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Autor

Redação revista Educação

Publicado em 20/12/2024

Brasil patina na recuperação da aprendizagem

Se taxas atuais de crescimento forem mantidas, somente em 2027 estudantes devem alcançar patamar esperado para 2023 nos anos finais do ensino fundamental

Por Marília Rocha: Parte das consequências da Covid-19 segue presente nas escolas. “A pandemia fez com que um número grande de alunos não aprendesse a ler e a escrever no momento certo. Não consolidaram as habilidades para isso. Desde o retorno às aulas presenciais, as redes buscaram estratégias para enfrentar esse desafio, mas ainda hoje é alta a dificuldade de interpretar textos simples: eles leem, mas não compreendem o que estão lendo”, relata Josineide Santos de Lima, coordenadora dos anos iniciais de Atalaia, AL, a 48 km de Maceió. “A criança que não desenvolve a leitura deixa de participar das aulas, não acompanha e, se não há atividades que a atraiam, consequentemente ela não vai sentir vontade de estar na sala de aula, fica desmotivada e isso gera consequências no longo prazo”, afirma.

Além de não ter conseguido retomar o patamar pré-pandemia, a educação brasileira está mais distante do desempenho que vinha demonstrando entre 2005 e 2019. Nos anos finais do ensino fundamental, isso representa que apenas daqui a três anos e meio os estudantes devem conseguir atingir o patamar esperado para 2023. Isso se retomar o ritmo de crescimento anterior, pois o atual ainda é de queda. Os dados foram analisados pela Cátedra Sérgio Henrique Ferreira, do Instituto de Estudos Avançados do Polo Ribeirão Preto da USP.

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Fato é que o cenário precisa ser enfrentado de forma coletiva. “Temos muitos alunos faltosos, a família não entendeu que a criança precisa retornar de maneira integral e não fracionada, vai dois ou três dias e falta os demais; isso acarreta problemas de aprendizado, sem falar no socioemocional”, analisa a coordenadora Josineide Santos de Lima. Outro ponto de atenção é o desenvolvimento de ansiedade em crianças e jovens, o qual ainda persiste, diz a coordenadora, mesmo com um trabalho focado nisso. “Estamos conseguindo avançar, mas a pandemia deixou sequelas graves, que não se resolvem em alguns anos, é uma problemática que precisa ser vista e ser trabalhada de forma processual”, destaca.

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“Eles leem, mas não compreendem o que estão lendo”, relata Josineide Santos de Lima, coordenadora dos anos iniciais da rede de Atalaia, AL (Foto: Semed Atalaia)

Agir com base em dados

O estudo da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira foi realizado pelo seu Laboratório de Ciência de Dados em Educação, que projetou previsões para cada etapa de ensino com base nos dados históricos (2005-2019) e depois comparou com os resultados efetivamente alcançados em 2021 e 2023 na nota padronizada do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica). Os dados de 2023 foram divulgados em agosto pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e mostram que o aumento no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) da maior parte das redes cresceu mais por conta do fluxo escolar, em especial, das taxas de aprovação.

“A gente está vendo uma dificuldade extrema para retomar um padrão que já era pífio, bem abaixo do que devemos promover na aprendizagem dos estudantes brasileiros. Isso tem reflexos em toda a trajetória escolar e de vida dessas crianças e jovens. Não significa que individualmente eles regrediram, ou que o aluno médio do 9º ano sabe menos hoje do que sabia no 5º ano. Mas significa que, em média, os estudantes do 9º ano de 2023 poderiam saber mais se a aprendizagem não tivesse sido interrompida. E não estamos conseguindo reverter este quadro”, analisa Mozart Neves Ramos, titular da Cátedra e membro do conselho editorial da revista Educação.

A partir dos dados históricos das notas padronizadas de 2005 a 2019 da rede pública, a equipe do Laboratório de Ciência de Dados treinou modelos estatísticos. A princípio, usando os dados até 2017, foi testada a capacidade do modelo de prever os resultados de 2019. Com o modelo validado apresentaram as previsões para os anos de 2021 e 2023.

“A análise revela desafios contínuos na recuperação educacional pós-pandemia, com uma defasagem significativa mesmo nos anos iniciais, que ainda pode levar mais de um ano para chegar ao patamar em que poderia estar já em 2023. De modo geral, o cenário é crítico”, destaca o coordenador do Laboratório de Ciência de Dados em Educação, Rafael Naime Ruggiero.

 

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“A pandemia ampliou a desigualdade, pois quem vem de famílias de menor renda teve menos chances de aprender”, diz Mozart Ramos, titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira (Foto: Cecília Bastos/USP)

Redes de ensino relatam dificuldades

Um dos primeiros grandes desafios para retomar o crescimento no desempenho, segundo Secretarias de Educação ouvidas pela reportagem, foi identificar como recompor a aprendizagem de estudantes que foram aprovados mesmo sem ter adquirido as aprendizagens esperadas para a etapa em que estavam, conforme diretrizes do Conselho Nacional de Educação. “Fizemos avaliações próprias no município para identificar quais habilidades e aprendizagens cada aluno não conseguia acompanhar, e endereçamos esses temas em atividades de reforço”, conta o responsável da pasta de Avaliação Interna e Externa do município de Pilar, AL, Tobias Marcelo do Nascimento.

“Mas isso foi uma força-tarefa que nem todos os lugares conseguiram fazer. Precisa de acompanhamento e formação”, destaca. Para ele, o segundo desafio foi justamente o de reter profissionais formados para essas ações. “Tem que ter formação constante, mostrar o que as avaliações indicam, observar e compreender as dificuldades de cada estudante. E como promover as habilidades que estão faltando, conseguindo multiplicar isso em todas as escolas. Mas, com alta rotatividade, parte desse trabalho pode se perder”, analisa Tobias.

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Na Secretaria Municipal de Educação de Jundiaí, interior de São Paulo, o desafio da recomposição da aprendizagem passa pela necessidade de adaptação às novas demandas. “A gente olha o cenário e vê que o país realmente está ficando para trás. Houve uma mudança abrupta e a educação de maneira geral ainda não deu conta dessas coisas todas. Não adianta criar lei de recomposição de aprendizagens se não tivermos insumos e condições de executar. A gente precisa de direcionamentos que apoiem o trabalho de cada escola”, defende a secretária de Educação de Jundiaí, Vastí Ferrari Marques.

Segundo ela, existe uma conjunção de fatores que ampliam o desafio: por um lado, todas as escolas devem se conectar com as demandas da ‘nova era educacional’ e, por outro, cada escola tem desafios particulares que precisam ser acompanhados, caso a caso. “Não dá para termos a mesma disposição de sala de aula, com todos os estudantes ouvindo as mesmas coisas por quatro horas seguidas. A escola precisa se atualizar e mostrar desafios que interessem a essas crianças; temos novas questões, como a saúde emocional e a ampliação do número de laudos de TEA [Transtorno do Espectro Autista], que demandam adaptações importantes de currículo, carga horária, organização escolar, formação de professores, entre outras”, pontua Vastí.

 

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Vastí Ferrari Marques, secretária de Educação de Jundiaí (Foto: reprodução)

“Por outro lado, do mesmo jeito que há heterogeneidade entre turmas, temos também entre  escolas. Em Jundiaí, são 104, e precisamos identificar qual a principal defasagem dos estudantes e fazer uma estratégia personalizada: se tenho 10 escolas que não atingiram a média da rede no Saeb, e percebo que elas têm um desafio concentrado em língua portuguesa, por exemplo, vamos conversar com a gestão da escola, apoiar a formação de professores, o engajamento, o currículo, para reverter”, exemplifica a secretária.

Ela pontua que a situação atual reforça a importância de realizar análises estatísticas para que cada rede de ensino compreenda o que os seus números estão mostrando. “Se a Secretaria de Educação não monitora suas escolas, está fadada ao erro. A estatística não é apenas numérica, ela pode ser humanizadora: quando a gente entende os números e relaciona com habilidades e competências, sabe aonde precisa chegar e entende o que esse aluno sabe e o que não sabe. Essa percepção permite desenvolver uma política pública adequada, não dá para fazer tudo igual. É preciso olhar o monitoramento dessa forma, ele é importante porque revela humanidades. E o Brasil tem dificuldade de fazer leitura de dados, é por isso que a gente avança tão devagar.”

Essa é, também, a leitura que faz a secretária de Educação de Atalaia, AL, Glauciane Veiga. “Muitos estudantes voltaram da pandemia com lacunas de aprendizagem que seguiram se acumulando ao longo dos anos. Alguns ficaram estagnados e precisamos acelerar a aprendizagem. Falta muito ainda, tornando o processo de recuperação um grande desafio, principalmente nas redes mais vulneráveis”, afirma. “Houve aumento na depressão, e isso desestimula, faz com que eles não participem, faltem. É preciso fazer um trabalho constante, não só de busca ativa, mas também de metodologias que sejam estimulantes para os alunos, que façam com que queiram participar, se interessem mais. A motivação dos estudantes ainda é um grande desafio. Toda a estrutura educacional tem que se voltar para isso.”

 

Glauciane Veiga, secretária de Educação de Atalaia, AL: estrutura educacional deve se voltar para a motivação dos estudantes (Foto: arquivo pessoal)

Como reverter e melhorar o desempenho

Estamos em processo de recomposição de aprendizagens, e o país precisa investir muito. Para reverter o cenário de forma robusta, é necessário que esse investimento seja realizado em ações complementares. “As redes de ensino estão cientes de que essa recuperação exige ações em diversas frentes. A incorporação de tecnologias e a personalização das trajetórias de aprendizagem são ferramentas poderosas. É preciso ampliar a formação continuada de professores, com foco em metodologias que dialoguem melhor com a realidade dos estudantes e na criação de espaços colaborativos entre educadores para troca de experiências e boas práticas”, defende a secretária Glauciane.

“Um dos esforços mais significativos é a melhoria no uso de dados para embasar decisões pedagógicas. Ao monitorar de forma precisa o progresso dos estudantes, é possível identificar rapidamente as dificuldades e atuar de forma mais assertiva. Temos capacitação de gestores e professores para que façam uso estratégico dos dados educacionais. Ao desenvolver essa competência, eles não apenas compreendem o que os dados revelam, mas também transformam essas informações em ações concretas que podem melhorar o desempenho dos estudantes”, explica a secretária.

O técnico Tobias Marcelo do Nascimento, da Avaliação Interna e Externa do município de Pilar, defende desde 2008 a cultura de dados. É conhecido por colegas como ‘o rapaz das planilhas’. Fundamental manter a atenção aos indicadores, mesmo após a divulgação de resultados nacionais, por exemplo, o Saeb, como um trabalho contínuo e não pontual. “Um conselho que dou para todas as pessoas que queiram mudar esse cenário é que procurem um professor, um técnico, alguém da Secretaria que tenha domínio de análises estatísticas, para que seja um multiplicador desse conhecimento e faça formações continuadas. Para tomar qualquer decisão, é necessário conhecimento, não basta fazer a prova, tem que saber o que ela mostra.”

 

Para mudar cenários como esse, dominar análises estatísticas é fundamental; além de formações continuadas, propõe o técnico Tobias Marcelo do Nascimento (Foto: arquivo pessoal)

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Ter uma equipe que ajude a fazer leitura de dados, levar as informações para as escolas de maneira adequada e orientar professores e diretores são também destaques para Vastí. “Isso não pode ser feito só pela Secretaria, é um sistema todo que tem que funcionar com essa visão. Minha sugestão é que se olhe para o alinhavo dessas ações, como em uma engrenagem: é preciso alinhar a série de componentes e fazer um excelente monitoramento desse trabalho o ano inteiro. Isso pode ser visto como algo burocratizado, mas não é, temos que explicar: é para que cada criança tenha o direito de aprender na hora e lugar certos.”

“A análise preliminar da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira nos lembra que não basta recuperar os indicadores antes da pandemia, mais importante é recuperar a tendência de crescimento. Voltar ao patamar de 2019 ainda é pouco perto do que a gente deveria querer para o país”, destaca o analista de dados Pedro Sartori. “A partir de agora, vamos ampliar esse projeto para identificar quais indicadores têm mais influência nessa recuperabilidade, a partir dos municípios que conseguiram chegar mais perto do crescimento que seria esperado”.

Efeito da pandemia nas desigualdades

Estudo anterior da Cátedra, com dados do Saeb de 2021, demonstrou que, após a pandemia, o fator com mais influência nos resultados é o nível socioeconômico. Em 2019, a distorção idade-série (quando o estudante tem dois ou mais anos acima do esperado para sua série) era o fator que mais influenciava o Ideb de um município, seguido de nível socioeconômico e taxa de abandono. Já em 2021, o nível socioeconômico se torna o fator mais relevante, seguido de distorção e abandono. Ou seja, neste período há forte conexão entre baixo nível socioeconômico e baixo desempenho.

Quais indicadores fazem a diferença

Dada a importância do nível socioeconômico no resultado do Ideb, os pesquisadores analisaram os dados de 2019 e 2021 dos anos iniciais do ensino fundamental em cerca de 4,6 mil redes municipais brasileiras segundo essa característica. A distribuição de municípios mostrou que os 25% com maior desempenho são majoritariamente os com maior renda, enquanto os 25% com menor desempenho tendem a apresentar menor nível socioeconômico.

No entanto, a análise identificou municípios que não seguem esse padrão e são literalmente pontos fora da curva, com ótimos resultados mesmo estando nas faixas de baixo recurso. Em 2019, 94 redes municipais se destacaram, das quais 88 ficam no Nordeste: Ceará, Piauí, Pernambuco e Alagoas. Em 2021, foram 71 redes fora do padrão, todas elas nos mesmos estados nordestinos. Utilizando um método estatístico, os pesquisadores buscaram a relação de nove indicadores com os resultados desses municípios, comparando os dados com 633 redes municipais com o mesmo nível socioeconômico, mas resultado inferior.

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O estudo identificou os fatores mais associados ao bom desempenho, mesmo em nível socioeconômico desfavorável: baixas taxas de abandono e distorção idade-série, e adequação da formação docente. Enquanto as redes com alto desempenho tinham em média 4% de alunos com distorção, as de baixo desempenho tinham em média 14% dos estudantes nesta situação, chegando a mais de 40% em alguns casos. A média da taxa de abandono do primeiro grupo ficou perto de zero, mas chegou a até 1,5% nos municípios de baixo desempenho, com alguns atingindo 11% de evasão. O grupo de baixo desempenho tinha, em média, menos de 44% dos professores com formação adequada (quando possuem licenciatura para atuar na área em que lecionam), índice que era de cerca de 49% no grupo de alto desempenho.

“Quando um município tem ações para evitar o abandono e a distorção, ele provavelmente investiga o que pode estar fazendo o aluno ser reprovado de forma recorrente e ficar cada vez mais pra trás; vai buscar os alunos e tenta reverter a situação. Com este nível de atenção, a rede tem muito mais chance de gerar um bom desempenho”, explica Lourival Matias, membro do Laboratório de Dados em Educação, reforçando que os indicadores revelam o resultado de muitos fatores, e merecem ser tratados com atenção.

Nota da editora — aprendizagem pelo mundo

Em diferentes países, o nível de aprendizagem dos estudantes está em queda pelo menos desde 2010, ou seja, bem antes da pandemia (que, claro, possivelmente intensificou o atraso no aprender). A afirmação foi dada a jornalistas pelo grego Manos Antonínis, diretor do relatório de Monitoramento Global da Educação (GEM) da Unesco, durante a Reunião Global da Educação, que aconteceu no início de novembro em Fortaleza, CE.

Manos Antonínis indica duas suposições para essa queda:

  1. Efeito negativo da tecnologia: “irônico, porque prometem que a tecnologia melhora a aprendizagem, o que é verdade para poucos”, diz.
  2. Dificuldade familiar: “[ao que parece ] a vida é difícil e os pais não têm tempo de concentrar cuidado aos filhos como antes”, completa.

Cauteloso, Manos Antonínis pontua que está claro que a chegada da tecnologia digital tem gerado resultados negativos na educação. Já a questão familiar, assim como outros pontos, ainda estão sendo investigados.

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