NOTÍCIA
Recém-lançada, Política Nacional Integrada da Primeira Infância reunirá dados de matrícula, vacinação, benefícios sociais e outras informações, transformando a caderneta em instrumento abrangente e intersetorial — desafio é torná-la realidade
O Brasil ganhou em agosto deste ano uma política pública para valorizar a primeira infância e coordenar todas as ações voltadas para essa fase da vida, que vai do nascimento aos seis anos de idade. A elaboração da Política Nacional Integrada da Primeira Infância (PNIPI) foi feita com base em conhecimento científico acumulado sobre essa faixa etária e contou com a participação da sociedade civil. A partir de agora, o desafio nacional é transformar o decreto em realidade.
A primeira infância é a etapa de maior e mais potente desenvolvimento do cérebro humano. As neurociências indicam que é quando o cérebro forma até um milhão de conexões por segundo, consolidando 90% de sua estrutura e determinando trajetórias de saúde e aprendizado para toda a vida. Também os estudos de economia apontam que é uma fase crucial. O economista James Heckman, vencedor do Prêmio Nobel no ano 2000, demonstrou que a cada um dólar investido nas crianças da primeira infância, a sociedade recebe de volta cerca de sete dólares. Este retorno é atribuído a um conjunto de fatores, como a redução de gastos com saúde e com a criminalidade.
Até agora, a criança é vista em ‘fatias’. Com a chegada da PNIPI, isso mudará (Foto: Shutterstock)
Embora a ciência na área seja consensual, a sociedade brasileira engatinha na compreensão e na prática do cuidado integral para essa faixa etária. Pesquisa da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), de 2025, mostra que mais de 40% da população não sabe sequer o que significa o termo ‘primeira infância’; apenas 1% sabe definir com precisão a faixa etária de zero a seis anos. O estudo encontrou ainda outro dado alarmante: somente 15% reconhecem a importância crucial dos primeiros seis anos para o desenvolvimento físico, emocional e de aprendizagem, com a maioria dos entrevistados (41%) acreditando que o desenvolvimento mais significativo ocorre a partir dos 18 anos.
Não é só a percepção da sociedade que precisa mudar. É preciso enfrentar desigualdades profundas que levam crianças a serem uma das parcelas mais vulneráveis da população. Mais de 55% delas, de zero a seis anos, vivem em famílias de baixa renda, com 6,7% em pobreza extrema. Cerca de um milhão de crianças moram em locais sem água encanada e 46% sem sistema de esgoto. Uma em cada três casas com crianças enfrenta insegurança alimentar.
Apesar da gravidade — e do tamanho — do problema, raramente ele é abordado nos discursos políticos, vira assunto midiático ou ganha destaque nas conversas entre as pessoas.
“Temos 18 milhões de crianças na primeira infância; sendo 10 milhões no CadÚnico [ferramenta que identifica famílias de baixa renda e permite a entrada em programas sociais]. Dessas 10 milhões, 74% estão em lares de mãe solo, em que elas são chefes de família. Dessas mães solo, 73% são mulheres negras. O tema da criança é invisível, o tema da mulher é invisível, o tema da mulher negra é invisível. É esse conjunto de invisibilidades que a gente precisa mudar”, afirma Mariana Luz, CEO da FMCSV.
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Portanto, defende Mariana, é necessário aliar o decreto da PNIPI a um esforço coletivo de pressão para tirar as ações do papel para a vida real. “A sociedade precisa fazer muito mais barulho, precisa ter muito mais gente exigindo isso dos seus representantes, falando disso na sua casa, na sua família. Acredito que em cinco anos poderemos virar esse jogo, mas, se não tiver orçamento, se não tiver empenho político, se não tiver cobrança, podem se passar 50 anos e nada vai acontecer”, diz a CEO.
A proposta é de longo prazo, mas há alguns impactos diretos da PNIPI para as famílias que poderão ser sentidos a partir do ano que vem, como a criação de um sistema unificado de informação sobre a criança, acessível via site ou aplicativo. Essa plataforma integrará dados de matrícula, vacinação, benefícios sociais e outras informações relevantes, transformando a caderneta da criança em um instrumento muito mais abrangente e intersetorial — até agora, a criança é vista em ‘fatias’; as ações de educação, saúde, assistência social são separadas entre ministérios e diferentes entes federados.
Unificar a visão da criança depende de um avanço tecnológico, pois significa criar uma plataforma com dados unificados da primeira infância, algo como o portal gov.br para essa faixa etária. “A família vai ter menos burocracia, pois terá um veículo de comunicação com o poder público. A ideia é que tenha informações dos históricos — vacinas que tomou, quando começou na creche —, mas também um sistema de alerta que indique a próxima vacina, a abertura de vagas em creche mais próxima, por exemplo”, cita Mariana.
Mas o sistema unificado servirá como ferramenta de gestão também para os gestores públicos. Para isso, será fundamental a integração de vários ministérios, mas também dos estados e municípios. É o que Talita Nascimento, diretora de relações governamentais do movimento Todos Pela Educação (TPE) chama de integração ‘horizontal e vertical’.
Na esfera da Esplanada, entram as pastas da Saúde, Educação, Desenvolvimento e Assistência Social, Gestão e Inovação, assim como Direitos Humanos, para que haja suporte a crianças vítimas de violência. Depois, é preciso promover articulação para que esses dados sejam corretamente coletados e usados na ponta. “Esses dados vão abastecer os gestores locais. Poderão ver, por exemplo, se uma criança na sua escola tem uma doença diagnosticada, se está com ausência de vacinação. Se identificar que há muitas vacinas em atraso, pode propor um mutirão”, cita Talita sobre a importância de ter esses dados consolidados e fidedignos.
No sistema unificado, será fundamental a integração de vários ministérios, mas também dos estados e municípios, diz Talita Nascimento, diretora do Todos Pela Educação (Foto: divulgação)
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Além do sistema com dados integrados, tanto para famílias como para gestores públicos, a política prevê ainda questões como estabelecer protocolos e fluxo de denúncias de violência virtual, promover busca ativa de maneira padronizada para crianças de quatro e cinco anos fora da escola, implementar um programa de triagem para lares em risco de insegurança alimentar.
Por mais que faça sentido no papel e todos estejam de acordo, a implementação é sim um grande desafio de governança. Como destaca a professora Rita Coelho, coordenadora da Primeira Infância no Ministério da Educação (MEC), os ministérios não são subordinados uns aos outros. Portanto, o PNIPI vai exigir uma construção histórica de colaboração e negociação. “Embora seja o MEC o coordenador da política, os outros ministérios não respondem a ele”, ressalta Rita Coelho.
A colaboração entre diferentes órgãos, contudo, não é impossível e até já aconteceu, embora em menor escala. “O Brasil Carinhoso (de 2012) foi uma política em que nós, do MEC, acertamos com o MDS (Desenvolvimento) alguns princípios, e o MDS passou recursos para o MEC executar”, lembra Rita.
Colaboração entre diferentes órgãos não é impossível e já aconteceu, resgata Rita Coelho, coordenadora da Primeira Infância no MEC (Foto: arquivo pessoal)
Nessa articulação de múltiplos entes federados e múltiplas áreas de atuação, a educação ocupa um lugar de destaque. Porém, os limites devem ficar claros. “Educação infantil não é sinônimo de primeira infância. Dentro da primeira infância, um dos critérios de atendimento é a educação infantil”, explica Rita.
De certa forma, a população está acostumada a contar com a escola e a creche para ajudar a resolver várias questões, mesmo quando não se trate de educação. “É natural porque é a única política de primeira infância que atende diariamente, por várias horas. Nesse período é possível observar necessidades intersetoriais da criança. Se ela está sendo negligenciada, se tem uma doença rara, se não está se desenvolvendo adequadamente”, cita a coordenadora do MEC.
Ainda que comunidades país afora contem com as unidades escolares para ajudar no dia a dia, essa é a etapa da educação mais desvalorizada — e essa percepção é uma das que a nova política pretende alterar. Para quem trabalha com educação infantil, o desapreço pela atuação profissional se faz perceber em diversas esferas, do institucional ao social, passando até mesmo pelas famílias das crianças atendidas.
Há 10 anos como educadora da primeira infância numa rede municipal do Paraná, Rafaela da Silva Fiorezze conta que escolheu a etapa por gostar de trabalhar com crianças pequenas, mas que algumas vezes já repensou sua escolha por sentir que não é valorizada profissionalmente. A própria rede parece não enxergar o valor dos docentes dessa etapa. “Eu comecei num CMEI (Centro Municipal de Educação infantil, para bebês do zero aos três anos de idade) e eu não tinha direito a horário para preparar as atividades, fazer planejamento. E educação infantil exige muita preparação”, conta.
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Como durante todas as horas de trabalho ela era responsável por crianças, isso significava que sempre levava a parte do planejamento para fazer em casa. Depois que mudou para uma escola que atende dos quatro anos até o final do ensino fundamental, conquistou uma carga horária além da sala de aula, mas, ainda assim, a desvalorização institucional continua evidente: “Já fiz três pós-graduações, mas o sistema, para questões de carreira e salário, só reconhece uma”, relata Rafaela.
Também a incomoda a falta de reconhecimento social. “Muitas vezes, quando falo minha profissão, as pessoas me perguntam se meu trabalho é só vigiar as crianças brincando.” E mesmo famílias parecem que pouco entendem a importância da primeira infância: “Há pais que não querem saber nada sobre a rotina dos filhos, que tiram um mês de férias e não ficam sequer um dia com eles. Não entendem que é importante para a criança pequena passar tempo com os pais”, afirma.
Por tudo isso, Rafaela espera mesmo que a PNIPI dê frutos — e logo. “Minha impressão é que, quanto mais vulnerável a família, menos reconhecem a importância da primeira infância. Tomara que esse ciclo seja quebrado”, diz a professora.
Um desejo de mudança é partilhado por todos que estão envolvidos com a primeira infância. A PNIPI, ao focar nos primeiros mil dias de vida de cada pessoa, busca não apenas garantir os direitos das crianças, mas também impulsionar o desenvolvimento de toda a sociedade. “A situação atual é uma tragédia para o futuro e para o presente do país. Essa política visa dar prioridade e estratégia”, defende Mariana, da FMCSV. Talita, do TPE, também adota uma visão cautelosamente otimista: “Temos de manter essa política no radar, cobrar para que as autoridades a coloquem em prática. Começa agora uma parte bem difícil, mas essencial”.
Desvalorização docente: quando trabalhava na rede municipal do PR com crianças de zero a três anos, Rafaela da Silva não tinha direito a horário para preparar atividades e planejamento (Foto: arquivo pessoal)
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