Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)
Publicado em 07/03/2016
Um outro olhar sobre a questão da Base Curricular Nacional
Perguntei ao professor Vasconcelos por que razão eu deveria aprender certos conteúdos, que, esforçadamente, ele tentava ensinar. Autoritário, como era apanágio de docentes numa época de ditadura, respondeu: Quando fores grande, irás precisar…
Já sou “grande” e quase nada desse “currículo” me fez falta, não me fez mais sábio, nem mais feliz. Refletindo sobre esse incidente crítico, concluí que, na década de 1950, o professor Vasconcelos agia em função de crenças, entre as quais a de que basta definir um conjunto de áreas e conteúdos, e torná-los obrigatórios em nível nacional, para que a aprendizagem de tais conteúdos aconteça.
O velho professor não sabia que currículo é muito mais do que impor o ensino de um determinado repertório de conteúdos. Por isso, a escola não me ensinou os conteúdos da Base Curricular Nacional (BCN) de então, apenas decoreba entretanto apagada da memória. Mais tarde, quando compreendi que, por detrás da BCN da ditadura de Salazar, havia ideologia, preconceitos pedagógicos, perdoei o professor, que se havia socializado numa escola, que, em pleno século 21, continua a fazer estragos – uma escola segmentada em anos e áreas, que, por ter herdado princípios da Revolução Industrial, naturalizou o insucesso.
Em finais do século passado, fui relator de um “parecer” do Conselho Nacional de Educação sobre uma proposta de reorganização curricular, processo semelhante àquele por que passaram os autores da proposta de BCN brasileira. Saturado da pressão de associações profissionais, que pugnavam pelo aumento da carga horária das respetivas disciplinas, cansado de jogos partidários de bastidores, que afetavam a seriedade requerida pela tarefa, verificando os efeitos do corporativismo e da baixa política refletidos no documento final, optei por ironizar.
Na sessão de aprovação do relatório, perguntei se teria havido um exercício de futurologia por parte de quem acreditava na pertinência dos conteúdos selecionados, quando os alunos de então virassem adultos. E lancei algumas questões pertinentes: Por que se remete para uma aula semanal o exercício da cidadania e o desenvolvimento sociomoral? Por que se faz referência a “ano de escolaridade” e “aula” num documento de reorganização curricular de finais do século 20?
As autoridades na matéria não se dignaram responder. O parecer foi aprovado e publicado no Diário Oficial. Perdera-se mais uma oportunidade de fazer política pública séria. Decorridos alguns anos, a lei foi revogada, para dar origem a outra excrescência normativa eivada de naturalizações.
Nesta primeira contribuição no quadro da consulta pública sobre a BCN brasileira, detenho-me em breves considerações num domínio não contemplado na análise crítica da versão inicial do documento – a proposta de BCN está viciada, contaminada por naturalizações: aula, ano de escolaridade etc. Suspeito de que os seus autores desconheçam que há outros modos de conceber currículo em novas construções sociais de aprendizagem, nas quais se desenvolve currículo subjetivo a par de um currículo nacional (e universal) adequado à produção de currículos comunitários. Uma escola do século 21, isenta de cartesianismo e de obsoletos resquícios da escola do século 19. Uma escola onde acontecem educação integral e aprendizagem significativa, como aquelas recomendadas pelo Bruner e pelo Vigotski, que, infelizmente e por razões óbvias, não puderam participar da elaboração da BCN brasileira.
*José Pacheco é educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)