Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)
Publicado em 04/01/2023
No dia 7 de setembro de 22, a nossa amiga Magda Soares completava 90 anos de idade. E, no primeiro dia de 23, nos deixou órfãos do seu saber
No dia 7 de setembro de 22, a nossa amiga Magda Soares completava 90 anos de idade. E, no primeiro dia de 23, nos deixou órfãos do seu saber.
Em boa hora, a organização da Feira Literária de Ribeirão Preto quis homenageá-la. Agradeci e aceitei o honroso convite de ser autor dessa homenagem. Entre o palco do evento e a casa da Magda se desenrolou esse mais do que justo ato de reconhecimento do trabalho por ela desenvolvido. A Magda introduzira no Brasil o conceito de letramento e o seu último livro recebera o Prêmio Jabuti de melhor livro de Educação e Pedagogia e de não-ficção, em 2017.
Aos noventa anos, a Magda mantinha contato com escolas e professores, trabalhando, voluntariamente, com alfabetizadores na rede municipal de Lagoa Santa. E, no decorrer da sessão de homenagem, disse pretender “voltar ao chão da escola”.
Leia também
Magda Soares, a dama da educação brasileira, deixa um legado inspirador
A liberdade do pensar de Maria Nilde Mascellani e Lauro de Oliveira Lima
Quatro anos antes, recuperando-se de uma cirurgia delicada, dizia que nem mesmo o fato de encarar a mesa de cirurgia a deixou preocupada.
“Mas quando saiu o anúncio sobre essa Secretaria de Alfabetização, eu passei noites e noites em claro. Não conseguia dormir. Não sei o que vai ser”.
As propostas da Magda tinham sido alvo de críticas por parte do recém-nomeado secretário de alfabetização do MEC, mais um político arrogante, que se atrevia a considerar o letramento como o “vilão da alfabetização”. Formado em direito, ignorante do que fosse alfabetizar, defendia o uso exclusivo do chamado “método fônico”, pelo que Magda, a propósito se manifestava.
“Alfabetização não é uma questão de método. O grande equívoco na área de alfabetização é que, historicamente, sempre se considerou que alfabetização era uma questão de método. Sabemos que os professores ensinam da mesma maneira como aprenderam quando eram alunos.”
40 antes, este jovem professor (já fui jovem…) acolhera as propostas da Emília e da Magda sobre o processo de alfabetização inicial: restituir a língua escrita seu caráter de objeto social; aceitar que todos podem produzir e interpretar escritas, cada qual em seu nível; estimular a criança na interação com a língua escrita em vários contextos.
Nesse tempo, eu fazia a minha especialização na área da alfabetização e já praticava várias metodologias – fonomímicas, fonossintéticas, globais, silábicas e o “tu já lê” – mas a abordagem da Magda ajudou-me a ultrapassar alguns limites. E a compreender por que o ministério da educação sempre se mostrou incapaz de obstar aos elevados índices de analfabetismo literal e funcional.
Com autoridade, a Magda afirmava:
“Nós temos mudado de método a todo momento ao longo das décadas e nunca conseguimos resolver nosso problema de alfabetizar todas as crianças, no tempo certo.”
Ela sabia não haver um “tempo certo” para aprender a ler. Também, isso me ensinou. De tanta aprendizagem lhe fiquei devedor!
Um velhinho de 90 anos pediu-me que o ensinasse a ler. Perguntei por que queria aprender a ler.
“Sou testemunha de Jeová. E o pastor lê coisas nos livros sagrados, que eu não sei se está certo.”
Gravei um cassete com o primeiro capítulo da Bíblia e dei-lhe a ler o texto. O velhinho já passara pela EJA e pelo bê-á-bá fônico, sem lograr aprender. Aprendeu.
Uma senhora de 32 anos fez-me pedido idêntico. E lhe fiz a mesma pergunta.
“Professor Zé, o meu marido tem chegado tarde a casa. Ele diz que trabalha até tarde, mas ando desconfiada. Se eu soubesse ler uns papéis que ele tem no bolso do paletó!”
Aprendeu a ler em dois meses. Separou-se no mês seguinte.
Afinal, alfabetizar não será ajudar a fazer leituras de mundo emancipatórias?