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A edição de 2018 da FLIP, a 16ª Festa Literária Internacional de Paraty, que ocorrerá de 25 a 29 de julho, homenageará a escritora Hilda Hilst (1930-2004), considerada por muitos críticos uma das maiores expressões em língua portuguesa.
Nascida em Jaú, interior de São Paulo, rica descendente de donos de terras, Hilda teve uma educação de elite e uma vida bastante intensa até os 36 anos de idade. Morou seis meses em Paris, namorou atores famosos (incluindo Dean Martin) e foi amiga de escritores eminentes, como Lygia Fagundes Telles, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes. Aconselhada pela mãe, em 1948 iniciou seus estudos de direito na Faculdade do Largo de São Francisco. A partir de então levou uma vida boêmia que se prolongou até 1964, quando se mudou de São Paulo. Moça de rara beleza, Hilda comportava-se de maneira muito avançada, escandalizando a alta sociedade paulista dos anos 1950-60.
Em 1966, mudou-se para a Casa do Sol, passando a viver ali com Dante Casarini. Em setembro do mesmo ano, morreu seu pai. Dois anos depois, Hilda casou-se com Casarini (de quem se separou em 1980, embora continuassem a residir na mesma propriedade). Ela ficou famosa por seus muitos casos amorosos, seus dois maços de cigarros diários, seus palavrões, seu alcoolismo, sua automedicação. Alguns de seus namorados, após o rompimento do relacionamento amoroso, continuavam a viver na Casa do Sol com novas companheiras. A imprensa apelidava Hilda Hilst de “
hippie chique”.
Escreveu por quase cinquenta anos e deixou uma obra de 41 volumes (que abrangem poesia, teatro, romance, novelas, crônicas), tendo recebido os mais importantes prêmios literários do Brasil. A necessidade do reconhecimento como escritora sempre foi buscada por ela, que procurou viver como profissional da escrita, apesar das dificuldades. “É tudo um mistério: eu fui linda, rica, tive uma vida deslumbrante, namoros, viagens…, mas agora parece que cagou tudo”, disse ela em entrevista à
Folha de S.Paulo, em 1998, às voltas com um processo da prefeitura de Campinas, por falta de pagamento do IPTU de sua propriedade. “Em pouco tempo a dívida passou de R$ 68 mil para R$ 140 mil ou mais, e dizem que em junho vai tudo a leilão, coisas vendidas por uma bagatela. Eu não tenho medo de morrer na miséria, acho que não é o meu carma; mas os bichos me preocupam.”
O feminino na psicanálise
Antes de tratarmos de alguns fatos específicos da vida e da obra de Hilda Hilst, vejamos o que a psicanálise fala sobre o feminino.
Sigmund Freud (1856-1939) disse, em seu último texto sobre “A feminilidade” (1936), que a psicanálise não deveria “descrever o que é a mulher”, já que é “uma tarefa irrealizável” desvendar o enigma do feminino e desbravar esse “continente negro”. E ele nos dá este conselho: “Se você quiser aprender um pouco mais sobre a feminilidade, interrogue a sua própria experiência ou então pergunte para os poetas”.
Ele nos deixa com a pergunta “O que quer a mulher?” (
Was will das Weib?), embora tenha criado a psicanálise e iniciado sua conceitualização ouvindo as mulheres. As teorizações de Freud lhe valem até hoje uma fama de misógino e a ira de algumas feministas.
Há uma primeira constatação da clínica freudiana que condiciona toda a teoria psicanalítica: a sexualidade é infantil. Ou seja, antes que haja diferenciação entre posições masculinas e femininas, o psiquismo humano é marcado e mapeado a partir das zonas erógenas corporais e dos objetos que as satisfazem na infância – a mãe e o pai –, que vão marcar nossa sexualidade e nossa humanidade.
Se o homem manifesta sua virilidade com a potência da ereção e todas as derivações possíveis do poder e do ter que seus aparatos lhe permitem acumular, a mulher entra igualmente no jogo acrescentando a maternidade e seus desdobramentos. Por outro lado, pelo fato inicial das particularidades das condições anatômicas do encontro sexual, a posição feminina precisa se moldar às condições fisiológicas do desejo masculino. Isso dá, forçosamente para a mulher, uma posição de “objeto do desejo”, enquanto o homem é requisitado a comparecer na posição de desejante. Nesse sentido, Freud assinalou: “A anatomia é o destino”. A “mascarada” feminina consiste em todos os cuidados ditos “femininos” para disfarçar, encobrir a sua falta fálica.
Outro famoso psicanalista, Jacques Lacan (1901-1981), dando continuidade às investigações freudianas, indagou: se o jogo masculino-feminino fosse tão determinado pelo biológico, por que, então, tantos desencontros, insatisfações, devastações, e outros tipos de maldições da sexualidade das quais ouvimos falar? Apesar da aparente equiparidade e complementaridade dos polos masculinos e femininos nos dias atuais, quase não há encaixe. Pela via da clínica psicanalítica, cotidianamente, e também da literatura, comumente, há algo descabido, desobediente a essa lei fálica.
Como falar do feminino em tempos de liberdade sexual? Ora, para responder a tal questão é preciso voltar a explorar as experiências de cada um e as “letras do poeta”, como sugeriu Freud — e vermos o que acontece quando “o poeta” é uma mulher.
O pai e a loucura
Hilda era filha única do fazendeiro de café, jornalista, poeta e ensaísta Apolônio de Almeida Prado Hilst. Sua mãe, Bedecilda Vaz Cardoso, que tivera um relacionamento anterior, era filha de imigrantes portugueses.
Quando Hilda tinha dois anos, seus pais se separaram, o que motivou sua mudança, com a mãe, para a cidade de Santos, em São Paulo. Seu pai, que sofria de esquizofrenia paranoide, foi internado em Campinas, tendo nessa época 35 anos. Até sua morte, passou longos períodos em sanatórios para doentes mentais.
A partir de 1951, Hilda foi nomeada curadora do pai. Em entrevista ao
Cadernos de Literatura, em 1999, declarou: “Quase todo o meu trabalho está ligado a ele porque eu quis. Eu pude fazer toda a minha obra através dele. Meu pai ficou louco, a obra dele acabou. E eu tentei fazer uma obra muito boa para que ele pudesse ter orgulho de mim [a voz embarga nas últimas palavras]. Eu estou ficando rouca, não é nada… Então eu me esforcei muito, trabalhei muito porque eu escrevia basicamente para ele. Eu pude fazer toda a minha obra através dele”. Ela contou que, quando Apolônio soube que teria uma filha mulher, sentenciou: “Que azar!”. “Aí eu quis mostrar que era deslumbrante”.
O pai e Hilda encontraram-se raras vezes. Passou alguns dias da adolescência, em 1946, na fazenda dele. A loucura do pai seduzia e assustava Hilda, e tornou-se uma obsessão. “Só três noites de amor, só três noites de amor, implorava o pai, sim, o pai, ele nunca fizera uma coisa como essa, sim, era Jaú, interior de São Paulo, um dia qualquer de 1946, sim, a filha deslumbrante, tremendo em seus 16 anos, sim, o pai a confundia com a mãe, a mão dele fechada sobre a dela, sim, o pai a confundia com a mãe, a confundia, sim?…”. A escritora ainda afirmou que não teve filhos para não transmitir a loucura do pai às próximas gerações.
Ela nunca teve medo de dizer que era “a perfeita edipiana” e que procurou em todos os homens o seu pai. Não economizava palavras para elogiar sua genialidade. Lembrava-se de cor de alguns de seus versos. “Escrever é sentir meu pai dentro de mim, em meu coração, me ensinando a pensar com o coração como ele fazia, ou a ter emoções com lucidez”, disse em 1978.
A própria Hilda falou, vinte anos depois, da relação entre a doença do pai e as críticas à sua prosa. “Acham meus textos esquizofrênicos porque há uma certa dificuldade com a pontuação e o fluxo de pensamento dos personagens, o dizer claramente, francamente, mas eu não acho que os textos sejam esquizofrênicos. Eu os leio tão bem.” Ela, que dizia ter se comunicado com o pai morto, acreditava que ele compreenderia completamente sua escrita que, para muitos, continua impenetrável, criada à luz da loucura e da “aura mágica” de seu pai.
A mãe de Hilda, no final da vida, também foi internada no mesmo sanatório em Campinas onde estivera Apolônio.
Criação, comunidade e erotismo na Casa do Sol
Alegando estar sob influência da leitura do livro
Carta a El Greco, do escritor grego Nikos Kazantzakis (1883-1957), Hilda decidiu afastar-se da vida agitada de São Paulo e, em 1964, passou a construir sua casa numa parte da fazenda de sua mãe. Em 1966, findos os trabalhos da construção, Hilda mudou-se para sua Casa do Sol, planejada detalhadamente para ser um espaço de inspiração e criação artística. A escritora viveu o resto de sua vida ali e teve muitos casos de amor. Nela hospedou diversos escritores e artistas por vários anos. Bruno Tolentino (1940-2007) e Caio Fernando Abreu (1948-1996) foram alguns dos hóspedes da Casa do Sol. Muitos outros passavam meses ou anos dividindo o teto e os cuidados da proprietária com os quase 60 cachorros que viviam lá.
Ali, a escritora também iria se dedicar, ao longo da década de 1970, à gravação, por meio de ondas radiofônicas, de vozes que, assegurava, seriam de pessoas mortas, principalmente as de seu pai e de sua mãe. No mesmo período anunciou a visita de discos voadores à sua propriedade, conforme mostra uma matéria do programa
Fantástico, da TV Globo.
Vale assinalar que a residência da escritora na região de Campinas influenciou fortemente a comunidade. Muitos professores universitários e intelectuais a visitavam. Parte de seu arquivo pessoal foi comprada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por meio do Centro de Documentação Alexandre Eulálio, Instituto de Estudos de Linguagem (IEL), em 1995, estando aberto a pesquisadores do mundo inteiro; e o restante, notadamente sua biblioteca particular, se encontra na Casa do Sol, sede do Instituto Hilda Hilst (IHH).
Após o falecimento da escritora, o amigo Mora Fuentes (1951-2009) liderou a criação do Instituto. O IHH tem como primeira missão a manutenção da Casa do Sol, de seu acervo e do espírito de ser um porto seguro para a criação artística e intelectual. Oferece estadia a artistas e intelectuais em processo de elaboração de suas obras.