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Educação superior em presídios resgata a vida de milhares de pessoas

“O que me capturou na poesia foi o fato de poder falar de mim sem ser julgada”, afirma Ana, 31 anos, aluna do segundo semestre no curso de assistência social da Faculdade Santa Cecília (FASC), em Pindamonhangaba, interior de São Paulo. Anos antes de ingressar […]

Publicado em 03/01/2023

por Sandra Seabra Moreira

“O que me capturou na poesia foi o fato de poder falar de mim sem ser julgada”, afirma Ana, 31 anos, aluna do segundo semestre no curso de assistência social da Faculdade Santa Cecília (FASC), em Pindamonhangaba, interior de São Paulo. Anos antes de ingressar na graduação, foi a poesia que fez surgir nela a vontade de estudar no Centro de Trabalho e Educação (CTE), local que ela chama simplesmente de “escola”, na Penitenciária Feminina II de Tremembé.

“Em 2018, aconteceu de eu ir na escola do pavilhão por causa de um evento de poesia. Minha amiga, que morava na mesma cela que eu, me arrastou. Eu gostei, me apaixonei pela poesia. Na cadeia, a gente tem que manter a pose de malvadona, não pode mostrar fraqueza. A monitora, então, já colocou meu nome na escola. Comecei a estudar e não parei mais”, conta Ana.

Além da poesia, o que lhe agradou foi o ambiente: “Gostei da escola e ela se tornou um refúgio para mim. Hoje em dia, continuo trabalhando na escola, porque eu gosto de lá. Todos os projetos dos quais participei mudaram o rumo da minha vida”. Ana é monitora de apoio à educação, reeducanda contratada por meio da Fundação Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel (Funap).

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Incentivo ao conhecimento

Além de novas perspectivas, leituras e estudos nas unidades prisionais podem contribuir para a remição da pena. A Lei de Execuções Penais prevê e a Resolução nº 391, de 10.05.2021, regulamentou essa questão. A aprovação em exames como o Encceja e o Enem também contribuem. 

Ana concluiu o ensino médio e por meio do Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade (Enem PPL), conquistou a vaga na faculdade. “Na primeira vez, não passei. Na segunda vez, consegui nota, mas ainda estava sem perspectiva de ir para o regime semiaberto. No ano passado, consegui nota de novo, ainda estava em regime fechado, mas em 21 de janeiro deste ano [2022] fui para o semiaberto, e deu tempo de me inscrever no ProUni. Ganhei 100% de bolsa na FASC.”

Além de passar no Enem e estar no regime semiaberto, Ana obteve autorização do juiz para cursar a faculdade. Sem a autorização, o reeducando ou reeducanda não pode frequentar as aulas em local externo ou mesmo na modalidade de ensino a distância. Para ela, os conteúdos do Enem não trouxeram dificuldades, nem mesmo os do curso de graduação. Difícil foi tomar a decisão de estudar: 

“Estou presa desde 2009, passei por várias unidades prisionais, nunca tinha praticado alguma atividade educacional.” 

A vontade de uma reeducanda

Ana troca de roupa na portaria da unidade e vai de ônibus para a faculdade. Ela comenta outros desafios menores:

“Tem uma diferença muito grande entre cursar o ensino médio aqui dentro e a faculdade lá fora. Aqui são as mesmas pessoas com as quais convivo todo dia. A gente tem bastante apoio aqui, na questão do estudo, da preparação do Enem. Tive suporte, como fazer prova de exames anteriores e material para estudar. E hoje, na faculdade, por conta da condição de reeducanda, não posso ter acesso à internet, telefone. Não posso encontrar pessoas durante o dia para fazer um trabalho em grupo ou pesquisa”.

No início do ano, a apreensão veio por conta de não saber como seria sua integração na faculdade. Ana tinha medo de ser hostilizada ou alvo de preconceito. “Mas não foi assim. As primeiras pessoas que me abraçaram foram as da secretaria e as da direção da faculdade. Fui convivendo com outras pessoas, tem muitos cursos lá, conheço umas três, quatro pessoas de cada curso”, conta. 

Professores e amigas enviam materiais necessários para os trabalhos da faculdade para o e-mail do CTE. “A diretora passa o material e me acompanha de perto, me auxilia nas pesquisas, há sempre uma maneira para eu não perder conteúdo e as regras serem mantidas”, conta. A ajuda, diz, vem de todo lado. O ano está acabando e Ana comemora: “Foi mais tranquilo do que eu imaginei e minhas notas estão boas”.

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Mi Manchi

No futuro, Ana quer se instalar em Pindamonhangaba, terminar a faculdade perto dos que a ajudam. Quer exercer a profissão porque tem vários projetos que incluem a assistência social. Um deles é o Mi Manchi, já concebido no papel: “O nome tem a ver com a minha trajetória. É uma expressão italiana que significa ‘você está faltando em mim’, e substitui a palavra ‘saudade’ que existe na língua portuguesa”. 

Nesse projeto, ela quer cuidar de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e abandono. “Quero abraçar todas as crianças que eu puder, já que meu filho eu não pude”, revela.

Dos três filhos, o menor, então com sete meses, ficou sozinho quando Ana foi detida: “Os outros tinham as avós, ele não. Precisou ser adotado. Ele é o grande inspirador desse projeto”. Em seu depoimento, realizado sob supervisão e sem que ela revelasse seu rosto ou nome verdadeiro, Ana quis deixar algumas palavras finais:

“O que transforma é a educação. Essa é a certeza que tenho hoje e a que quero passar para o meu filho mais velho. Conversei muito com ele, já fiz com que ele voltasse a estudar. Quando dentro do sistema prisional, o preso é tratado simplesmente como preso, é fato: ele vai sair e voltar, é um círculo vicioso. O melhor lugar para ressocializar e devolver alguém para a sociedade é dentro da escola, é o trabalho de educação. É surreal como muda. E o apoio dentro do sistema também, quebrando essa barreira entre funcionários, polícia e preso. A gente sabe o nosso lugar, sabe o lugar das funcionárias, porém, dentro da educação, isso dá uma aproximada. E, na verdade, você só ressocializa alguém convivendo com ele, sabendo da sua história”, desabafa a reeducanda Ana.

Enem PPL e um sol que brilha

De acordo com a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), em São Paulo, 19.597 inscrições foram realizadas para o próximo Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade, o Enem PPL. As provas acontecerão nas unidades prisionais, nos dias 10 e 11 de janeiro de 2023. Esse número de inscritos superou 2021 em 12,5%. Caroline, 34 anos, é uma das inscritas e se prepara para uma verdadeira maratona de estudos em dezembro.

A ideia é encarar as quatro provas objetivas, com 45 questões de múltipla escolha, e a escrita da redação. O conteúdo exigido nas provas é o mesmo do Enem tradicional. Ela está há cinco anos e cinco meses na Penitenciária Feminina II de Tremembé. Tomou a decisão de concluir o ensino médio, “para mostrar para a minha família que eu estava fazendo algo de bom aqui dentro”. Além do orgulho que sentiu de si mesma, o término do ensino médio trouxe um ganho prático imediato. Caroline ganhou a vaga de monitora da sala de leitura. Antes, como faxineira, já participava das atividades na sala. “Gosto de livros e de incentivar minhas companheiras a ler”, explica. 

Educação em presídios
A educação transforma vidas, como foi o caso para Ana, de 31 anos, que através do Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade (Enem PPL) conseguiu cursar a universidade
Foto: divulgação/Funap

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Incentivada

“Aqui, ouço ‘Caroline, seu sol está brilhando!’. Antes eu não tinha foco, perspectiva. Pelo fato de ter entrado nas drogas com 18 anos, e ter morado na rua por 10 anos, minha família não confia muito em mim. Fui presa várias vezes, saía e voltava para o mesmo buraco.” 

O estudo trouxe o foco de que ela precisava. “Vou me dedicar bastante nessa prova. Quero mostrar uma Caroline que eles não conhecem.” No próximo ano, ela segue para o regime semiaberto. Diz que tem fôlego para encarar os cinco anos da graduação em psicologia. Sua vontade é trabalhar com pessoas adictas, acumulando conhecimento e vivência. Caroline diz que ficou muito longe do filho e também acredita que estudando psicologia terá mais condições de lidar com o ele, no futuro. 

Ana e Caroline têm o desejo de retribuir o incentivo que vêm recebendo em suas futuras atuações profissionais. Como reeducandas contratadas, o trabalho de monitoria já oferece essa oportunidade. Elas são a ponte entre as funcionárias do CTE e a população dos pavilhões. Levam informações sobre os cursos oferecidos, passam listas de inscrições e incentivam as companheiras a ler, estudar e a participar de atividades culturais.

Parcerias com as faculdades

Cerca de 200 mil pessoas privadas de liberdade vivem nas 181 unidades prisionais do estado de São Paulo. O maior sistema prisional da América Latina é gerenciado pela Secretaria da Administração Penitenciária (SAP). Vinculada a ela está a Fundação Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel (Funap), entidade pública, autônoma, criada em 1976 pelo professor que lhe dá o nome. Com base na LEP e na Resolução 391, a fundação desenvolve projetos que têm como principal objetivo a ressocialização de presos por meio da educação e do trabalho.

“Por força estatutária e do regimento interno, a Funap trabalha com pessoas que estão nos regimes fechado, semiaberto e aberto, com os egressos do sistema prisional e também com a vítima do delito”, explica Marcos de Godoy, diretor de atendimento e promoção humana da fundação. 

Na área educacional, a fundação atua em dois grandes eixos: o da qualificação e capacitação profissional e cidadania, e desenvolvimento humano e cultural. Conta com o apoio de outros órgãos, como o Centro de Inclusão Educacional da Secretaria de Educação do estado, que também atua no sistema prisional. Ambas são responsáveis pela educação formal – ensino fundamental e médio –, dentro das unidades prisionais. Nelas, atuam os professores: “Há escolas vinculadoras e salas vinculadas, é como se fosse uma extensão de uma escola pública dentro da unidade”, explica Godoy.

Também entre os programas está o da formação no ensino superior. É o âmbito em que as parcerias com as instituições de ensino superior podem significar avanços extraordinários para os reeducandos. “O projeto fomenta e possibilita a participação de universidades por meio de termos de cooperação técnica”, explica Godoy. São parcerias com universidades públicas e privadas para ofertar cursos profissionalizantes, livres, de ensino superior e leitura. 

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O Mackenzie, por exemplo, tem o projeto chamado Inclusão Social de Residentes do Sistema Prisional Brasileiro. A instituição oferece cerca de 15 bolsas de estudo integral para reeducandas do Centro de Progressão Penitenciária Feminina de São Miguel. São cursos tecnológicos de quatro semestres: processos gerenciais, gestão de RH, logística e gestão de marketing. 

“De segunda a quarta, pela manhã, as alunas do Mackenzie estudam na própria Funap, em salas de aula informatizadas e moodle da universidade. Às quintas e sextas, pela manhã, estudam no campus Mackenzie de Higienópolis (SP), para que se sintam integradas ao corpo discente da instituição”, explica Godoy.

Recentemente, a Funap contratou oito dessas reeducandas para estágios na própria fundação, com os mesmos direitos e deveres dos demais estagiários, dentro dos parâmetros do Centro de Integração Empresa Escola (CIEE). Já o Centro Universitário de Lins (Unilins) oferece o curso de gestão de logística por meio de EAD offline. 

“Nesse caso, participam reeducandos dos regimes fechado e semiaberto, porque o material foi desenvolvido para o sistema prisional e é levado até a unidade. O monitor de educação, contratado pela Funap de maneira remunerada, exibe aos alunos/reeducandos e os assessora. Dessa maneira, avançamos e trouxemos a universidade para dentro da unidade prisional. E está dando certo, tanto que a Unilins quer abrir mais 200 vagas para o próximo ano.” 

A Faculdade de Tecnologia Jardim (FATEJ), de Santo André, oferece graduação e pós em Gestão de RH para reeducandos do presídio da polícia militar Romão Gomes, na zona norte da capital paulista. As aulas na faculdade são transmitidas aos reeducandos por videoconferência, com possibilidade de interação. Participam reeducandos dos regimes fechado e semiaberto também. 

Todos os cursos são gratuitos, sem repasse de verbas entre as instituições. Godoy conta que com as parcerias as instituições de ensino superior também encontram possibilidades de oferecer atividades de extensão aos alunos. Um bom exemplo é o projeto Lendo a Liberdade. Ele explica a possibilidade de remição de pena por meio da leitura: 

“O detento pega um livro, fica com ele de 21 a 30 dias, faz a leitura, depois escreve um relatório cumprindo três requisitos: estética textual, fidedignidade e delimitação ao tema. Feito isso, encaminhamos para um parecerista. O parecerista – que leu a obra – valida o relatório. Na unidade prisional, uma comissão encaminha para o juiz. Havendo o aceite do juiz, a pessoa terá quatro dias remidos por cada livro lido. Se o detento ler um livro por mês terá 48 dias remidos. Se trabalha, estuda e lê, as remições são somadas”, detalha o diretor da Funap, Marcos de Godoy.

No Lendo a Liberdade, o papel das instituições de ensino é estimular os alunos a participarem como pareceristas. Godoy afirma que a Funap está aberta a propostas de parcerias e projetos dos mais variados modelos e cursos. O site é www.funap.sp.gov.br. O e-mail para contato é diaph@funap.sp.gov.br

*Esta matéria foi publicada originalmente pela revista Ensino Superior e escrita pela sua editora, a jornalista Sandra Moreira Seabra. Fique por dentro do ensino superior clicando aqui.

Escute nosso episódio de podcast:

Autor

Sandra Seabra Moreira


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