A escola brasileira mudou muito substancialmente nesses últimos cem anos. (Crédito: Shutterstock)
Há uma velha piada – conhecida dos professores – que narra a história de alguém que, acometido de uma doença que o fez dormir por cem anos, acorda em um mundo completamente transformado. Não reconhece mais os lares nos quais as conversas da hora do jantar foram substituídas pela solidão dos aparelhos eletrônicos; nem os bancos que já não contam com atendentes distintamente trajados, mas com máquinas operadas por cartão. Nas ruas não há mais bondes nem carroças, mas automóveis. Em meio a seu espanto, o herói de nossa piada entra em uma escola na qual vê um quadro-negro, um professor a fazer um ditado e suspira aliviado: “Enfim, um lugar que reconheço! Aqui nada mudou”.
Repetida à exaustão essa anedota supostamente deveria chamar a escola para um processo de renovação, pois ela teria estagnado no passado. É possível achá-la engraçada ou sem graça, mas ela é, sem dúvida, uma fonte de equívocos e preconceitos. Em primeiro lugar porque a escola brasileira mudou muito substancialmente nesses últimos cem anos. A escola de 1918 praticamente não tinha alunos negros, a de hoje conta com uma parcela substancial de afrodescendentes em seu corpo docente. Enquanto a primeira abrigava menos de 10% da população, a de hoje se estende para a quase totalidade de suas crianças. Mensurar mudança ou permanência a partir de alguns recursos técnicos – como lousa e giz, ditado e lição de casa – é se deixar embair por uma falsa compreensão do que realmente importa numa escola.
É possível inovar tecnicamente e, ainda assim, manter as relações escolares elitistas e alienadas, assim como o contrário. A essência do processo educativo reside no tipo de relação que se estabelece entre gerações que se encontram numa instituição voltada para a transmissão de um saber. E esta relação sofreu profundas transformações, sobretudo ao longo dos últimos cinquenta anos.
Além disso, a piada – assim como os clamores para que a escola se ajuste aos tempos que correm – parecem ignorar um elemento central da cultura escolar: o seu tempo próprio. Isso se espelha nos ritmos das atividades escolares (aulas, intervalos, anos letivos), mas não só. O tempo da escola não é o da produção fabril, na qual o “tempo é dinheiro” e precisa ser otimizado para maximizar o investimento. Ou, ao menos, não deveria ser. O tempo da escola é o da
skholé: tempo livre, tempo de formação que exige calma, que não resulta em um objeto tangível, mas em um processo cujos resultados são sempre da ordem do imprevisível. Por que, afinal, deveriam todos os domínios da vida social e cultural se curvarem ao tempo do capital?
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Autor
José Sérgio Fonseca de Carvalho