NOTÍCIA
Num mundo permeado por doenças emocionais como ansiedade e depressão, a escola surge como instância para ajudar crianças e jovens a lidar melhor com os desafios da vida contemporânea
Isabela Pereira tem 16 anos e está cursando o 2º ano do ensino médio técnico, na área de Recursos Humanos, na Etec Ibaté, município de 33 mil habitantes entre São Carlos e Araraquara (SP). Ela sempre estudou em escolas públicas e, ao ingressar na Etec, uma rede também estadual que costuma ser bastante concorrida, sentiu algumas dificuldades. Não era muito organizada e tinha dificuldade para fazer amizades. Quando se envolvia em algum conflito, sua reação era de afastar-se, procurar o isolamento.
Como ela, sua colega Heloísa Garcia, também com 16 anos e oriunda da rede estadual regular, avalia que chegou à nova escola com dificuldade de dispensar um tratamento mais empático aos colegas. Hoje, ambas as estudantes relatam ter conseguido desenvolver melhor aspectos como organização, empatia, disciplina e tolerância à frustração, questões que antes as incomodavam de maneira mais profunda. Ainda resta o que trabalhar, como diz Heloísa: “No caso de conflitos entre amigos, consigo conversar. Mas na sala de aula ainda tenho dificuldade com os bagunceiros”.
As duas avaliam de forma positiva o trabalho da escola, que, especialmente nos dois últimos anos, sistematizou a metodologia do Instituto Ayrton Senna (IAS) com a introdução dos Diálogos Socioemocionais. “O programa culminou com ações que já fazíamos na escola, mas nos fez trabalhar com maior intencionalidade. Antes, tínhamos processos de escuta ativa, mas não medíamos os resultados e não trabalhávamos o individual e nem o docente”, diz Plínio Gabriel João, professor de gestão e negócios e superintendente da Etec Ibaté.
Trabalhar as dimensões socioemocionais ajudou na organização e na comunicação da estudante da Etec de Ibaté, Isabela Pereira (de preto), e ao seu lado, a colega Heloísa Garcia (Foto: arquivo Etec Ibaté)
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Atividades extracurriculares podem ajudar no desenvolvimento de competências socioemocionais
Emoções e autoconhecimento dentro do currículo
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Segundo o superintendente, o programa tem de ser uma rotina para os docentes e incluir também gestores, alunos e famílias. A partir de uma formação com os professores, a implementação ocorre em três etapas. Na primeira, os estudantes respondem a um questionário do IAS em que fazem uma autoanálise de suas virtudes e pontos a melhorar em cada uma das cinco competências (ver abaixo); num segundo momento, conversam com os professores sobre suas respostas e, por fim, o programa é trabalhado pelos docentes em sala de aula, mesclando o processo formativo tradicional (cognição) e as competências socioemocionais.
Maria Lúcia Voto, gerente de conteúdos educacionais do Instituto Ayrton Senna, diz que o grande desafio para os docentes e gestores é incorporar as propostas que integrem as dimensões cognitivas e socioemocionais já no planejamento. “Os professores precisam conhecer mais do que a teoria, precisam saber como trabalhar na prática. O uso de metodologias ativas, por exemplo, pode fortalecer dimensões como entusiasmo, iniciativa social e empatia”, exemplifica.
Na Etec Ibaté, há monitoramento dos indicadores gerais de cada sala em um quadro, visível para todos, com os resultados de evasão, aprendizagem, frequência, resultados no Provão Paulista e perfil dos alunos. Se notam, por exemplo, que há problemas de frequência na sala, agem junto aos alunos ou à família.
Mas, como em qualquer processo educacional, nem tudo dá certo e restam questões irresolvidas. Exemplo disso é o afastamento, via transferência compulsória, de alunos que não se adaptam ao modelo de trabalho da escola. “É um olhar que tentamos fazer com muita empatia, mas às vezes chega um momento em que por ausência de ferramentas ou pelo contexto familiar, a permanência de alguns alunos acaba gerando mais dores nos outros”, diz Gabriel João, reconhecendo a frustração de, nesses casos, não conseguir cumprir sua função educativa. Segundo ele, no último ano, foram três casos de inadaptados, todos eles de classe média. “Tinham uma grande dificuldade de entender o coletivo”, relata.
Plínio Gabriel João, da Etec Ibaté: crença na visualidade para monitorar questões coletivas (Foto: arquivo Etec Ibaté)
*Fonte: Instituto Ayrton Senna
Desde 2022, o número de crianças e jovens com crises de ansiedade superou o de adultos, segundo dados da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), do SUS (Foto: Shutterstock)
Assim como no caso da iniciativa do IAS, outras entidades, nacionais e internacionais, têm buscado enfrentar problemas que aparecem como grandes desafios sociais e cuja incidência sobre crianças e jovens é mais preocupante. No mundo adulto, as ocorrências há tempos são objeto de atenção. Segundo dados do Ministério da Previdência Social, o número anual de afastamentos do trabalho por saúde mental, que se manteve entre 170 mil e 220 mil nos anos de 2014 a 2019, subiu de forma vertiginosa de 2022 para cá, contabilizando 472 mil casos em 2024, aumento de 68% em relação a 2023 (283 mil). Ansiedade (141 mil) e depressão (113 mil) foram as doenças líderes. São Paulo, com 121 mil casos no geral foi o estado de maior incidência. Vale frisar que, desde muito antes disso, professores costumam engrossar essas estatísticas com casos de burnout, definido como estado de exaustão física e mental.
Mais preocupante ainda é que, desde 2022, o número de crianças e jovens com crises de ansiedade superou o de adultos, segundo dados da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), do SUS. Em 2023, a taxa de atendimento de crianças de 10 a 14 anos foi de 125,8 a cada 100 mil e a de adolescentes de 157 a cada 100 mil. Para os maiores de 20 anos, os registros alcançaram 112,5 a cada 100 mil brasileiros.
É evidente que a pandemia de Covid-19 virou de ponta cabeça um mundo que já estava em grande desalinho. O aumento exponencial da utilização de smartphones e redes sociais, a partir da segunda década deste século, ajudou a criar um cenário de isolamento e violência, muitas vezes só detectado ou compreendido por pais e educadores ao cabo de suas manifestações mais extremas.
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Interdisciplinaridade: currículo que dialogue com a vida e dê sentido
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No caso da Unesco, desde a pandemia a entidade internacional alerta que medo e estresse, ambos registrados na crise mundial, “causam impacto prejudicial à saúde e à capacidade de aprender”. E advoga que “desenvolver habilidades para a aprendizagem social e emocional (ASE) pode viabilizar comportamentos para lidar com situações estressantes com calma, reações emocionalmente equilibradas e fortalecer o pensamento crítico para permitir tomadas de decisão e de ação mais conscientes”, como diz a nota informativa número 1.2. O documento pede, também, que as habilidades de ASE sejam ofertadas a qualquer tempo para crianças, jovens e adultos.
Além das recomendações para formações de docentes e aplicação constante dos princípios de ASE de forma permanente na educação, a Unesco propõe orientações adicionais para escolas, professores, jovens e pais, a saber: incentivo de comunicação e networking entre professores; incentivo de práticas de saúde, cuidado e gentileza; enfatizar o valor das artes, culturas e brincadeiras; incentivo do uso de jogos e recursos de áudio para a aprendizagem e, finalmente, ter diálogo aberto com os jovens.
A Covid-19, se bem observada, teve o efeito de tornar exponenciais comportamentos que já vinham se manifestando nas últimas décadas e para os quais talvez se devesse olhar a partir de um ponto de vista social, e não apenas como manifestação de individualidades que adoecem.
Com um rearranjo geral de valores no que concerne a liberdades, sexualidade e hierarquias e com a adoção, pelos mais jovens, de novos comportamentos que têm desnorteado muita gente, as famílias têm se ressentido da falta de referências em que confiem.
“Hoje em dia é cada vez mais necessário o que chamamos de ‘escola de pais’, para que possamos afinar com as famílias a linguagem e propósitos. Muitas vezes, eles matriculam os filhos sem entender direito nossos princípios, então é preciso fazer um letramento de pais”, explica Mauro Porrino, professor de matemática e tutor de alunos do ensino médio do Colégio Waldorf Micael, no Jardim Boa Vista, zona oeste de São Paulo.
A pedagogia Waldorf, baseada nas ideias do filósofo e educador europeu Rudolf Steiner (1861-1925), tem uma abordagem que, por si só, já busca a integração das dimensões física, mental e espiritual dos indivíduos. “Buscamos entender o caminho biográfico de cada um, qual momento de sua biografia o aluno está vivendo”, explica Mauro. A Waldorf divide a vida em ciclos de sete anos e busca proteger crianças e jovens de até 14 anos da exposição às telas. Pode haver um letramento com relação a seu uso, mas a intenção é que se incentive a interação entre eles próprios e também com a natureza, principalmente nos primeiros sete anos de vida.
Famílias precisam de relação mais próxima com adolescentes, orienta o professor do Colégio Waldorf Micael, Mauro Porrino (Foto: arquivo pessoal)
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NR-1: por lei, escolas terão que combater estresse e ansiedade docente
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Em sua experiência, o professor avalia que um dos principais desafios das famílias contemporâneas — que acaba por repercutir no convívio escolar — é com relação aos limites e ao estabelecimento de um regramento saudável para os filhos, seja no que diz respeito aos hábitos cotidianos, como também às atitudes.
“Muitas famílias acham que quando o filho tem 14, 15 anos já está criado, aí começam a ficar mais distantes, a deixá-lo mais solto. Trabalhamos com os pais para que resgatem os seus ‘filhos reais’, que não tem a ver com a ideia de juventude da época deles, que não é passível de reprodução”, avalia Mauro Porrino, com base principalmente em sua experiência de tutor dos alunos do ensino médio.
Por isso, a escola trabalha com alunos e famílias questões como sono, alimentação, atividades extracurriculares (às vezes exageradas) e discussões sobre gênero e política, entre outras. Após 37 anos ministrando aulas de matemática, desenho geométrico, topografia e ensino religioso, o educador vê sensíveis diferenças da realidade atual em comparação àquela de seu início. Antes, diz ele, as famílias tinham mais confiança na escola, havia menos ansiedade na sociedade.
“A vida em geral ficou mais complexa. Hoje há muita medicalização de jovens e adultos, há muita polarização política. Há maior consciência sobre sexualidade, mas os jovens ainda estão muito confusos e muitos deles ficam em sofrimento porque as famílias não sabem falar sobre isso”, relata Porrino.
Se ansiedade e depressão estão em pauta nos últimos anos, há também temas que há décadas estavam reprimidos e normalizados, mas cujo enfrentamento se tornou inadiável. É o caso do racismo e do pleito por uma educação que contemple uma visão antirracista. Um dos primeiros fatores que contribuiriam para isso seria que houvesse mais empenho das escolas, sobretudo, das particulares, na aplicação das Leis 10.639 de 2003 e 11.645 de 2008. Elas tornam o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena obrigatório no currículo.
Segundo a consultora educacional e psicanalista Janine Rodrigues, fundadora da Piraporiando, instituição que trabalha com o antirracismo, em torno de 20% de todas as escolas seguem a legislação, conforme pesquisa recente dos institutos Alana e Geledés.
“Há dois perfis de escolas que não seguem a lei. Aquelas que o fazem por desconhecimento e aquelas cujo racismo é intencional. Houve evolução nos últimos 10 anos, mas é uma pena que isso muitas vezes aconteça em razão de alguma coerção”, diz ela, mencionando ações do Ministério Público para que as escolas respeitem a lei.
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Dos fios da escola às tramas da democracia
Entre telas e conversas: o papel das famílias na educação digital e na saúde mental dos jovens
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Até 2013, Janine trabalhava com gestão socioambiental e frequentava escolas pelo fato de elas serem um local de convergência em várias comunidades e isso permitir que lá se reunissem seus membros em função de análises de impacto ambiental. Naquele ano, ela resolveu publicar um livro que escreveu aos nove anos, No reino de Pirapora, contando a história real de uma colega agressiva e solitária, que não podia brincar ao sol em função de um problema de saúde. Convidou-a para um aniversário à noite e ficaram amigas.
Seu livro foi adotado por muitas escolas, e ela convidada a falar e a dar consultorias. Em 2015, fundou a instituição. Hoje oferece a formação Trilhas de Diversidade, que faz parte de um programa antirracista. O foco são professores e gestores. Para Janine, além dos cuidados com as vítimas do racismo — alunos e seus familiares — também é preciso contar a história dos negros para além da escravidão. “É preciso falar do antes e do depois, da cultura que já existia.” Em seu trabalho, propõe a criação conjunta de plano de ação, metas e indicadores para medir evasão, conflitos e responsabilizações e criar parâmetros para mostrar a efetividade dessa mudança de cultura.
Consultora Janine Rodrigues: da criação literária a ações sistemáticas contra o racismo (Foto: arquivo pessoal)
Encontrar o equilíbrio emocional de pessoas e instituições parece ser, neste momento, algo parecido com o Mito de Sísifo, aquele em que o personagem é condenado a diariamente carregar uma pedra morro acima para, no dia seguinte, vê-la novamente no local de origem, sendo forçado a recomeçar seu périplo.
Caroline Zylkberkan, psicóloga especialista no atendimento de casais e famílias, corrobora os dados sobre depressão e ansiedade de adolescentes, frequentes em seu consultório. Ela percebe algumas causas, como intensidade das relações por meio de redes sociais e uso de tecnologia, excesso de atividades, adolescentes superprotegidos e pais que querem ‘impor suas próprias verdades’.
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Um currículo tridimensional para exercer a mudança
Engajamento, para combater o bullying
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Entre os jovens, a criatividade está em baixa. “Não sabem viver no tédio, não existe espaço para a solitude. O tédio é extremamente importante para a autorreflexão. O adolescente não pensa, baba e vai para o TikTok”, relata Caroline, para quem faltam espaços de trocas para que criem novos interesses e se conectem com seus pares. E, sintoma de sua angústia, muitos praticam a automutilação. “A dor física acaba sendo melhor do que a dor emocional, com a qual não sabem como lidar”, completa.
Longe de serem exclusivas dos jovens, dores e angústias parecem, mais do que nunca, sintomas de que os maiores desajustes refletem mazelas maiores, oriundas do mundo adulto. Ou seja, a escola tem sido depositária das esperanças da sociedade de criar jovens que não reproduzam as incertezas atuais. Mas, ao jogar tudo nas costas de educadores e educandos, a sociedade só tem feito aumentar a ansiedade de todos. É preciso implicar mais gente nessa equação e dividir as responsabilidades.
Caroline Zylkberkan, psicóloga: é preciso haver espaço para a solitude e a autorreflexão (Foto: arquivo pessoal)
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