NOTÍCIA

Políticas Públicas

Autor

Laura Rachid

Publicado em 01/12/2025

Kátia Schweickardt: novo Ideb precisa incorporar parâmetros de combate à desigualdade e de promoção da equidade

Em entrevista à revista Educação, Secretária Nacional de Educação Básica (SEB) do MEC fala sobre Sistema Nacional de Educação, Compromisso Nacional Toda Matemática e outras políticas públicas

A importância das políticas públicas participativas e colaborativas se torna ainda mais significativa num país como o Brasil, de imensidão territorial, bem como carregado de variadas realidades, inclusive as desiguais, injustas e racistas. E é a partir dessa consciência que se desenvolvem, nesta entrevista exclusiva, as reflexões de Kátia Schweickardt, Secretária Nacional de Educação Básica (SEB) do Ministério da Educação. Kátia também contextualiza como o campo educacional tem encarado avaliações como o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e o que vem sendo atualizado — e o que ainda precisa ser — a partir de novas experiências e conhecimentos adquiridos com o tempo. “O Ideb precisa considerar que, quando a gente melhora, não podemos melhorar apenas na média; sempre para os mesmos”, ressalta.

Nascida no Rio de Janeiro, Kátia se coloca como amazônida e manauara por opção há mais de 34 anos. Tem graduação e mestrado pela Universidade Federal do Amazonas, sendo professora na mesma instituição. Já seu doutorado em Sociologia e Antropologia é pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi secretária Municipal de Meio Ambiente em Manaus (2013-2015) e Secretária Municipal de Educação de Manaus (2015 a 2020). Confira a entrevista.

Kátia Schweickardt

A pasta de que Kátia é secretária tem, entre os papéis, planejar e executar programas como o Pé-de-Meia, Criança Alfabetizada e Escolas em Tempo Integral (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

Há especialistas pedindo a atualização do Ideb e do Saeb. O que considera fundamental nesse novo processo e em que fase está?

Estamos encerrando um ciclo com o Ideb. Há uma determinação legal de que a gente precisa rever tanto a metodologia quanto os parâmetros que compõem esse indicador. Ele teve um papel importantíssimo. E nos últimos quase 20 anos (foi criado em 2007) nos ajudou, primeiro, a internalizar no campo da educação, principalmente na área pública brasileira, a importância de se fazer avaliação — tanto da aprendizagem como também do monitoramento do fluxo, como acompanhar frequência dos estudantes, a locação de professores, as disparidades que há entre as regiões brasileiras.

Tanto o Ideb quanto essa prática de fazermos avaliações contínuas a cada biênio, especialmente do 5º ano, 9º ano e 3º ano do ensino médio, foram muito importantes para que, ao final de cada etapa, os sistemas de ensino pudessem aprender a planejar ações em função de alguns resultados.

Ao longo desse tempo tivemos debates importantes que geraram o amadurecimento desse processo. Num primeiro momento, houve resistência, porque a ideia das pessoas é que se estava usando uma única régua para medir realidades muito diferentes. Isso é verdade. Talvez por isso o novo Ideb precise incorporar, principalmente, parâmetros de combate à desigualdade, de promoção da equidade. 

No Brasil, a gente sabe que os estudantes que apresentam um menor desempenho têm CPF, CEP, estão localizados em algumas regiões, em alguns bairros ou escolas inclusive das grandes cidades, têm cor, raça, etnia. Então, esse tipo de realidade nós já sabemos. 

O Ideb precisa considerar que, quando a gente melhora, não podemos melhorar apenas na média, tem de melhorar combatendo a desigualdade e não apenas sendo um promotor dessa desigualdade — sempre melhorando para os mesmos, para quem já parte de um lugar social diferenciado.

Essa mudança está próxima de acontecer?

Acho que estamos perto de chegar a um novo formato, mas essa conversa precisa ser feita com os representantes do Inep que estão, atualmente, com esse desafio junto a psicometristas, com quem desenvolve a fórmula ou as fórmulas para dar conta de traduzir para a sociedade como é que estamos aferindo a aprendizagem, considerando a garantia dos direitos de permanência, de valorização de diferentes conhecimentos, ao invés de ter uma régua única.

Também queremos reportar melhor no Censo: por exemplo, onde estão as crianças pretas? E as pardas, indígenas e quilombolas? Essas crianças têm professor? Esse professor está qualificado? Esse é o próximo salto que eu espero que o Saeb também dê, o de buscar, intencionalmente, o melhor resultado e o melhor desempenho para quem mais precisa. E como falei, isso tem CEP, tem CPF, tem cor, tem etnia; a gente sabe — não é verdade que é igual para todo mundo. 

Por mais que exista uma ideologia da meritocracia, vimos, com as cotas, que isso não é verdade. Começamos a virar o jogo no ensino superior com a política de cotas e precisamos saber que, embora ‘eu estudei’, ‘eu cheguei’, tem muita gente que chega sem estudar. Como diz Conceição Evaristo: e aqueles que já chegaram lá antes, quando nasceram? Nessa distopia, a educação é, talvez, a única política ou conjunto de políticas que pode dar uma resposta efetiva.

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Outro ponto importante é que desenvolvemos o padrão de aprendizagem para o programa Criança Alfabetizada, nota 743 no Saeb do 2º ano do ensino fundamental, mas essa nota não pode traduzir todo o processo de alfabetização. Então, aos poucos estamos começando a lidar melhor com o que significa ter um padrão e o que significa fazer avaliação de larga escala, para o quê ela se destina. E estamos também no processo de valorizar cada vez mais as avaliações formativas, que são aquelas desenvolvidas nas salas de aula ao longo do ciclo do período letivo. Nisso, os professores se apropriam cada vez mais dos resultados dessas avaliações formativas, porque são elas, e não aquela de larga escala, que garantem que a intervenção seja feita tão logo a avaliação seja realizada.

Ninguém está dizendo que processos educacionais são restritos a processos avaliativos. Acho que isso é uma redução que não faz o menor sentido e que acaba gerando até um debate meio frágil — quando se fica opondo avaliações a processos pedagógicos mais complexos. A educação realmente tem múltiplas dimensões e nós, aqui da Secretaria de Educação Básica, trabalhamos em cima de todas essas dimensões no sentido de apoiar o que é feito no chão das escolas.

Por que o Sistema Nacional de Educação (SNE) é visto como fundamental para o avanço educacional? E quais fatores e/ou cuidados que Secretarias de Educação devem considerar?

O grosso dos estudantes da educação básica brasileira está sob a guarda, sob a gestão, de estados e municípios. Nessa direção, o governo federal, pelo MEC, tem o papel importante de articular as políticas, de induzir, de apoiar tecnicamente, de financiar, para que os direitos de aprendizagem de crianças, adolescentes, jovens e adultos se efetivem de fato a partir dos sistemas subnacionais. Essa ação acaba tendo um caráter suplementar, uma vez que vem para organizar os papéis e dar materialidade a essa complementaridade entre os diferentes entes da federação — de modo que, independentemente da situação do município, do estado, da escola, o direito de aprendizagem do estudante seja garantido, ao mesmo tempo que a valorização dos profissionais de educação, seus direitos, também estejam ali resguardados.

Então, o Sistema Nacional de Educação, como uma lei, vem costurar essas interfaces, sendo muito importante. Se determinado município que tiver um déficit de atendimento num segmento ou etapa que já é prioritário, por exemplo, educação infantil na pré-escola, e não consegue garantir essa oferta por suas próprias condições, a partir do SNE o estado tem de apoiá-lo obrigatoriamente e o governo federal também. Quer dizer, não é apenas uma obrigação desse ente em si, mas o suporte, que não deixa de ser opcional, precisa estar acontecendo de modo integrado.

Um exemplo bom de como vai funcionar o Sistema é o que conseguimos efetivar a partir do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, que era um decreto e, em 03 de novembro deste ano, foi sancionado pelo presidente Lula como lei. 

O Compromisso é importante porque nasceu a partir do regime de colaboração entre União, estados e municípios, ou seja, juntos, desenhamos essa política. Não foi de cima para baixo, mas ouvindo as necessidades, as expectativas, as condições, as limitações e potencialidades dos diferentes entes e dos diferentes territórios brasileiros. E, a partir dessa escuta, foi feito um desenho que comportasse essas diferentes realidades.

Kátia Schweickardt

Escola e comunidade: “na maioria dos lugares, a única presença do Estado é uma portinha onde funciona a escola” (Foto: Roque de Sá/Agência Senado)

Não houve imposição, mas escuta para o desenho de uma nova política pública?

Nós não impusemos um modelo de alfabetização para o Brasil, único, definindo método, definindo regime de trabalho. O único pacto feito foi a partir da elaboração do Índice Criança Alfabetizada (padrão de aprendizagem definido pelo Inep junto com especialistas e professores alfabetizadores), em que pactuamos metas com estados e municípios, o que fez com que cada território desenhasse o seu plano de alfabetização territorial. E nele há ações de formação de professores, materiais complementares, estratégias de avaliação; tudo isso convergindo para buscar esse Índice, que é um direito das crianças ao final do 2º ano do fundamental de toda a educação básica.

Tenho insistido que não é só buscar resultado nessa engrenagem — que tenta ajeitar os diferentes entes da federação para a garantia de direitos de aprendizagem —, mas uma espécie de indicador do direito que aquelas crianças, adolescentes e jovens têm para a sua etapa de desenvolvimento da educação.

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Por meio do Sistema também pretendemos, por exemplo, articular o ensino superior com a educação básica: seja tanto na formação inicial quanto continuada dos professores, na política de educação infantil que está a cargo dos municípios, mas que muitos deles, sozinhos, não conseguem realizar se não houver também uma ação articulada, intencional, estratégica com o suporte dos governos estaduais e União. Então, o Sistema vai estabelecer regras de governança que garantam a participação de todas essas instâncias em diferentes níveis.

Podemos entender que o Sistema Nacional de Educação vai cuidar da governança e, consequentemente, das maneiras de como apoiar, definir orçamento, financiamento e instâncias de monitoramento e de avaliação. Levamos mais de 30 anos para termos o Sistema Nacional de Educação. Temos sistemas já consolidados, embora de natureza diferente. Eu não concordo com a afirmação de que o SNE é o ‘SUS da educação’. Não é verdade porque o Sistema Único de Saúde gera outros tipos de políticas, é outra coisa. O que temos de mais próximo talvez seja o Sistema Universal da Assistência Social, o SUAS. E o Sistema Nacional de Educação vai numa outra direção, até porque articula diferentes etapas da educação infantil até o final da pós-graduação de modo a enfrentar também as desigualdades, que ficarão muito evidentes a partir de uma governança colaborativa para políticas educacionais.

Após serem escutados professores de matemática, o Compromisso Nacional Toda Matemática acaba de ser lançado. Quais as expectativas?

Escutamos mais de 57 mil professores de matemática no Brasil de diferentes etapas. Essa escuta foi interessante porque boa parte relata dificuldades metodológicas para ensinar matemática, especialmente para crianças. O que é evidente, já que os professores generalistas são os licenciados nas pedagogias, são os professores da educação infantil, do fundamental 1. Eles acabam tendo na formação inicial uma carga horária pequena para a didática da matemática com crianças e uma aproximação maior com a formação mais propedêutica, universalista, tendo uma formação de caráter mais filosófico — o que é importante para o desenvolvimento do pensamento crítico, mas entendo que devemos adotar para a formação inicial um pouco do pensamento lógico e estratégias de ensino e aprendizagem específicas, principalmente para crianças.

As escutas nos remetem a ter de dialogar muito mais com as licenciaturas, com os cursos que formam os professores porque, na verdade, o licenciado em matemática stricto sensu acaba sendo um professor que vai lidar com as crianças a partir do 6º ano. Até o 5º ano, são poucas as escolas com professor de matemática formado em matemática e formado para ensinar crianças. 

O fato é que, se os professores não estão bem formados, não conseguirão fazer uma boa conexão e a gente acaba ficando com uma alfabetização matemática mais precária, gerando desdobramentos e piorando o desempenho dos estudantes ao chegarem ao ensino médio. 

Hoje, nossos estudantes de 17 anos concluem o 3º ano do ensino médio com uma média em torno de 3.4 em matemática, sendo a nota máxima, 10. Ou seja, o estudante não conseguiu se apropriar de 70% de todo o conteúdo da matemática ao longo da educação básica. São muitas as lacunas. E todas as ações têm um desenho de governança participativa, do jeito como nós fizemos no Criança Alfabetizada, com a participação da União, estados e municípios.

Quais os outros projetos desenvolvidos pela Secretaria de Educação Básica?

Também passamos a desenvolver projetos que relacionem escola e comunidade, porque, na maioria dos lugares, a única presença do Estado é uma portinha onde funciona a escola. Então, a escola tem um papel fundamental não só para a garantia desses direitos de aprendizagem. Ela tem um papel quase como de liderança no território para revelar potências e fazer com que familiares também sejam formados pela escola e assim garantem-se os direitos das crianças, dos adolescentes e dos jovens. Temos, então, o Proec, Programa Escola e Comunidade.

Historicamente, há regiões do Brasil como o Norte e o Nordeste que têm potências, mas que não consideradas como a elite da produção do conhecimento; como também temos questões étnico-raciais muito sérias que se reproduzem, sejam nos materiais, sejam na nossa subjetividade, no modo da gente de pensar, principalmente quando temos dificuldade de entender que o Brasil não é cordial, como dizia Sérgio Buarque de Holanda. O Brasil é um país violento e racista. E a gente só vai deixar de ser quando assumirmos isso como um imperativo e trabalharmos, intencionalmente, para a superação.

Fato é que temos de fazer esse trabalho, esse investimento em todas as nossas políticas. A sociedade está esperando por isso e temos esse compromisso aqui na Secretaria Nacional de Educação Básica em relação a todas as nossas ações, como nos programas Escolas em Tempo Integral, Escolas das Adolescências, Política Nacional do Ensino Médio, Escolas Conectadas e, sobretudo, na política que para nós é tão importante, garantidora de tantos direitos da juventude, que é o Pé-de-Meia.

Da criação das primeiras Reservas Extrativistas na Amazônia (visando sua tese de doutorado) aos tempos atuais, o que essas reservas e pessoas ali envolvidas contam/mostram sobre os Brasis?

Primeiro, desmistificam a ideia de que elas são vítimas. Na aceleração do processo de mudanças climáticas, tínhamos uma meta de não aumentar um grau e meio até 2050. Só que não estamos conseguindo cumpri-la e isso se deve a uma escolha que a nossa espécie fez para um modelo de desenvolvimento que nega o modo de vida das pessoas que vivem nesses territórios.

Então, a primeira grande contribuição que as reservas extrativistas e os movimentos de seringueiros — que deram origem a esses territórios protegidos de uso sustentável — nos deram foi revelar ao mundo que existe um modo de vida que pode, sim, mostrar um caminho diferente para a possibilidade da nossa sobrevivência no planeta. Essas pessoas tiveram de disputar isso com outros modelos.

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É importante saber que o movimento dos seringueiros nasce de dentro do movimento dos trabalhadores rurais. E o movimento dos trabalhadores rurais, movimento dos sem-terra, que é um movimento importantíssimo, inclusive para a garantia de direitos da democracia no Brasil, tinha como titulação de terras individuais dos lotes os projetos de assentamento. O que o movimento seringueiro traz? Que o seu modo de vida não é possível em lotes individuais, porque várias áreas são de uso comum. Então, o que eles vão pleitear, à semelhança das terras indígenas, é a demarcação de terras de uso coletivo, de uso comum. Isso é uma novidade, vai ser um grande desafio. Vão tensionar a região, porque vão dividir o movimento do campo para o movimento de seringueiros, mas é o que eles vão chamar de reforma agrária da Amazônia.

Inclusive, a gente vem patinando no sentido de reconhecer o que eles podem nos ensinar, também no campo da educação, em que precisamos expandir a noção de saber, abrir as fronteiras da formação de professores para que essas pessoas se vejam como protagonistas também dos seus processos de aprendizagem.

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