dizer que sim – e é fácil entender os motivos. Fizemos quatro reformas a partir de 1990. A primeira delas, estrutural, foi o primeiro passo para amenizar os equívocos do projeto educacional da ditadura franquista. Depois, organizamos outras três de aprimoramento – e aqui, se me permitem, faço um alerta para que vocês, no Brasil, não sejam vítimas de um fato negativo vivido por nós. As três reformas seguintes geraram documentos de competências bem definidos, elaborados por educadores sérios, com propostas adequadas ao tempo de planejamento e à realidade econômica do país nas ocasiões. Havia uma ou outra diferença entre elas, mas o sentido de busca de uma educação mais abrangente era comum. Mas se os governos não disponibilizarem os recursos necessários às transformações, ao abandono do futebol em busca do basquete, como na metáfora, as reformas acabam por produzir resultados limitados. A verdade é que, na nossa experiência, jamais o sistema educacional espanhol contou com recursos, sejam eles públicos ou privados, e mobilização suficientes para implantar as mudanças de currículos e métodos didáticos e pedagógicos definidos em 1990. Com isso, as alterações nos conteúdos de aprendizagem, nas unidades escolares, foram sempre lentas – e ainda hoje infelizmente é assim. De forma completa, as mudanças se deram apenas em algumas escolas públicas e particulares privilegiadas. Por tudo isso, diria que, na totalidade, as mudanças previstas por nós ainda não chegaram a 20% das escolas.
Evidentemente. São as palavras certas: frustração e decepção. Estou convencido de que, no âmbito político, a própria sociedade espanhola ainda não se deu conta do alcance dos objetivos. O que se pretende é tão profundo que, sem a garantia de recursos para custear a formulação dos currículos, a preparação dos educadores para executá-los e os materiais e ferramentas de apoio, a transformação se torna impossível. Ficaria feliz se o relato dessa parte negativa de nossa experiência ajudasse vocês no Brasil a, pelo menos, se preparar para enfrentar esses problemas caso eles apareçam com intensidade. Das resistências culturais da sociedade a mudanças às lutas por recursos para todo o processo, há muito por fazer – e o tempo todo.
No Brasil, os formuladores da Base produziram documentos amparados, ao menos nos pontos principais, em propostas e caminhos didáticos e pedagógicos semelhantes aos propostos aqui na Espanha. Pelo que sei, há no Brasil, ao menos em tese, em registro, o compromisso de respeitar as peculiaridades e, mais profundamente, as diferenças regionais e municipais de um país tão grande. O que buscamos aqui, e acredito que os educadores brasileiros queiram o mesmo, é levar os ensinos fundamental e médio a um ponto em que as cadeiras tradicionais – física, história, matemática, química, gramática e outras – deixem de ter fim por si mesmas e adquiram competências para poder dar soluções aos principais problemas da vida. E eles não são problemas nos âmbitos escolares, acadêmicos e profissionais, e sim nos pessoais, interpessoais e sociais.
É uma mudança profunda porque, se pensamos nos quatro pilares da educação – aprender a saber, conviver, ser e fazer –, veremos que a educação, na maioria dos países do mundo, consegue dar conta, de forma satisfatória, apenas do primeiro deles, ou seja, do saber. As competências estabelecidas pela BNCC estão ligadas exatamente à necessidade imperiosa de desenvolver os outros três pilares, para que o brasileiro do futuro saiba definir com lucidez e propriedade seus valores, atividades e, sobretudo, escolhas para comprometimento.
O Brasil tem boas escolas particulares e também públicas. Tive oportunidade de conhecer algumas delas. Além das visitas às unidades, alguns colegas me detalharam projetos elogiáveis em vários pontos. Vocês possuem educadores capazes de dar curso competente à BNCC. Países populosos e com orçamentos apertados, como o Brasil, costumam ter dois problemas em serviços básicos com saúde e educação: distribuição e qualidade. No caso da educação brasileira, a questão da distribuição parece resolvida, pois vocês atingiram índices de universalização em quase todas as fases do ensino básico. Mas será que os educadores brasileiros públicos e privados estão preparados em escala aceitável a ponto de evitar assimetrias graves na qualidade de ensino na formação integral, dentro dos parâmetros de qualidade, dos cidadãos de que o Brasil precisará nos anos 2040, 2050 e 2060? É de se imaginar que, a exemplo do que ocorreu aqui na Espanha, eles precisarão de muito treinamento, o que implica, evidentemente, o aporte de recursos suficientes para os desafios presentes no projeto.
A primeira e mais importante lição vem exatamente da nossa frustração: a de que só é possível fazer algo bom em questões fundamentais, como educação e saúde, com recursos suficientes – e os governos e sociedades precisam sacrificar outros pontos em função destes. A União Europeia investe, na média, entre 6,5% e 7% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação, a depender do ano. A Espanha destina 5,5%. Eu aumentaria muito esse percentual, se possível chegaria a dez por cento ao menos nos próximos anos, para colocar em dia o atraso na implantação das reformas que mencionei. Além disso, há a necessidade de definir bem o destino do dinheiro.
O Brasil tem colocado cerca de 6% do PIB nos últimos anos em educação pública, mas os valores individuais acabam diluídos em função do alto número de alunos, escolas e professores. Há também o desafio de implantar, nos próximos anos, a BNCC, um processo ainda em estágio inicial. E a formação do professor que estará apto a enfrentar os novos desafios deverá ser implantada também nas universidades – e isso certamente exigirá alto investimento. Por tudo isso, o Brasil poderia fazer um esforço para aumentar bastante esse percentual. Se a decisão fosse minha, eu o dobraria (risos).
A resposta não é fácil. Não tenho dúvidas de que os brasileiros decidiram implantar as cotas determinados pela intenção nobre de reparar as injustiças sociais históricas. Mas penso que a melhor forma de um país universalizar a boa educação, inclusive na fase de graduação, é partir das características específicas de cada aluno para oferecer-lhe o melhor programa de apoio possível, que sempre será, a meu ver, os mais adaptados às suas características individuais e culturais, circunstâncias e carências. Acho que um modelo desses neutraliza a necessidade de cotas. Sou completamente contrário a sistemas educacionais que favorecem exclusivamente ricos e não atendem os menos favorecidos. Mas acho que o que deve ser fortalecido é o sistema educacional.
Jovem nordestina é protagonista de game que aborda o sertão baiano