A mobilização em torno do Dia Mundial de Conscientização do Autismo, em 2 de abril último, serviu também para desenterrar, na internet, um episódio de triste lembrança bombado em setembro passado. O fato ocorreu na escola argentina San Antonio de Padua, em Merlo, arredores de Buenos Aires, mas poderia ter sido registrado no Brasil ou em centenas de outros pontos do mundo. Pressionada por pais de alunos de uma das classes — que teriam até organizado uma “greve” impedindo que 24 das 35 crianças do grupo fossem à aula por um dia —, a direção trocou de sala um aluno com Síndrome de Asperger, uma das condições do Transtorno de Espectro do Autismo, o TEA. O garoto incluído chegou a comentar em casa a ausência dos coleguinhas, mas a mãe, inocente, atribuiu as faltas a uma chuva forte no período. A atitude dos líderes do San Antonio nem foi o que deixou indignados os familiares do menino e, no embalo, milhões de pessoas. O espanto veio do conteúdo da conversa dos “responsáveis” pelo “movimento” no WhatsApp, jogado na rede por uma tia do garoto transferido. Coisas do porte de “finalmente uma ótima notícia!”; “já era hora de fazerem valer os direitos da criança para 35 e não para uma só!”; “que ótimo para os meninos! Espero que possam estudar e estar tranquilos!” ou “um alívio para os nossos. Agora é esperar que isso seja oficializado”.
Ivan tem autismo e é filho de Andrea Coimbra (ao lado) | Divulgação
O caso argentino revela as barreiras erguidas diante da missão de abrigar pessoas com TEA em redes de ensino: falta de formação de educadores e líderes de escolas e desconhecimento das famílias, que geram preconceito diante do convívio de incluídos com outras crianças. “O argumento do despreparo tem sido usado como guarda-chuva de argumentos para justificar a recusa e até retirada de estudantes com autismo na escola regular. Muitos educadores entendem que esses alunos são ‘especiais’ e, para educá-los, é necessária uma preparação totalmente ‘especial’”, lembra Raquel Paganelli, mestre em educação inclusiva pela University College, de Londres, e integrante das equipes do Instituto Rodrigo Mendes e do portal Diversa. “Mas afinal: o que significa exatamente estar preparado?”, questiona.
A educadora identifica os pontos centrais da contradição. “Durante muito tempo acreditava-se ser possível generalizar pessoas com TEA a partir de um mesmo diagnóstico e, assim, padronizar estratégias. Atualmente sabemos que essa noção é simplista”, explica. “Ainda que apresentem diagnósticos iguais, duas pessoas podem reagir às mesmas intervenções de maneira distinta. A ideia de que a escola precisa antes estar pronta para só depois receber os alunos com deficiência é baseada na expectativa ilusória de um saber pronto, capaz de prescrever como trabalhar com cada criança.”
Raquel insiste: não existem receitas nesse sentido. “O ativo é a presença. O preparo do professor nesse contexto é resultado, sobretudo, da interação cotidiana com os educandos, a partir de uma prática pedagógica que valoriza as diferenças. Não há especialização capaz de antever o que somente será revelado no dia a dia. Por isso, é importante garantir a presença do estudante na escola. A equipe pedagógica precisa conhecê-lo bem para identificar meios de garantir sua inclusão.”
A Constituição de 1988, lembra Raquel, previa a educação para todos. Em 2008, com a ratificação na ONU da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o direito de qualquer estudante frequentar a escola regular independentemente de características, sem discriminação e em igualdade de oportunidades, passou a ser compreendido. No mesmo ano, o MEC lançou a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, com diretrizes para políticas públicas e práticas pedagógicas voltadas à inclusão escolar de pessoas com deficiência ou autismo. Mais recentemente, em 2016, entrou em vigor a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), com inovações como multa e reclusão a gestores que neguem ou dificultem o acesso de estudantes com deficiência ou autismo a uma vaga, proibição de cobrança de valor adicional nas mensalidades e anuidades para esse público e oferta de profissional de apoio quando necessário.
Pelos cálculos da ONU, existem perto de 71 milhões de pessoas com TEA no mundo, cerca de dois milhões delas no Brasil. Uma criança a cada 68 nasce com o distúrbio no mundo. A necessidade da ação no cotidiano é inegável, mas investimentos e parcerias com pesquisadores e instituições especializadas na formação de educadores, atualizando descobertas e evoluções na área, serão sempre importantes nas escolas e na elaboração de políticas públicas. “Inclusão é direito protegido por lei. As experiências se renovam porque o mundo se renova e lidamos com gerações”, constata a pedagoga, pesquisadora e escritora Talita Umbelino da Cruz, mestre em Educação com tese sobre acompanhamento da experiência escolar de adolescentes autistas e autora de vários livros sobre o tema, entre eles
Autismo e inclusão.
Talita faz questão de defender cursos, intercâmbios e consultorias para a formação e renovação dos professores envolvidos. “O autismo ainda é um enigma para pais e profissionais. Mas, com a evolução das leis, incluir hoje é menos um problema de acesso do que de formação e preconceito, sobretudo no sistema público. Muitas vezes, o aluno é colocado sob os cuidados de professores que não conhecem resultados de práticas e pesquisas catalogadas ou sequer a legislação. O professor vira vítima. Acaba por gastar do próprio bolso na busca individual e solitária de formação. Situação injusta porque, em tese, qualquer orçamento público para educação deveria contemplar parte da verba para esse tipo de formação”, afirma.
Tudo isso gera o que a educadora classifica de “exclusão dentro da inclusão”. “As leis determinam os parâmetros de busca dos objetivos, mas escolas e educadores não estão preparados para executar aquilo que foi definido. Como resultado, o docente sente-se excluído porque não sabe como agir. A direção da escola, que precisa achar uma alternativa para o desconhecido, como no caso argentino, também é em parte excluída. Há chance de exclusão parcial de outros alunos, que não foram educados para lidar com a situação. Por fim, o próprio aluno com deficiência e sua família ficam parcialmente excluídos, sem terem suas singularidades atendidas”, enumera.
A soma desses fatores, acrescenta Talita, resulta quase sempre em preconceito por parte de outros pais. A educadora lembra de um episódio ocorrido numa escola do interior de São Paulo para a qual prestava consultoria. Um menino com TEA foi incentivado por colegas a se despir no banheiro na escola. Em meio à brincadeira, saiu nu pelos corredores da escola. “Foi cobrado e acusado das maiores barbaridades por pais de outros alunos, como se isso fosse ao menos próprio na situação. Disseram coisas do tipo ‘é autista, mas para ser indecente e não respeitar os outros ele serve’ e outros absurdos do tipo. Em um ambiente com educadores e diretores formados e contextualizados certamente a situação seria neutralizada ou, no mínimo, amenizada”, aposta a educadora.
Recursos para essas ações de inclusão nas escolas públicas são escassos, como se sabe. A rede privada possui, no entanto, algumas ilhas de excelência. Caso do Colégio Pauliceia, de São Paulo. Dirigido pela pedagoga e psicóloga Carmen Lydia Trunci de Marco, a escola adota uma das mais arrojadas políticas de inclusão do país. Cerca de 200 de seus quase 600 alunos são incluídos – metade deles com os mais variados níveis de TEA.
Carmen Lydia (ao centro, em pé), com a equipe que dirige, no Dia Mundial de Conscientização do Autismo (Crédito: Arquivo Pessoal)
Mais de cem profissionais, entre psicólogos, professores, pedagogos e assistentes individuais estão envolvidos com incluídos no colégio. Cada aluno tem o grau de transtorno avaliado antes de iniciar as atividades. Dependendo da situação, poderá ser direcionado a uma turma regular, a um grupo especial ou a um assistente individual. Muitos deles têm o tempo dividido em dois estágios. Uma criança que oscila nas características entre o moderado e o severo, por exemplo, trabalha em um grupo especial e com a assistência individual. “O que aplicamos é fruto da soma do aprendido na prática, com tentativa, erros e acertos, com o retirado de estudos e experiências aprovadas no Brasil e no mundo”, resume Carmen Lydia.
Ivan Coimbra, com autismo severo (é não verbal e agitado) foi incluído no Paulicéia até os sete anos. Hoje, aos onze, frequenta uma escola especial, no modelo um profissional para cada aluno, nos EUA. É filho da modelo Andrea Coimbra e do biólogo molecular brasileiro Alysson Muotri, pós-doutor em neurociência e células-tronco pelo Instituto Salk de Pesquisas Biológicas e professor da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia em San Diego. Ao se unir a Andrea e assumir Ivan como filho, Muotri conspirou para a formação de uma bonita coincidência: hoje ele comanda, na universidade, a mais avançada pesquisa do mundo em busca de soluções científicas para o TEA. “Ivan foi atendido com eficiência. Há boas escolas inclusivas no Brasil, mas as americanas utilizam com maior frequência recursos educacionais como terapia e informática. Além disso, contam com suporte efetivo do governo. Na Califórnia, são públicas ou subsidiadas”, explica o pesquisador.
Hoje, o Pauliceia ajuda a educar adolescentes como Victor Baraldi Castro e Rafael Camargo de Oliveira. A psicóloga Gisele Baraldi e seu marido, Fábio Castro, pais de Victor, um menino apaixonado por vídeos sobre engenharia, destacam a abordagem multidisciplinar e a experiência da equipe na socialização e na evolução do comportamento do filho. “Os episódios de agitação e ansiedade hoje são mais amenos. Victor é verbal, se comunica bem e dá conta da maior parte de sua rotina. Mas ainda precisamos ficar ligados em detalhes como desligar o chuveiro ao sair do banho e não usar um vidro inteiro de xampu a cada lavagem de cabelo”, conta Gisele.
Rafael (de preto) e os irmãos Thiago (esquerda), Carolina e Lucas | Crédito: Arquivo pessoal
Rafael, 15 anos, terceiro filho da advogada Alessandra Ferraz (é irmão de Laura, 26, e Carolina, 19; e vive ainda com Thiago, 11, e Lucas, 9, filhos de Rogério, o segundo marido de sua mãe), tem diagnóstico de TEA moderado a severo. É alfabetizado, não apresenta barreiras intransponíveis de aprendizado e cognição, mas fala pouco. Alessandra tem uma teoria interessante sobre o papel do casal na trajetória desafiadora do filho. “Todo pai ou mãe responsável e com afeto idealiza o filho ao nascer. No caso daqueles sem transtorno, as opções e decisões vão mostrando ao longo do tempo que aquele ser idealizado não existe – e na pratica jamais existiu mesmo – para ninguém”, afirma ela. “A diferença, no caso do Rafael, é que o TEA se encarregou de nos revelar essa condição desmistificada logo no diagnóstico.”
No mundo exigente da inclusão, marcado por chances concretas e frequentes de ser vítima da mistura corrosiva de desconhecimento e preconceito, Alessandra por pouco não viveu, anos atrás, um constrangimento ao estilo do caso argentino. Numa certa manhã, ela recebeu em casa um telefonema. Do outro lado da linha, a mãe de um dos colegas de ensino médio de Carolina, hoje estudante de Medicina, pedia sua adesão a um abaixo-assinado para retirar da turma da filha um aluno com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). A resposta veio curta e grossa: “a senhora acabou de dar o fora mais grosseiro e imperdoável da sua vida: eu tenho um filho autista”. O telefone foi desligado em seguida, sem bom-dia nem passe bem. Quando o preconceito dá de cara com a informação, ele fica assim, exposto.
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