Alexandre Le Voci Sayad é jornalista, educador e escritor. Mestre em inteligência artificial e ética pela PUC-SP e apresentador do Idade Mídia (Canal Futura)
Publicado em 11/12/2023
Pela primeira vez, a Guerra na Ucrânia e no Oriente Médio é também uma guerra nas redes sociais; compreender seus algoritmos e funcionamento também auxilia o estudante a construir sua opinião sobre fatos históricos
Os horrores de uma guerra são capazes de endereçar ao menos quatro importantes assuntos por entre as disciplinas, atividades e elementos curriculares da escola: a complexidade das narrativas, a historicidade dos fatos, o relativismo da verdade e a ética das mídias.
Longe de ser uma tarefa simples, levar esses assuntos para a sala de aula exige, sobretudo, formação adequada dos educadores e preparação do ambiente para um debate que deve contar com regras claras e argumentos estruturados. Há oportunidade para transformar o espanto coletivo, uma sensação não muito produtiva se isolada, em compreensão; algo importante para que gerações possam desenvolver culturas de paz e empatia.
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Não é de hoje que as ‘atualidades’, ou seja, aquilo que acontece agora e ainda não virou história, têm dificuldades em fazer parte do currículo escolar. Em parte, há a vocação da educação em apenas olhar o passado, que acaba por isolá-la do mundo externo; por outro lado, a sobrecarga de disciplinas deixa pouco espaço para análise crítica do noticiário, por exemplo. Mesmo assim, na linha do tempo, não faltaram políticas públicas para estimular o olhar da escola para as notícias e as questões contemporâneas.
Na década de 1990, por exemplo, o Brasil aprovou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que pretendiam incentivar o trabalho por projetos, transdisciplinar, que abordasse desde questões climáticas, até aquelas ligadas à cidadania e às midiáticas. Por ser uma proposta não regulatória, e também não apresentar soluções para a formação docente e alívio da carga disciplinar, a maravilhosa coleção de livros dos PCNs, produzida e distribuída pelo MEC, foi usada como peso para segurar porta em muitas localidades do país (realmente presenciei isso como repórter).
Hoje, o campo da educação midiática e suas oportunidades na Base Nacional Comum Curricular abre mais uma frente para que a educação formal não deixe que as guerras surjam descontextualizadas no colo de estudantes, vulneráveis aos fluxos de desinformação por entre as redes sociais.
Os recentes conflitos na Ucrânia e Oriente Médio escancaram como a guerra de narrativas nas mídias é um elemento bélico tão poderoso quanto fuzis e granadas. A complexidade transforma as narrativas em iscas fáceis para aqueles que buscam histórias lineares ou maniqueístas. Pela primeira vez, essa é também uma guerra nas redes sociais; compreender seus algoritmos e funcionamento auxilia o estudante a construir opinião sobre fatos históricos.
A integridade da informação necessita de guardiões, e os professores são os melhores, se estiverem preparados para isso. Os conflitos globais desde a Segunda Guerra Mundial, se olhados em perspectiva e com uma análise de mídia, podem gerar planos de aula (sobretudo, para os anos finais do fundamental e ensino médio) que auxiliam os estudantes na clareza e compreensão.
O nascimento do termo ‘propaganda’, os cartazes estilizados, os panfletos jogados pelos aviões, além de Goebbels, um marqueteiro em ação no front, são elementos cruciais para entender o papel da comunicação na Segunda Guerra Mundial. Além disso, a BBC (British Broadcast Company), serviço de comunicação de interesse público do Reino Unido, teve papel crucial na contrainformação; transmitia a visão do conflito em ondas curtas, no idioma alemão, desconstruindo assim a narrativa de Hitler. Áudios e documentários com essa abordagem são facilmente encontrados no YouTube.
Os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, que precederam a invasão ao Afeganistão e Iraque, foram os primeiros a serem transmitidos pela internet em tempo real. A cronologia que a rede CNN criou em seu site, além da televisão, prova o quão impreciso e arriscado é reportar um evento que está acontecendo naquele momento. Recuperar essa cobertura explicita aos estudantes o exercício de apuração da informação para se chegar a um resultado confiável, e a inevitabilidade do erro nesse processo.
O surgimento do ISIS, ou Estado Islâmico, grupo terrorista fruto do desmantelamento da Al-Qaeda, levou a produção de comunicação por parte de não especialistas a outro patamar de qualidade. O que antes eram gravações primárias, tornaram-se produções bem feitas para espalhar o terror ao mostrar reféns e exercícios de ataque. Os vídeos não devem ser explorados, pois são extremamente violentos, mas ao contar essa história percebemos como a tecnologia de câmeras e edição evoluiu e como as habilidades de comunicação foram desenvolvidas rapidamente até por entre grupos terroristas. Essas mesmas habilidades, contudo, podem ser exploradas pelos estudantes para a paz.
Por fim, os recentes conflitos na Ucrânia e no Oriente Médio são marcados pelas narrativas nas redes sociais, mais que nenhum outro anterior. Histórias se constroem de forma descentralizada, pela voz de internautas de todo o mundo; algumas falaciosas, outras imprecisas ou simplesmente errôneas, sob o ponto de vista da história. A comparação entre narrativas com a colaboração dos alunos pode ser um excelente exercício para se diferenciar um fato histórico, de uma impressão, uma opinião ou mesmo uma mentira.
Não é exagero atribuir aos conflitos bélicos o desenvolvimento tecnológico (como a aviação e a radiodifusão), além da propagação do conceito de propaganda. Mas cabe aos educadores também explorar que as guerras são o principal terreno de propagação da desinformação. Com tanto material disponível gratuitamente na internet, é imprescindível uma boa curadoria e muita sensibilidade na condução das atividades. A compreensão e a empatia são sempre os melhores elementos para a construção da paz nas escolas e no mundo.
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