NOTÍCIA
Mudanças na língua ocorrem sem que se perceba e se revelam quando menos se espera; o que a escola deve fazer?
Publicado em 25/05/2017
A primeira mudança que menciono é a construção “se + infinitivo”:
“Para se fazer uma pesquisa”; “para se listar a bibliografia”; “para se redigir uma tese” é construção que vejo praticamente sem exceções.
Durante algum tempo, ainda recentemente, eu cortava o pronome quando lia as últimas versões dos trabalhos de alunos. Depois, passei apenas a assinalar, circulando. Eles perguntavam o que aquilo significava, eu dava minha avaliação, eles estranhavam, alguns “me” seguiam, outros diziam que achavam a ausência do pronome muito estranha, e o mantinham.
Já estou conformado, especialmente porque encontro a construção em textos de pessoas que têm quase a minha idade e também porque, de vez em quando, me “ouço” proferindo essa estrutura.
Anote-se que ela obedece a uma tendência do português brasileiro, a de preencher cada vez mais o lado esquerdo da frase. Um pouco curiosamente, embora a flexão verbal pudesse dispensar os pronomes sujeitos, eles estão cada vez mais presentes.
Talvez inconscientemente, estejamos nos preparando para uma conjugação verbal com cada vez menos morfemas de número e pessoa (como o francês).
“Credibilidade” deixou de ser uma propriedade do político ou de um órgão (como a TV ou o Judiciário): agora é uma característica do povo, do cidadão, até do torcedor:
“O povo perdeu a credibilidade na Justiça”
“O torcedor perdeu a credibilidade no time ou na seleção” etc.
O “futuro” (como em: “Ganharemos a Copa”) desapareceu.
Agora todos dizem:
“Vamos ganhar a Copa” (mesmo o Parreira, acho).
No dia da aula sobre o futuro, os professores começam assim:
“Hoje vamos estudar o futuro. Página X: estudarei, estudarás, estudará…”.
Jornais como Folha de S.Paulo e O Globo vendem coleções.
Semanalmente, leio que o jornal “traz” o volume ou o disco tal.
Traz? Sim, agora todos trazem: não veiculam, não vendem um disco ou livro: trazem; não citam um autor: trazem Fulano etc.
A construção, que ainda assinalo em textos de alunos, parece que entrou definitivamente na língua (vejo-a cada vez mais em jornais, mesmo nas colunas).
Em vez de impessoal, parece que está se tornando reflexiva (mas não sei fazer uma análise sintática razoável da construção; só sei que não adianta – seria uma bobagem – dizer que é um monstrengo, um erro etc.).
Dentro de não muito tempo, ninguém mais perceberá que é um “problema”. Até porque o verbo tem sido flexionado como em “Tratam-se de questões sociais”.
“Cujo”? Ninguém mais diz “cujo”.
“Outro dia, alguém que acabei não anotando o nome…” em vez de “cujo nome acabei não anotando” é o tipo de construção dominante.
Acrescente-se um dado histórico. Livros de história da língua atestam usos como “Cujas [de quem] sõ estas coroas tã esplandecentes?” e “Cujo [de quem] filho és?”, estruturas que não são usadas nem mesmo por aqueles (como eu), que ainda empregam “cujo”.
Ou seja, sua história é bem mais longa e complexa do que pode parecer a quem simplesmente defende “cujo”. Ou seja: defendem empregos bem mais atuais do que os atestados na história mais antiga, cujos empregos não defendem mais…
O que este caso ensina?
Que as mudanças que ocorrem diante de nós podem parecer decadência, mas esta sensação não afeta as novas gerações, assim como as velhas gerações não lamentam o desaparecimento dos antigos empregos de “cujo”.
O ditongo “ou” de formas verbais do passado também já bateu as asas: todos dizem “falô /acabô” etc. – mas, e isso é bem relevante, todos ainda mantêm o ditongo “eu” em “bebeu / comeu” etc.
O que fazer diante disso? Simples: tratar os fatos como fatos. Especialmente, ficar atento ao fato de que as mudanças não são aleatórias. Se desapareceu o ditongo em “falou”, não desapareceu em “bebeu”. Significa que há uma ordem da língua que se impõe aos rumos da mudança. A língua só muda onde pode mudar. Ou não muda de qualquer jeito.
Estou me queixando, reclamando? Não. Estou constatando (bastante informalmente). Para evitar certas leituras, insisto: não estou me queixando. Não acho que esses fatos sejam problemas.
Faz tempo que o [r] dos infinitivos verbais caiu (na fala, mas também na escrita “informal”, como se vê em algumas mensagens trocadas entre jovens que foram associados aos “rolezinhos”:
“Bebe / beja” por
“beber / beijar”.
O que a escola deve fazer, então? Desprezar usos como o de “cujo”, dos futuros (tipo “estudarei”) e do mais-que-perfeito (mandara/ vendera/ partira)?
Minha posição é a de que não. Mas ela não significa que estas formas devam ser decoradas e impostas em todos os casos. Devem ser estudadas em textos – o que implica que a escola deve ler textos antigos, não só jornais, charges ou letras de música (desconte-se o exagero). Notas inteligentes a tais textos permitirão tanto sua leitura quanto um razoável domínio de estruturas que desapareceram ou estão em franca minoria.
E na escrita, essas formas devem aparecer? Ser obrigatórias? Boas aulas levam alunos a dar-se conta de que a escrita não deve ser automática. Cada construção deveria ser selecionada. Numa releitura, sempre necessária, o aluno lê seu texto como se de outro, com olhar analítico. A pergunta será a mesma: mantenho a forma ou ela está aqui só porque não avaliei seu peso – estilístico, gramatical?
Com isso, cada palavra e construção terá, no texto, a função que deve ter: sua escolha dependerá do gênero textual, da situação, de a quem o texto se destina etc.
Parece exigência demais? Bem, é para isso que há escolas.