Artigos escritos por pesquisadores do laboratório de ciências para educação do Instituto Ayrton Senna (eduLab21)
Publicado em 17/12/2025
Entre ferramentas, livros e brincadeiras, o que o cotidiano de crianças nos mostra sobre interesses, escolhas e possibilidades
*Por Filip De Fruyt, Ana Carla Crispim e Gisele Alves | Na sua infância, alguém te perguntou o que queria ser quando crescesse? E, na adolescência, você se perguntava sobre o que gostava de fazer? Essas perguntas são comuns. É normal, e até saudável, que crianças e adolescentes naveguem por dúvidas, descobertas e mudanças. Afinal, interesses não aparecem de uma única vez. Eles podem mudar e se transformar ao longo da vida.
Falar sobre isso é importante porque descobrir interesses é um processo e leva tempo, e reconhecer isso ajuda a lidar com as dúvidas com menos pressão, sobretudo quando os primeiros momentos de decisão começam a surgir.
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Para visualizar esse processo, voltemos, em um exemplo fictício, para uma tarde qualquer em uma escola. Na atividade livre do 5º ano, materiais diversos estavam espalhados pela sala e os estudantes começaram a brincar com eles. Lucas, 10 anos, foi direto para uma bancada de ferramentas e, com o maior interesse, desmontou um rádio antigo. Sofia, também de 10 anos, abriu um livro de teatro infantil e rapidamente reuniu dois colegas para montar uma cena improvisada.
Essa é uma cena comum nas escolas, certo? Apesar de fictícia, essa história é reconhecível para qualquer educador ou educadora. Isso porque, quando há espaço para escolher, as crianças sinalizam aquilo que as engaja. Essas preferências, sejam elas montar, organizar, criar, ajudar, liderar, são justamente componentes do que chamamos de interesses que podem vir a ser interesses profissionais.

Foto: Shutterstock
Pela lente do modelo RIASEC, amplamente usado na literatura internacional, esses interesses se agrupam em seis domínios (Realista, Investigativo, Artístico, Social, Empreendedor e Convencional). A curiosidade de Lucas se aproxima do interesse Realista, ligado ao ‘mão na massa’, enquanto a iniciativa de Sofia se conecta a interesses Artísticos e Sociais, que envolvem criar, imaginar e colaborar.
Se, por acaso, as preferências incluíssem resolver problemas ou conduzir experimentos, elas se alinhariam com atividades Investigativas; se envolvessem negociar, liderar ou coordenar grupos, se relacionariam com atividades Empreendedoras; e, se estivessem mais relacionadas a organizar informações e lidar com detalhes, seriam interesses Convencionais.
Saber isso é importante porque nos revela duas informações: 1) podemos nos interessar por mais de um tipo de atividade e 2) interesses funcionam como motores de energia e curiosidade, oferecendo pistas valiosas sobre caminhos possíveis a explorar.
Evidências de uma pesquisa com dados de mais de 230 mil estudantes brasileiros revelaram que os interesses por diferentes atividades, medidos ainda na escola, já fornecem indícios consistentes de possíveis direções de interesses desde o ensino fundamental.
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De modo geral, foi encontrado que meninas tendem a se envolver mais com atividades sociais e criativas, enquanto meninos se aproximam de ações práticas e mecânicas. Essas diferenças foram encontradas desde o 5º ano escolar e se ampliaram ao longo da trajetória escolar. Isso sugere que interesses começam a se desenvolver desde cedo, tornando ainda mais importante ampliar repertórios e oportunidades de explorá-los também desde cedo.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ao enfatizar competências como autoconhecimento, projeto de vida e responsabilidade, oferece terreno fértil para que esses interesses sejam explorados com um olhar aberto para a diversidade e pluralidade.
E para que isso aconteça de forma significativa, é necessário que a escola crie condições reais para que todos experimentem diversas atividades, inclusive aquelas que tradicionalmente podem ser vistas como ‘mais de meninas’ ou ‘mais de meninos’.
No estudo também foi apontado que meninos e meninas costumam demonstrar interesse semelhante por temas ligados a empreendedorismo, liderança e organização de projetos. Isso sugere que, nesse campo, o interesse é distribuído de forma mais equilibrada, mas ainda assim reforçando a importância de oferecer oportunidades iguais para continuar desenvolvendo habilidades voltadas para essas atividades.
Quando o oferecimento dessas experiências, sejam elas oficinas, clubes, projetos colaborativos, atividades artísticas, laboratórios, rodas de conversa, é feito intencionalmente, e de forma sistemática ao longo da trajetória escolar, abrimos portas para que os estudantes reconheçam e explorem o que desperta interesse neles.
Nesses momentos, também contribuímos para desfazer visões estreitas sobre as profissões: por exemplo, enfermeiras cuidam de pacientes, mas também trabalham com tecnologias, relatórios e tomadas de decisão. E engenheiros não vivem apenas entre cálculos: frequentemente coordenam equipes, mediam conflitos e atuam de forma colaborativa.
Mostrar essa diversidade de tarefas ajuda crianças e adolescentes a compreender que carreiras são multifacetadas e que seus interesses podem se encaixar de maneiras que eles ainda não conhecem.
Essas evidências e conhecimentos nos contam que quando Sofia e Lucas chegarem à adolescência, é importante que eles tenham experimentado e identificado diferentes caminhos para construir seus projetos de vida, se baseando em estratégias de exploração e autoconhecimento, por exemplo.
Para isso, programas educacionais do governo, assim como programas de outras organizações da sociedade civil e iniciativas comunitárias podem contribuir oferecendo vivências que estimulam exploração, avaliação, autonomia e consciência sobre si e seus interesses.
Identificar e avaliar os próprios interesses, nesse sentido, não é apontar uma direção obrigatória, mas ampliar horizontes e apoiar o estudante a tomar decisões bem-informadas. Ao apoiar as curiosidades de crianças como Sofia e Lucas, sem limitar, rotular ou direcionar cedo demais, ajudamos a formar jovens que conseguem olhar para o futuro com repertório, confiança e protagonismo.
Porque, no fim das contas, orientar para o futuro não é dizer às crianças quem elas devem ser, é garantir que tenham condições de descobrir quem gostariam de se tornar.
*Ana Crispim é gerente de pesquisa do edulab21; Gisele Alves é gerente executiva do eduLab21, e Filip De Fruyt é professor e doutor da Universidade Ghent.
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