NOTÍCIA

Edição 220

A educação onde o aluno está

Direito assegurado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, o atendimento educacional em ambiente hospitalar ainda é uma realidade para poucos no Brasil. Mas ajuda até a melhorar a saúde do paciente

Publicado em 03/08/2015

por Patrícia Sperandio

 

© Gustavo Morita
Classe hospitalar no Hospital São Paulo, na capital paulista: direito assegurado e auxílio ao bem-estar da paciente

 
Quando faltava apenas um mês para o encerramento do ano letivo de 2014, Ketelyn Oliveira dos Anjos, de 15 anos, precisou ser hospitalizada para a realização de uma cirurgia. A jovem, que desde os 5 anos passa por tratamento para doença renal crônica, cursava então o 8º ano do ensino fundamental em uma escola pública estadual, na periferia da zona leste de São Paulo.
“Quando eu soube que ficaria internada, não parava de pensar na minha escola. Fiquei com medo de perder o ano inteiro, já que por causa da minha doença eu tinha muitas faltas”, lembra Ketelyn. O que a estudante e a mãe dela, Elivania Vieira de Oliveira, não sabiam é que ela não precisaria ficar afastada dos estudos por causa do tratamento médico.
A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e outras resoluções complementares garantem o direito à escolarização aos alunos que estão impedidos de frequentar o colégio por questões de saúde. Por meio da chamada classe hospitalar, o estudante internado, que vive em casas de apoio ou que passa por tratamento ambulatorial ou domiciliar tem o direito de receber atendimento pedagógico educacional. Traduzindo em miúdos: ser acompanhado por educadores que propiciem os conteúdos que teria na escola regular.
Pedagogia hospitalar
Ao ser internada no Hospital São Paulo, na zona sul da capital paulista, Ketelyn foi convidada a participar do Programa de Atendimento Educacional ao Escolar em Tratamento de Saúde do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Assim, a estudante conseguiu avançar para o 1º ano do ensino médio.
Foi no ambiente hospitalar que Ketelyn – que quer ser médica nefrologista – passou a se interessar mais por matemática. Segundo a professora Paola Ribeiro da Silva, isso aconteceu quando a estudante começou a escrever receitas médicas de brincadeira. “Um dia ela se sentou ao meu lado e me mostrou uma receita que tinha escrito. A partir daí, como uso o material hospitalar como recurso pedagógico, começamos a incluir essas receitas nas atividades correntes realizadas no hospital”, relata a docente.
A pedagoga Léa Chuster Albertoni, coordenadora do programa da Unifesp, ressalta que cada unidade de saúde tem sua identidade e monta sua própria forma de trabalho. No caso do Hospital São Paulo, o foco é manter o vínculo do estudante com a escola de origem, favorecendo o retorno dele ao ensino regular. “A escola tem uma função muito importante na vida da criança. Então, nós procuramos colocá-la em contato com o professor referência, o coordenador e os colegas da escola de alguma forma, seja pela internet ou pelo telefone”, explica Léa.
Na avaliação de Maria Teresa Mantoan, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e uma das maiores defensoras da educação inclusiva no país, esse é o caminho ideal para a proposta pedagógica desenvolvida no contexto hospitalar.  “É muito importante que esse atendimento não seja só para que a criança tenha um momento de distração e relaxamento, mas para que ela possa, estando em condições, ter um prolongamento da sua sala de aula e estudar o mesmo que seus colegas estão vendo naquele momento.”
Déficit de vagas
Entretanto, o atendimento escolar no ambiente hospitalar formalmente estabelecido entre instituições de educação e saúde ainda é uma realidade distante para muitos estudantes. A primeira classe hospitalar foi instalada em 1950, no Hospital Jesus, no Rio de Janeiro (RJ). Segundo levantamento realizado por pesquisadores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), o número de hospitais com atendimento pedagógico-educacional passou de 30 para 70 entre 1997 e 2000. Hoje, 155 dos cerca de 6 mil hospitais públicos e privados do país, 2,58% do total, abrem espaço para as salas de aula.
Apesar do avanço da modalidade, principalmente após a década de 1990, a professora Eneida Simões da Fonseca, da Faculdade de Educação da Uerj, ressalta que a classe hospitalar ainda é muito desconhecida e negligenciada. “Existe uma falta de interesse não declarada pela educação. Se não há interesse com a criança saudável, imagine com uma criança doente”, lamenta.
Segundo dados do Censo Escolar do Inep, em 2014 apenas 3.968 alunos da Educação Básica do país estudaram em salas adaptadas de hospitais. O levantamento, porém, não considera os atendimentos àqueles que estão em tratamento domiciliar ou que vivem em casas de apoio. Além disso, há a suspeita de que os dados estejam subdimensionados em função de o preenchimento ser feito pelas escolas. Suspeita que ganha corpo quando os números do Inep são comparados com algumas iniciativas regionais. Não há, também, estimativas de quantos estudantes necessitem, em média, desse tipo de serviço.
Um dos principais motivos apontados por especialistas em educação para esse atendimento incipiente é o desconhecimento da sociedade de que a educação é um direito de todos, sem exceção. Um levantamento realizado pelo programa da Unifesp aponta que 93% das famílias das crianças e jovens em tratamento de saúde na instituição não conhecem seus direitos à educação. “A maioria dos pais é extremamente zelosa com seus filhos. No entanto, vemos que a educação tem um lugar mais distante e que a prioridade, nesse momento, passa a ser o tratamento”, explica a pedagoga Léa Albertoni.
O desconhecimento não atinge só a família dos estudantes. “É muito comum entrarmos em contato com a escola de origem para comunicar sobre a internação de uma criança e a diretora não conhecer a modalidade de ensino”, relata Léa.
 

© Gustavo Morita
Durante a internação, a aluna-paciente Ketelyn dos Anjos revelou ou descobriu sua vocação: quer ser nefrologista

 
Para reverter esse cenário e buscar atender às legislações que amparam e legitimam o direito à educação em contexto hospitalar, algumas iniciativas têm sido tomadas em âmbito regional. Em 2007, o governo do Paraná reconheceu essa modalidade educacional como política pública e criou o Serviço de Atendimento à Rede de Escolarização Hospitalar (Sareh). Ofertado em instituições que mantêm termo de cooperação técnica com a Secretaria de Estado da Educação, o programa é desenvolvido por três professores e um pedagogo em cada entidade conveniada. “Hoje, temos 18 instituições de saúde no estado que participam do Sareh, atendendo mais de cinco mil alunos por ano”, afirma Thais Gama da Silva, técnica pedagógica do Departamento de Educação Especial e Inclusão Educacional da Secretaria.
A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo distribuiu, no ano passado, uma cartilha que reúne orientações para a abertura e o funcionamento das classes hospitalares. Além disso, o órgão – que afirma realizar 700 atendimentos desse tipo por mês – está estudando a possibilidade de publicar uma resolução que organiza o trabalho curricular e as atribuições de aulas dos professores no âmbito esta­dual ainda neste ano. “O objetivo é tornar as orientações da cartilha um documento normativo”, afirma Neusa Rocca, coordenadora do Centro de Apoio Pedagógico Especializado da Secretaria.
Em sua fala durante a 1ª Jornada Interestadual de Apoio à Educação do Escolar em Tratamento de Saúde, realizada em maio em São Paulo (SP), o psicólogo e professor Lino de Macedo, do Departamento de Psicologia da Aprendizagem do Desenvolvimento e da Personalidade da Universidade de São Paulo (USP), lembrou que houve um tempo – não muito distante – em que a escola era privilégio de poucos. Hoje, felizmente, a escola é um direito de todas as crianças. “Eu diria que talvez uma criança ou um jovem suporte viver sem o pai ou a mãe, mas terá muita dificuldade em viver sem a escola”, diz Macedo.
Aprender faz bem à saúde
A educação no contexto hospitalar também ajuda a reduzir os efeitos negativos da internação, diminuindo a ansiedade e o medo antes de cirurgias e outros procedimentos. “Já tivemos casos de a criança começar a aula com dor e, ao chegar a enfermeira para administrar a medicação, ela dizer que já não precisava mais, pois não sentia mais nada”, conta a professora Paola.
Os benefícios da pedagogia hospitalar são confirmados por um estudo realizado pela professora Eneida, da Uerj, e por Ricardo Burg Ceccim, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Os pesquisadores observaram grupos de crianças internadas e concluíram que aquelas que receberam atendimento do programa escolar hospitalar pareciam entender e aceitar melhor a necessidade de hospitalização. Além disso, elas se recuperaram mais rapidamente do que aquelas que não tiveram atendimento pedagógico.

Educação além dos muros da escola
Desde a Constituição Federal de 1988, o Estado tem a obrigação formal de garantir educação fundamental a todos os cidadãos. Com a formulação posterior de uma série de leis e documentos legais, existe hoje um leque de modalidades de atendimento educacional que permitem procedimentos didáticos específicos e adequados às necessidades do aluno da Educação Básica. Entre as possibilidades estão o ensino domiciliar, o ensino itinerante, as residências terapêuticas e as de tratamento para dependentes químicos.
Todas essas situações estão previstas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, que assegura o atendimento educacional em classes, escolas ou serviços especializados sempre que não for possível a integração do estudante ao ensino regular.
Para o promotor Antonio Carlos Ozório Nunes, do Ministério Público de São Paulo, a conscientização da sociedade de que o direito à educação significa não só a escolarização, mas também a aprendizagem, é fundamental para a inclusão de todas as crianças e jovens no sistema educacional. “É preciso que as famílias e as organizações sociais e civis se mobilizem para cobrar do Estado o direito à educação”, defende.
A advogada especialista em direito educacional Gislaine Caresia ressalta que, no caso de ameaças ou violações de direitos de crianças e adolescentes, a família deve procurar o Conselho Tutelar e registrar denúncia. Outro caminho é procurar a Justiça. “Com as provas da violação, qualquer pessoa com mais de 18 anos pode apresentar representação junto a uma delegacia de polícia, ao Ministério Público Federal, ao Ministério Público Estadual ou à Comissão de Direitos Humanos da OAB.”

Autor

Patrícia Sperandio


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