NOTÍCIA
Uma leitura bem calibrada não nega fogo nem acarreta mortos – e pode desarmar a todos ou dar munição para grandes batalhas
Publicado em 11/02/2019
O livro pode e deve estar ao alcance de todas as mãos. Da mão da criança e daquele que experimenta alguma angústia. Da mão dos alunos, dos professores, de todos aqueles que querem aprender e ensinar.
Para ler um livro é preciso caprichar na pontaria. O alvo é uma coisa desconhecida, mas quem lê acerta sempre. Acerta quase sem querer. Por uma intuição despertada. Em casa, na escola e na biblioteca, aprendemos a lidar com essa arma.
A munição do livro vem em forma de letras. São pequenas, mas contundentes. Fique tranquilo, porém. Jamais fazem sangrar. O livro, em geral, não acarreta mortos. As palavras ferem por dentro, em silêncio. E ferem para nos curar de outras feridas. A da ignorância, por exemplo.
Nem todos os livros são iguais em seu poder e raio de ação. Há livros capazes de grandes batalhas e façanhas, não sejamos ingênuos. Livros podem destruir ou salvar civilizações. Na história, alguns livros foram o começo de grandes guerras, e outros deram início à reconstrução de países inteiros.
O livro serve para defender e atacar. Você escolhe. Não é perigoso tê-lo em casa. O livro (é o que dele se espera) promove mais diálogo do que duélogo. Ainda que muita gente solte os cachorros quando publica seus textos. E esses textos caninos mordem a alma.
As ambiguidades do livro como arma não devem nos assustar. Uma leitura bem calibrada não nega fogo.
O porte de livro é recomendado a todos os cidadãos. Nunca se sabe quando surgirá a oportunidade para sacar dele uma nova ideia ou uma emoção inusual.
A palavra “armário” remete ao lugar em que se guardavam as armas. Hoje guardamos roupas, documentos e outros segredos. Os livros que estão dentro do armário devem sair para as ruas. Quem leva um livro consigo não tem por que temer a vida. Nos livros encontramos os futuríveis, categoria que abarca possibilidades para além do tempo.
O livro é uma arma secreta, que se desvenda nas mãos dos leitores. E dos escritores. Affonso Romano de Sant’Anna publicou uma crônica, “Da minha janela vejo”, em que descreve três homens encostados no tapume de uma favela. Um deles tem uma arma nas mãos, e a está limpando com uma flanela. E “ele a faz girar no dedo como naqueles filmes de caubói que ele viu, que eu vi, que todos vimos”. Limpa a arma como alguém cuida do seu carro no fim de semana.
Mas uma arma não é um carro, e um carro não é um livro. O carro não foi feito para matar, embora com frequência atropele e mate. Inclusive o motorista. Já a arma foi feita para destruir o outro, ainda que possa ser também um instrumento suicida. O livro nos leva mais longe do que um carro. O livro é uma arma feita para transmitir ideias vivas.
O cronista vê algo mais. Vê pessoas que passam e olham para a arma do atirador em potencial. Outros moradores da favela passam e olham para a arma, como quem deparasse com um poste ou uma bicicleta. Uma criança vinda da escola olha para a arma “com o mesmo pasmo do filho olhando os objetos no escritório do pai engenheiro”.
Romano de Sant’Anna diz que seus olhos estão desarmados. Não é bem assim. Como um franco-atirador treinado pela observação atenta, analisa todos os movimentos dos personagens de sua crônica. Sua descrição do homem armado traz mais detalhes, e um prognóstico:
Olho o rapaz de calção e sua arma, como quem olha uma força da natureza, uma árvore. Uma árvore carnívora. Amanhã, ou hoje à noite, ele vai sair com sua arma como quem sai armado dos dentes do próprio cão. Talvez me encontre num sinal de trânsito ou numa rua escura e me abra a cabeça com a bala de sua fúria. Não terei tempo de explicar-lhe minha intimidade com ele e sua arma. Nem que planos tinha para a vida.
O livro é sempre mais valioso do que uma arma de fogo. Porque não é só o livro. É tudo o que ele representa. O livro poderia desarmar a todos. Livro e escola estão associados. A escola é o lugar do tempo livre para ler. Parafraseando Adélia Prado, eu leio um livro para ver se me livro.
Para ver se me livro de uma sociedade armada até os dentes. De uma sociedade com cenário de faroeste. De um país ainda mais violento. Para ver se me livro da descrença na educação.
Muita gente já folheou aqueles livros que interpretam sonhos. São livros de ficção onírica. É uma ciência inventada. Tem lá a sua lógica, no entanto. Num desses livros, diz-se que se você sonhar com disparos de uma arma de fogo perderá o emprego. Que se sonhar com pessoas armadas ao seu lado, poderá ser traído por supostos amigos.
Nesse mesmo livro, revela-se que se você sonhar com livros é porque conhecerá pessoas inteligentes. Que se sonhar que está lendo poesia, superará obstáculos. Se no sonho alguém estiver lendo em voz alta, haverá mudanças em breve. Sonhar com bibliotecas repletas de livros, sinal certo de boa sorte.
Outro dia, sonhei com uma rua em que todo mundo estava carregando um livro nas mãos. Vinham ao meu encontro. E sorriam.
*Gabriel Perissé é professor da PUC-RS, escritor e palestrante www.perisse.com.br
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