É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
Publicado em 07/04/2020
Nesta coluna, João Jonas Veiga Sobral reflete sobre os impressionistas e expressionistas dos tempos atuais de polarização e fake news
A França, no fim do século XIX, nos brindou com o Impressionismo – um movimento estético, especialmente nas artes plásticas, que rejeitava as convenções acadêmicas consolidadas e buscava captar impressões e percepções de cor, luz e sombra que a natureza oferecia nas diversas horas do dia. Os impressionistas fixavam-se mais nos efeitos ópticos e nas possibilidades sensórias do que na reprodução fotográfica do objeto pintado, por isso as figuras das telas eram destituídas de contornos óbvios e nítidos; as sombras, por exemplo, deveriam ser coloridas e as cores, por sua vez, deveriam revelar pureza das coisas. Evitava-se, normalmente, a mistura de tons. Enfim, buscavam traduzir suas impressões da natureza sem macular a real expressão dela. A pintura impressionista, segundo os pintores, não negava a objetividade daquilo que fora retratado, imprimia tonalidades da impressão como se a natureza os tocasse.
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No início do século XX, na Alemanha, os pintores expressionistas lançam um novo movimento estético que reage contra a objetividade dos impressionistas (que já haviam reagido à objetividade da pintura clássica). Esses novos pintores buscavam uma representação da vida e do mundo com pinceladas mais subjetivas e interiorizadas que fossem capazes de expressar os impulsos das paixões humanas e os tumultos do espírito diante da vida. Para os novos pintores do século XX, o quadro deveria revelar – por meio da expressão irracional, do distanciamento artístico, de imitação das artes primitivas, de tintas, de traço e de cores fortes – a expressão do mundo que se dá de dentro para fora.
Fora das pinacotecas, dos museus, das exposições, dos vernissages e do ambiente artístico, outra peleja se dá entre impressionistas e expressionistas. Nessa contenda, a discussão passa longe dos pincéis e de suas possibilidades de apreensão da realidade e do mundo. A nova demanda tinge de cores fortes e únicas as apreensões da realidade por meio do discurso oral e escrito. São pelejas diferentes, é claro, mas como uma tonalidade levemente parecida em relação ao entendimento da subjetividade e da objetividade.
Em tempos de polarização, de fake news e da possibilidade de que qualquer um munido de um celular possa ser repórter, cronista, colunista e editor de seu próprio texto, a assimilação da realidade se dá com mais ou menos subjetividade. Não que isso seja uma novidade dos nossos tempos e distante dos séculos passados e dos artistas de outrora. O problema é que, nos tempos modernos, as redes sociais permitiram que muita gente razoável e muita gente com panes emocionais e cognitivas tenham facilidade de expressar suas subjetividades e objetividades.
Os aparelhos conectados à internet permitiram que uma nova categoria de impressionistas e expressionistas povoem as ruas, os cafés, os clubes e os museus a céu aberto ou de teto fechado do século XXI. Com auxílio das novas tecnologias de comunicação, cada um desses novos ”artistas da vida” retratará a realidade conforme as disposições do olhar e da alma que tem. E fará de suas impressões as expressões de seu mundo, sem filtro na maioria das vezes.
Não é tão simples, é verdade, analisar os argumentos e os fatos da vida e, apenas com base neles, auferir uma conclusão ou consideração e julgar com distanciamento implacável A vida é cheia de matizes e tons. Uma avaliação minuciosa que descarte toda a subjetividade do espírito requer muito tempo e disposição para avaliar e reavaliar todas as possibilidades que envolvem o fato e o discurso. Quem já assistiu no cinema ou no teatro a Doze homens e uma sentença perceberá que, à primeira vista – como impressionistas ou expressionistas –, apreendemos os dados da vida em consórcio com nossas idiossincrasias, traumas, neuras, pressas, limitações intelectuais, intuições, experiências, dramas etc. O mesmo fato, na obra em questão, rememorado com outras disposições ofereceu aos personagens da trama – por aceitação, compreensão, cansaço ou afeição – uma nova leitura e, por sua vez, um novo parecer do julgamento anteriormente feito.
Fora das telas do cinema ou do palco, não é raro ouvir a seguinte pergunta retórica “é impressão minha ou…?”. Não importa o complemento da pergunta, o emissor se dirige ao interlocutor não para validação de seu entendimento, mas para que o interlocutor reformule o que expressou ou que explique melhor a sua expressão. Como também não é incomum que a expressão “eu tenho a impressão de…” seja carregada de uma certeza que não encontra sustentação plausível na expressão original, mas, a despeito disso, o responsável pela impressão responsabiliza o outro por sua apreensão, compreensão, dedução ou ilação como se seu entendimento fosse uma consequência natural da relação causa e efeito.
O autor de uma expressão não percebe, invariavelmente, que nela, embora não transpareça claramente no discurso, há nuances de tons, de vocabulário, de sintaxe, de gestos, de intenções de interesses e de ideologias captadas pelo interlocutor que, consequentemente, promove ilações adequadas e coerentes, mas com impressões incômodas ao emissor. Por outro lado, o receptor não percebe que suas impressões podem estar influenciadas também pelos mesmos processos. E mais ainda, é possível que esses processos apareçam de forma amena, sem que sejam definidores da interlocução estabelecida, mas crie nos interlocutores desconfiança de que sejam, sim, definidores e problemáticos.
E, assim, nesse quadro cheio de nuances estabelece-se, sem pincéis e sem pintura, um duelo pantanoso ou obtuso ou desconfiado entre os impressionistas e os expressionistas da vida cotidiana.
*João Jonas Veiga Sobral é professor de Língua Portuguesa e orientador educacional.