Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)
Publicado em 27/10/2025
O sistema estava preso no passado. Ainda assim, num tempo em que eu já estava prestes a me retirar, muita gente me pediu ajuda
Ourique, 24 de junho de 2045 | Longe da pátria, nos braços da mátria brasileira, bateu a saudade das noites de São João do Porto. Em viagem pelo Alentejo, faço uma pausa recuperadora de energia, para poder chegar a Tavira, à casa do filho professor. Perto de Ourique, fui em romagem ao Castro da Cola. Foi lá que, nos idos de 90, me interpelaram:
“Você é um lírico, um romântico… um utópico.”
Saibam (dizia-se ‘sabei’, no modo imperativo de outros tempos…) que, ao longo de uma vida de mais de 90 anos, sempre me consideraram como uma espécie de aprendiz de utopias. O certo é que partirei deste mundo tão utópico quanto pude ser. E tão ou mais utópico do que quando tinha 20 anos.
No período renascentista, utopia era quase sinônimo de protesto. Múltiplas utopias habitavam o reino da fantasia e da ficção científica. Shakespeare glosou-as na peça The tempest. E no século 19, as percursoras tentativas de Fourier e Owen visaram passar ao real o ideal de Morus ou de Campanela.
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Nos idos de 25, eu continuava a pugnar por um repetidamente prometido ‘futuro da educação’, que demorava a chegar. O sistema estava preso no passado. Há 20 anos, as redes sociais continuavam a dar notícia do descalabro:
“(…) Fizeram de nós meros funcionários e das escolas meras repartições públicas de ensino de massas, transformadas em verdadeiras fábricas de papel!
Quem matou a escola pública? Os problemas disciplinares aumentaram e os professores lidam diariamente com atitudes disfuncionais dentro e fora da sala de aula; quanto às aprendizagens, talvez tenha chegado a hora de chamar as coisas pelos seus nomes.
Os miúdos do sétimo ano parecem ter saído diretamente do primeiro ciclo e muito grave é observar alunos do nono ano de escolaridade com atitudes e conhecimentos de sétimo. São graves e preocupantes as lacunas, os problemas, o desconhecimento, a imaturidade, a incompetência nos mais variados domínios (…) a situação parece ser verdadeiramente calamitosa.
Os filhos da pandemia não escrevem, não leem, não compreendem, não interpretam, não pensam. O desinteresse pelos conteúdos curriculares e a alienação pelo conhecimento em geral são perigosamente alarmantes. Retirem-lhes as redes sociais e ficaremos perante seres desprovidos de qualquer interesse.
Se antes dos confinamentos o vício da tecnologia já era preocupante, estes comportamentos de adição pioraram e nada voltará a ser como antes”.
“Nada voltará a ser como dantes”…
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Crônica Rubem Alves | Vale a pena enfiar algo goela abaixo do educando?
Inovação também é valorizar quem ensina
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Infelizmente, o ‘dantes’ causador desse descalabro manter-se-ia, ainda por vários anos. Na internet, na televisão, nos jornais, a mídia gostaria de ver ‘o homem morder o cão’, mas mantinha-se na divulgação do que de pior acontecia no mundo da educação: escândalos, ou devaneios de ‘especialistas’. Urgia um debate público fundamentado. Mas, o ministério fugia do debate sério e os meus companheiros das ciências da educação andavam distraídos.
Num tempo em que eu já estava prestes a me retirar, muita gente me pediu ajuda. Eram secretários de Educação, diretores de agrupamentos e de escolas, famílias, educadores, comunidades. Eram pessoas atentas à necessidade de mudança e disponíveis para aprender a fazer diferente. Restaria agir no chão da escola, desobedecer a regulamentos, para cumprir a lei.
Decidi convidar gente para o fazer. Desse ‘movimento’ vos darei notícia. E daqueles educadores que o protagonizaram entre os idos de 25 e os alvores da ‘idade da educação’ — finalmente, ei-la que chegou, para os filhos dos filhos dos nossos filhos, para as crianças e jovens vindouros.
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