NOTÍCIA
Na língua viva e cotidiana, nem sempre a falta de concordância é sinal de desconhecimento
Publicado em 17/04/2018
Pesquisas recentes têm verificado que a falta de cumprimento às regras de concordância (e não só a elas) da gramática tradicional parece decorrer do próprio funcionamento da língua e dos processos cognitivos envolvidos no uso que o falante pratica.
Um desses estudos é de Flávia Orci Fernandes, doutoranda em linguística na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que se dedica desde 2013 a descrever e analisar a história da concordância especificamente em sentenças adjetivas (ou relativas) do português brasileiro – que são, grosso modo, orações equivalentes a adjetivos.
Exemplo de concordância plena nesse caso é a frase “Ela, que sabe matemática, ajudou seus colegas no trabalho final”. Já em “O importante é que o professor proponha diferentes atividades que envolva diferentes processos mentais” ocorre uma relação de concordância zero, em que só um dos termos da relação de concordância carrega os traços de pessoa, gênero e número (“O importante é que o professor proponha”), enquanto o outro não: a oração “que envolva diferentes processos mentais” é empregada pelo falante sem concordar com “atividades”.
– A concordância zero, vista pela gramática tradicional muitas vezes como um erro, indica as mudanças gramaticais que ocorrem na língua – afirma Flávia.
A tese dela é baseada em dados dos séculos 19 ao 21, de escrita e, quando possível, de fala, considerando a relação de concordância entre termos de uma frase como produto de todos os sistemas linguísticos que formam o idioma – gramática, semântica, léxico e discurso. A frase analisada acima, aliás, está no corpus da pesquisa Norma Urbana Linguística Culta no Brasil (Projeto Nurc), que gravou 1.500 horas de falas em cinco capitais brasileiras entre 1970 e 1978, reunindo o trabalho de 32 pesquisadores de 12 universidades do país. Na cidade de São Paulo, o projeto foi coordenado pelo linguista Ataliba Teixeira de Castilho, orientador de Flávia.
Atualmente o pesquisador coordena o projeto temático de pesquisa “Para a História do Português Brasileiro”, iniciado em 1998, e é editor geral da obra coletiva História do Português Brasileiro, que começou em 2011 e resultará em cinco volumes baseados em materiais de pesquisa como os do Projeto Nurc. Um dos capítulos da obra é sobre concordância, escrito por Castilho e mais cinco colaboradores, incluindo Flávia.
Fundamentada no Projeto Nurc, a Gramática do Português Culto Falado no Brasil (2006) já desconstruía o mito de que a falta de concordância teria correlação exclusiva com baixa escolaridade. Na verdade, a pesquisa mostrou que a elite letrada nem sempre concorda verbo e sujeito ao falar, principalmente quando o sujeito aparece no fim da sentença, bem depois do verbo.
São comuns na oralidade construções como:
“Chegou, depois de muita espera, reclamação e teimosia de minha parte, as peças que eu estava esperando da concessionária”.
A falta de concordância do sujeito posposto é recorrente em Portugal, alerta o professor Alexandre Monte, coordenador do núcleo pedagógico da Diretoria de Ensino da Prefeitura de São Carlos (SP). Ele fez um estudo descritivo-comparativo entre o português falado na cidade de Évora, em Portugal, e o falado em São Carlos, quando fazia doutorado na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).
– Em Portugal, encontramos mais falta de concordância quando o sujeito está posposto ao verbo. Frases como “Chegaram os livros” as pessoas falam “Chegou os livros”. O interessante é que entrevistei pessoas analfabetas nos dois países e a concordância não é uma questão de como se dá a escolarização das pessoas – ressalta Monte.
Por outro lado, de acordo com a pesquisa de Monte, no português falado em Portugal não há uma regra de concordância verbal variável como há no português do Brasil.
– Em Portugal, a regra tem um status semicategórico em relação à concordância verbal de 3ª pessoa do plural. Ou seja: a concordância está presente na maior parte das vezes, embora em alguns casos ocorra, sim, divergência da gramática padrão. São poucos casos em contextos específicos em que a não concordância ocorre – avalia o pesquisador.
Na amostra do português brasileiro, Monte identificou 48,2% de presença de concordância verbal. Já na amostra do português europeu, encontrou 93,1%. Para ele, o massivo contato entre línguas diferentes na história da formação sociolinguística brasileira, como idiomas africanos e indígenas, também pode explicar as diferenças de emprego de concordância entre o português brasileiro e o europeu, anotadas por ele em sua pesquisa.
– A dificuldade é, portanto, relativa, tendo em vista as pressões naturais entre as regras impostas (pela norma padrão) e as regras que efetivamente ocorrem nas relações cotidianas de fala e escrita. A concordância não pode ser descrita em termos de regras categóricas. A postulação de regras variáveis capta melhor o que ocorre aqui, dadas a complexidade dos fatores determinantes da concordância e a instabilidade em sua execução em nossa língua – explica Flávia.
A pesquisadora aponta que a concordância é uma das propriedades que sinalizam a conexidade sintática da língua – ou seja, a integração dos itens sintáticos em conjuntos que formem sentido – e é expressa pela morfologia disponível em cada sistema gramatical. Como no português brasileiro está havendo um processo de enfraquecimento morfológico, a concordância deixa de se expressar em alguns casos.
– Nesse processo, as regras prescritas nas gramáticas, já bastante confusas ou contraditórias entre si, tornam-se mais abstratas se comparadas às de uso, pois o falante passou a reinterpretá-las e a combiná-las com o quadro atual da morfologia – afirma Flávia.
A professora Maria Cristina Figueiredo, da Universidade Federal do Paraná, explica essa redução morfológica utilizando o verbo “cantar” como exemplo. Na gramática tradicional há seis combinações possíveis de pessoa e número: 1ª, 2ª e 3ª pessoas do singular e do plural. Só de olhar a desinência verbal, já é possível identificar o sujeito, mesmo que seja oculto. Ou seja, basta escrever “canto” para indicar que o sujeito é “eu” ou “cantas” para dizer que o sujeito é “tu”.
Já uma gramática que substitui “tu” por “você” e “vós” por “vocês” também é uma gramática de português brasileiro culto – usado pela grande imprensa, por exemplo – que mantém os seis pronomes, mas com a morfologia verbal reduzida, pois no cotidiano não são usadas mais as 6 desinências e, sim, 4: não há mais “cantas”, só “canta”; não há “cantais”, mas apenas “cantam”. Com isso, perdemos o hábito de fazer a concordância em todos os casos.
– E isso é português brasileiro culto. Ninguém fala mal de quem usa “você” ou “vocês”, porque ambos são tidos como padrão. Um telejornal que usasse “tu” e “vós” não teria audiência no Brasil, porque poucas regiões usam esses pronomes. Outro português brasileiro que é culto, mas informal, usa o pronome “a gente”, e com isso não usa mais a forma “cantamos” e de seis desinências passamos, na prática, a ter três – explica Maria Cristina, que é pós-doutora em linguística pela Universidade Nova de Lisboa.
Maria Cristina destaca que riqueza morfológica não tem relação com a inteligência dos falantes:
– Temos variantes no português brasileiro em que a marca de plural fica só no determinante, como em “os cara”, ou no possessivo “meus filho”, e aqui isso é visto como coisa de “gente burra”. No entanto, é uma gramática parecidíssima com a do inglês, que só tem marca de plural sobre o nome, como em “the yellow books” e ninguém diz que a gramática deles é “burra”.
Flávia Fernandes, da Unicamp, explica que a concordância atua de diferentes formas nas diversas línguas e, apesar de ser um fenômeno comum, não é obrigatório.
– O português é uma língua configuracional, ou seja, a posição dos termos informa sua função, fazendo com que a reiteração de morfologia seja dispensável. Já o inglês é uma língua que dispõe de poucos artifícios para o uso da concordância. Em “The boys are bad”, bad fica no singular. Já o chinês, por exemplo, é uma língua que não dispõe de morfologia própria para codificar a concordância.
A pesquisadora aponta que um exemplo de largo uso da concordância ocorre no latim. Nesse caso, os determinantes (adjetivos, numerais, artigos etc.) modificam a morfologia (gênero e número) do substantivo.
– É bom lembrar que falamos aqui da norma-padrão. Esse é um dos motivos pelos quais, no latim, a ordem dos termos não era tão importante quanto ela é para o português brasileiro, em que há uma relação equilibrada entre classes de palavras variáveis e invariáveis – avalia ela.
Para Flávia, as regras não estão diretamente relacionadas ao funcionamento real da concordância variável no português brasileiro. Fatores estruturais e funcionais influenciam a escolha de uma forma em detrimento da outra desde a formação do idioma.
– A neutralização das pessoas do singular e do plural, a posição do sujeito em relação ao verbo e a saliência fônica [de som] na relação singular/plural da forma verbal são exemplos que levam o usuário a marcar a concordância apenas nas posições iniciais da sentença, como em “Os cachorro bravo” e “As menina inteligente faz lição de casa”.
Já no caso do uso de plural no verbo “haver” em frases como “Haviam dez alunos na sala de aula”, esse desvio ocorre ironicamente devido à regra geral da concordância, segundo a qual uma marcação plural leva a outra marcação plural.
– Por isso é importante deixar claro que a concordância, seja verbal, seja nominal, foge aos padrões impostos pela prescrição tradicional das gramáticas porque, assim como qualquer outro fenômeno linguístico, é subjacente, primeiramente, ao nosso aparato cognitivo – explica Flávia.
Outro mito relacionado à concordância é o de que ela ocorre muito mais na fala do que na escrita. Segundo Flávia, é verdade que o usuário da língua tem menos tempo para monitorar sua produção linguística ao falar e está mais preocupado com a troca de conteúdo do que com a possibilidade de autocorreção. Ou seja, o falante é conduzido pelas “regras de uso”. Porém, essas regras estão presentes em situações de escrita, como bate-papos na internet e bilhetes, contextos nos quais o monitoramento também é menor.
– Na escrita o autocontrole parece maior a depender do gênero e do tipo de texto e até mesmo do contexto em que estamos inseridos. Em alguns tipos de textos, como comentários de assuntos mais informais nas redes sociais, por exemplo, os quais são praticados com rapidez e, por muitas vezes, com maior envolvimento do usuário, percebemos que há maior indício de ausência de concordância, tanto quanto na fala.
Monte aponta que existe uma grande confusão em achar que a língua falada é informal e a língua escrita é formal. Na verdade, não há tal oposição. Ele defende que as diferenças entre fala e escrita se dão em um continuum de estratégias discursivas e linguísticas, ou seja, tanto fala como escrita variam dependendo dos contextos de uso, de produção do discurso. O importante é apresentar tudo isso em sala de aula.
– Posso usar a língua falada em uma conversação espontânea informal com um amigo no barzinho, mas posso falar com você nessa entrevista, assim como posso ser convidado para uma conferência. São exemplos de língua falada em que há diferenças. Na escrita, posso escrever uma carta pessoal a um amigo, assim como escrever um texto acadêmico. Se eu pensar uma fala espontânea totalmente informal e uma escrita mais monitorada e formal, aí, sim, vou encontrar mais ausência de concordância na fala.
Monte, que também é professor da escola municipal de ensino básico Arthur Natalino Deriggi, em São Carlos, afirma que a escola precisa ensinar a concordância da norma culta padrão, mas de maneira reflexiva, sem se esquecer de mostrar a variedade popular e a existência de preconceito linguístico, já que o assunto desperta tensão social e a concordância não está imune à estigmatização.
– Do ponto de vista linguístico, semântico, não há diferença entre “eles vai” e “eles vão”, mas a gente sabe que há um preconceito, e claro que é função da escola ensinar os alunos a variedade culta da língua, mas é preciso destacar que há um português popular também parte do português brasileiro, e que não podemos desrespeitar. Além de tudo, é preciso mostrar que essa variação popular não é caótica e aleatória, ela também tem regras.
Para dar conta dessa diversidade, o professor procura levar a língua em uso no dia a dia para dentro da sala de aula, apresentando os diferentes gêneros textuais das várias situações de comunicação.
– Eu trabalho também a oralidade e não só a escrita, já que a língua falada e a escrita são duas modalidades importantes. É preciso mostrar toda essa diversidade linguística que nós temos no Brasil e ela aparece nos textos e na língua viva. Recentemente trabalhei a música Cuitelinho. Nela, há muita ausência de concordância verbal e nominal. Vem da cultura popular e não tem autoria, mas grandes intérpretes como Nara Leão e Milton Nascimento a interpretaram. É um bom exemplo de como mostrar que esse português existe, mas não goza de prestígio social. Ajuda a fazer ponte com a norma culta de maneira reflexiva, e mostra que a língua é viva, não é engessada.
Para Maria Cristina Figueiredo, trabalhos como a Nova Gramática do Português Brasileiro, organizada por Castilho, e produções acadêmicas recentes que abordam as variações do português brasileiro, mostrando as variedades da língua mesmo entre pessoas com formação universitária, permitem um mapeamento de características do português brasileiro frente ao da gramática padrão, o que se reverte em instrumento para os alunos de Letras e professores da educação básica oferecerem um ensino mais abrangente nas escolas.
– O português padrão existe porque a gente tem a escrita e quer conseguir conversar com um cara que vive do outro lado do oceano, com um que viveu há dois séculos, e com quem vai viver daqui a dois séculos. Mas precisamos tirar o caráter sacrossanto da gramática padrão, porque, da maneira que a tratamos, parece que ela foi escrita por deus com um raio em uma pedra.
Para professores como Maria Cristina, para ter chance de sucesso no ensino de português, não funciona chamar o aluno de imbecil e dizer que ele fala errado. O resultado disso tem sido uma insegurança linguística generalizada.
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