NOTÍCIA

Edição 223

Comer bem é cultura

Alimentação escolar pode melhorar o processo de aprendizagem, além de ajudar na formação de hábitos mais saudáveis. Lidar com a questão pede conscientização e integração entre gestores, pais e educadores

Publicado em 04/11/2015

por Débora Pinto

 

© Gustavo Morita
Horta comunitária da Emei Dona Leopoldina, em São Paulo: oportunidade para as crianças verem todo o trajeto do alimento, do plantio à mesa

 
A imagem é recorrente: o menino gordinho, normalmente de óculos, se empanturra de salgadinhos em frente à TV. Fruto desse mesmo imaginário, só que transposto ao ambiente escolar, talvez o mesmo menino apareça comendo o mesmo salgadinho em um canto, escondido do assédio dos colegas.
No ambiente escolar, porém, os momentos de alimentação vão muito além do lanchinho consumido no intervalo. Todos os dias, 42,6 milhões estudantes da Educação Básica consomem refeições em escolas pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
A confirmar a imagem do menino gordinho, indicadores divulgados em março pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) mostraram o avanço da obesidade infantil no país: 7,3% das crianças menores de 5 anos estão acima do peso; porcentagem que sobe a 33,5% entre os 5 e 9 anos, caindo para 20,5% na adolescência.
No mundo adulto, o avanço de doenças como diabetes e pressão alta demonstram que, aliado ao sedentarismo, o modo como nos alimentamos nas últimas décadas – sem economizar açúcares, gorduras e outros diferentes tipos de substâncias nocivas – coloca em risco a saúde das gerações futuras.
Busca de saídas
Para combater essa bomba-relógio, algumas ações começam a tomar corpo. No último mês de março, a Prefeitura de São Paulo aprovou uma lei que irá inserir gradualmente alimentos orgânicos em todas as escolas da rede municipal, trazendo ainda mais luz para a questão e seus desdobramentos dentro da escola.
Entre esses desdobramentos está a qualidade da própria aprendizagem. O cérebro, assim como todo o organismo, precisa de nutrientes que, combinados de forma dinâmica, garantam o seu bom funcionamento, o que se acentua no caso de crianças e adolescentes em razão de seu processo de desenvolvimento físico e cognitivo. Deficiências nutricionais (ou o excesso de substâncias danosas, como o açúcar) podem causar desequilíbrios com potencial de se converter em dificuldades na aprendizagem, ou em comportamentos agressivos ou apáticos, igualmente nocivos.
“Ainda que possa parecer óbvio, nem sempre se relaciona a falta de concentração de um aluno e um possível desequilíbrio nutricional”, alerta a nutricionista Denise Carreiro, autora de Alimentação e distúrbios de comportamento. “Muitos professores e gestores escolares ainda se surpreendem ao refletir sobre como os alimentos podem interferir diretamente na aprendizagem”, completa a especialista.
As experiências vividas na escola podem, além de interferir na saúde do aluno e em sua capacidade de aprender, sedimentar maus hábitos alimentares e influir na formação do paladar.
Oficialmente, as escolas brasileiras seguem diretrizes da Pnae que apontam para uma alimentação equilibrada e natural com incentivo, à criação de hortas escolares. Em acréscimo, há o manual “Dez passos para a promoção da alimentação saudável nas escolas”, criado pelo Ministério da Saúde (veja quadro na pág. 40), que indica a priorização de alimentos naturais, com destaque para verduras, frutas e legumes, e a restrição a alimentos ricos em açúcares, sal e gorduras. Também é preconizada, tanto pelo Pnae como pelo MS, a criação de uma cadeia de conscientização e capacitação que abarque gestores, alunos, educadores, a comunidade e especialistas.
A chave da conscientização
Mudar hábitos, no entanto, é missão difícil. Em primeiro lugar, em razão da falta de informação ou da crença em falsos parâmetros. Como, por exemplo, a de que os sucos de caixinha industrializados, ricos em açúcares e corantes, são saudáveis por trazerem sabores de frutas.
“Precisamos entender que é difícil educadores e gestores tratarem da questão alimentar como algo central se eles mesmos não tiverem essa consciência”, explica Mônica Pilz Borba, pedagoga e gestora do Instituto 5 Elementos – Educação para a Sustentabilidade.
Após coordenar dezenas de projetos que abarcam sustentabilidade e alimentação em escolas de diferentes regiões, Mônica viu que o assunto ainda é, para muitos, uma espécie de tabu. “Veem o cuidado com a alimentação como uma coisa de ”ecochatos”, algo de gente ”alternativa”. A desinformação unida à publicidade pesada da indústria alimentícia gera impactos profundos na escola, na medida em que incide tanto sobre os alunos quanto sobre os pais e educadores”, completa.
Para estimular o espírito crítico em relação ao tema, a paulistana Escola Viva criou um projeto para alunos do ensino médio para fazê-los observar a relação entre publicidade e os hábitos alimentares. “Este espírito crítico é a base para que eles possam não apenas entender as escolhas realizadas na escola como também fazer as suas próprias de forma mais consciente no futuro”, explica Gisele Pires Milani, coordenadora pedagógica da escola. Em matérias como ciências, história e português, principalmente no ensino fundamental, há um esforço para que a alimentação seja um assunto corrente, abordado a partir de diferentes perspectivas. “Todos os lanches são fornecidos pela escola e mesmo na cantina restringimos quase que completamente alimentos gordurosos ou açucarados”, aponta Gisele.
Alunos de diferentes anos realizam projetos em que pesquisam como os alimentos são escolhidos e preparados, fazendo entrevistas com nutricionistas. Os professores fazem suas refeições com os alunos e têm liberdade para interferir, sempre de forma cuidadosa, se notarem que alguma criança está com dificuldade na hora de se alimentar. “Criamos uma cultura que valoriza o alimentar-se, o estar em volta da mesa. É claro que conhecer os alimentos e seus nutrientes é muito importante e também incentivamos esse processo. Mas tudo ganha outra dimensão quando os alunos percebem que esse é um assunto importante para todos”, complementa Gisele.
Cheiros e sabores
Na Emei Dona Leopoldina, também em São Paulo, a integração da alimentação ao cotidiano escolar é ainda maior, sendo vivenciada pelos alunos como um grande ciclo.  A escola conta com uma horta de temperos e alimentos utilizados diariamente no preparo das refeições das crianças, que participam dos cuidados do local. Os professores fazem as refeições com os alunos, e todos os dias fica exposto sobre a mesa um dos temperos da horta, presente na merenda. “Os alunos são incentivados a sentir o cheiro e o sabor do tempero e a identificá-lo quando estão se alimentando”, explica a diretora, Márcia Covelo.
Os resíduos orgânicos que surgem ao final de cada refeição são utilizados na composteira e no minhocário, retornando à terra na forma de adubo orgânico. “Desta forma, as crianças aprofundam a percepção sobre como os alimentos são produzidos, sua importância para a sua saúde e que é possível se alimentar de maneira ao mesmo tempo saudável, natural, nutritiva e gostosa”, diz Márcia. A escola trabalha atualmente na elaboração de um livro de receitas, que será oferecido para a comunidade.
O efeito no entorno é visível. “Há pais que nos procuraram para saber como preparamos os nossos alimentos.  É mais uma reverberação do que estamos realizando aqui”, relata a diretora, explicando que o livro é decorrência desse processo.
Nem sempre, porém, os pais aceitam as mudanças na alimentação oferecida pela escola. Essa quebra de hábitos às vezes é vista com desconfiança, afinal muitas famílias têm costumes bastante arraigados.”No início, enfrentamos bastante resistência, mas, com estratégias de aproximação, conquistamos a confiança e também o paladar dos pais”, relata Marisa Monteiro, diretora do colégio Ofélia Fonseca (SP), particular. A mãe de um aluno, pesquisadora da área de nutrição e alimentação saudável, ofereceu à escola o projeto “Comida de verdade”. “Achamos a proposta muito positiva e decidimos levá-la adiante”, conta. Para convencer os pais de que valia a pena investir nos alimentos naturais e oferecer novidades nutritivas e saborosas às crianças, eles foram convidados a participar de degustações. “Eles puderam se aproximar e entender que se tratava de algo simples, mas muito importante, e que esses estímulos seriam positivos para as crianças”, aponta Marisa. A ação, unida a conversas e palestras sobre o tema, gerou um nível de consenso que permitiu a implantação e manutenção do projeto.
“A alimentação pode ser efetivamente nutritiva de maneira simples. Basta buscar informação e seguir princípios descomplicados para efetuar grandes mudanças. Se não for possível comprar orgânicos, por exemplo, o ponto inicial é oferecer legumes, verduras e frutas e o máximo possível de alimentos naturais e preparados na própria escola. Sem esquecer que a grande potência dessas ações está em conferir a elas o sentido do aprendizado sobre a própria nutrição e saúde, algo que pode não apenas ajudar na escola, mas reverberar de forma positiva pelo resto da vida desses alunos”, enfatiza Denise Carreiro.

10 passos para a promoção da alimentação saudável nas escolas
Elaborados com o objetivo de propiciar a adesão da comunidade escolar a hábitos alimentares saudáveis e atitudes de autocuidado e promoção da saúde, os “Dez passos” são um conjunto de estratégias complementares entre si, que não precisam seguir uma sequência rígida. Os passos indicados:
1. A escola deve definir estratégias, em conjunto com a comunidade escolar, para favorecer escolhas saudáveis;
2. Reforçar a abordagem da promoção da saúde e da alimentação saudável nas atividades curriculares da escola.
3. Desenvolver estratégias de informação às famílias dos alunos para a promoção da alimentação saudável no ambiente escolar, enfatizando sua corresponsabilidade e a importância da participação nesse processo.
4. Sensibilizar e capacitar os profissionais envolvidos com alimentação na escola para produzir e oferecer alimentos mais saudáveis, adequando os locais de produção e fornecimento de refeições às boas práticas para serviços de alimentação e garantindo a oferta de água potável.
5. Restringir a oferta, a promoção comercial e a venda de alimentos ricos em gorduras, açúcares e sal.
6. Desenvolver opções de alimentos e refeições saudáveis na escola.
7. Aumentar a oferta e promover o consumo de frutas, legumes e verduras, com ênfase nos alimentos regionais.
8. Auxiliar os serviços de alimentação da escola na divulgação de opções saudáveis por meio de estratégias que estimulem essas escolhas.
9. Divulgar a experiência da alimentação saudável para outras escolas, trocando informações e vivências.
10. Desenvolver um programa contínuo de promoção de hábitos alimentares saudáveis, considerando o monitoramento do estado nutricional dos escolares, com ênfase em ações de diagnóstico, prevenção e controle dos distúrbios nutricionais.

Autor

Débora Pinto


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