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Fobia de números

Adrenalina, sudorese, aceleração dos batimentos cardíacos. A ciência começa a mapear os sintomas da ansiedade matemática no cérebro e a jogar luz sobre as formas de ajudar alunos que sofrem só de olhar uma tabuada

Publicado em 03/07/2012

por Redacao

Fóbica matemática assumida, Letícia Francischeti, 18, ficou em choque ao descobrir no cursinho que ainda precisaria aprender muito para passar no vestibular. “Primeiro senti raiva da escola, por não ter me preparado melhor. Depois, senti raiva da própria matemática, por ser tão difícil”

Ao tirar da mochila o livreto com as tabuadas, Rafaela Bicheski gelou. Não, ela não teria uma prova em breve, nem nenhuma tarefa escolar com as temidas tabuadas. Aos 33 anos, ela estava apenas organizando o material escolar da filha Isadora, de 8. Mas o trauma com a matemática, que começou ainda no ensino fundamental, se mostrou vivo como nunca. “Ao encontrar o livrinho me lembrei de um dos meus maiores medos de infância. Não que eu não saiba a tabuada, eu sei, decorei, mas toda vez que preciso usá-la, meu cérebro trava”, conta.

Para Letícia Francischeti, de 18 anos, o problema com a matemática piora durante as provas. “Leio o enunciado e me dá branco. Nem o pouco que sei sobre o assunto aparece na hora que devia. Fico até com dor de cabeça”, relata. O nervosismo de Letícia, assim como o de Rafaela, ao se depararem com a matemática em certas situações faz com que elas não consigam acessar os conhecimentos que têm. Como em uma espécie de fobia, a emoção negativa é tão forte que chega a provocar sintomas físicos e paralisa o indivíduo. Essa é uma característica típica de quem sofre de um problema conhecido como ansiedade matemática.

Origem neural
A ansiedade matemática foi identificada pela primeira vez na década de 1950, mas apenas recentemente seus efeitos no cérebro puderam ser comprovados. Pesquisadores da Universidade  Stanford, nos Estados Unidos, fizeram ressonâncias magnéticas em alunos de 2º e 3º ano enquanto eles tinham de resolver problemas de adição e subtração, para entender o que acontece dentro do cérebro das crianças com sintomas de ansiedade matemática. Ficou constatado que essa condição produz efeitos no cérebro semelhantes aos apresentados em pessoas que sofrem com fobias de aranhas ou cobras, por exemplo.

O estudo de Standford, publicado em 20 de março no periódico Psychological Science, tem o mérito de pela primeira vez identificar a base neural da ansiedade matemática, mostrando que o problema é real, precisa ser identificado e tratado. “Apesar de o fenômeno ter sido identificado há mais de 50 anos, ninguém tinha se perguntado como a ansiedade matemática se manifesta em termos de atividade neuronal”, disse ao jornal de Stanford o líder da pesquisa, Vinod Menon, professor de psiquiatria e ciências comportamentais. 

Todas as 46 crianças que participaram do estudo passaram por testes cognitivos e de inteligência, para demonstrar que não apresentavam outras condições que dificultariam sua performance com os números. Elas também responderam a questionários sobre como se sentiam em relação à matemática, para identificar se apresentam altos ou baixos níveis de ansiedade à matemática.

Além de levarem mais tempo para resolver os problemas e darem respostas menos precisas, as crianças que demonstraram pelo questionário ter ansiedade alta apresentaram um aumento da atividade nos centros do medo do cérebro, o que leva a uma queda na função das áreas responsáveis pelo processamento de informações numéricas. O cérebro das crianças com ansiedade matemática ainda teve mais conexões entre a amígdala e as regiões que regulam as emoções. Como as amígdalas são uma espécie de “sistema de alarme” do cérebro, sua ativação indica aumento na produção da adrenalina, de sudorese e aceleração dos batimentos cardíacos. A pesquisa sugere, portanto, que ansiedade matemática interfere momentaneamente na capacidade de raciocínio, o que torna difícil às crianças encontrar as respostas às questões propostas.

Barreira profissional
O próprio líder da pesquisa reconhece, entretanto, que se trata de um fenômeno ainda em estudo, para o qual faltam critérios de diagnóstico estabelecidos. Usando padrões diferentes de classificação, a porcentagem de pessoas com a ansiedade varia entre 5% e 25% da população, dependendo do estudo. O certo é que a condição não implica necessariamente  notas baixas na disciplina ou falta de competência para ela.

Segundo explica o professor de Stanford, uma pessoa pode apresentar uma boa habilidade para matemática e ainda assim ter como resposta emocional a ela os sentimentos de medo e preocupação – principalmente quando se trata de situações como resolver uma questão em frente da classe, ou fazer exames. Com o tempo, quem sofre com a ansiedade matemática tende a evitar o tema, o que limita o desenvolvimento de seu potencial e as escolhas de carreira profissional.

Foi exatamente o que aconteceu com Rafaela. O pavor que sentia das tabuadas – e mais tarde das frações e equações – a impediu de ter certas ambições profissionais. “Quando tive de escolher uma carreira, nem pensei nas mais concorridas porque sabia que não passaria num vestibular porque pensava comigo: ‘sou péssima em matemática’. Também nem prestei o vestibular para a federal do Paraná”, lembra. Rafaela acabou se formando em secretariado executivo em uma faculdade particular de Curitiba.

Letícia também trocou de opção de carreira por causa da sua aversão aos números. “Antes eu queria ser engenheira civil, mas então percebi que a matemática é muito difícil. Agora penso em prestar vestibular para medicina veterinária na Universidade de São Paulo”, afirma. Mas para isso, sabe que precisará de boas notas em todas as matérias, incluindo a temida matemática.

Medo não é doença
Sem que haja sequer um protocolo padrão para diagnóstico do problema, também faltam estudos para determinar com segurança as causas da ansiedade matemática. Pesquisadores envolvidos com o tema há anos, porém, têm várias pistas sobre os motivos do problema e como diferenciá-lo de outros tipos de dificuldades com
a matemática. 

Para começar, o psicólogo João dos Santos Carmo, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e parte de um grupo de pesquisa que se dedica ao tema, alerta que a condição não é doença ou transtorno, ou seja, não tem nenhuma razão de ordem fisiológica, nem genética. “Temos outros problemas, como a discalculia, que pode ser comparada a uma dislexia porque tem um lado neurológico. Temos a acalculia, que é relacionada a algum acidente cerebral, em geral um trauma que atinge uma parte do cérebro impedindo a pessoa de compreender a matemática. Mas não existe nenhuma relação direta entre essas doenças e a ansiedade matemática”, garante.

No caso de Letícia, o problema é claramente de ordem psicológica. “Às vezes resolvo um exercício complicado, mas, de nervoso, erro numa continha básica de subtração”, afirma. Seu “medo” em relação à matemática começou ao entrar no Cursinho da Poli e descobrir que precisaria aprender uma grande quantidade de conteúdo que não teve no colégio se quisesse passar em um vestibular concorrido. “Foi um choque. Primeiro senti raiva da escola, por não ter me preparado melhor. Depois, senti raiva da própria matemática, por ser tão difícil.”

Segundo Santos, a ansiedade matemática é uma condição emocional, que ocorre em geral ligada a uma história de fracasso em aprender a disciplina, ou a alguma experiência negativa pontual, mas muito pesada, como ter sido exposto a uma condição vexatória em frente da turma por um professor de matemática. Significa dizer que um fracasso em aprender certo conteúdo desencadeia uma aversão à matemática, e esta, por sua vez, faz com que a pessoa evite ainda mais o contato com a disciplina, provocando o efeito de uma bola de neve.  

O exemplo de Rafaela ilustra bem como ocorre o fenômeno. Sua rejeição à disciplina começou com seu pai tentando lhe tomar as tabuadas: “Meu pai não compreendia como eu poderia não saber aquilo. Ele cobrava, me deixava muito ansiosa, e não me deixava usar os dedos. Eu queria agradá-lo, estudava, mas na hora não saía. Então ele ficava nervoso comigo, acabava gritando, eu chorando. Minha mãe tinha de separar a gente”, relata.

O trauma com a tabuada foi só o começo dos problemas de Rafaela com a matemática. Ela criou um bloqueio, passando a acreditar que simplesmente não tinha capacidade de entender a matemática. “Acho que isso é algo que vou carregar para mim para o resto da vida”, lamenta. Agora, sua maior preocupação é não deixar que sua filha repita seu caminho e desenvolva um sentimento ruim em relação à disciplina. “Nunca contei para a Isadora que tenho esse medo; eu a encorajo muito, digo que é boa em matemática mesmo quando erra um exercício. Quero que ela tenha uma experiência bem melhor, que seu futuro não seja limitado por algum problema com a matemática”, afirma a mãe.

Para todos
Na avaliação de João do Carmo Santos, Rafaela está certa em se preocupar e agir para não transmitir o medo da matemática para a filha. “A nossa cultura – e em todo o Ocidente de forma geral – consagrou a matemática como algo difícil, que exige demais, que não é para qualquer um. Também há o mito de que os meninos têm mais facilidade que as meninas. Família, mídia e escola reproduzem a imagem da matemática ligada ao gênio. A rigor, nada disso é verdade”, diz o professor da Ufscar. “A matemática ensinada no colégio é instrumental e plenamente alcançável por qualquer um, até mesmo por alunos com algum déficit intelectual”, garante.

Ansiedade mensurada
Para tentar identificar com mais precisão quais alunos apresentam dificuldades em matemática por causa da ansiedade, o grupo de estudos da Ufscar desenvolveu uma escala para medir o grau de ansiedade à disciplina, que já foi testada por 1.600 estudantes. São descritas 25 situações, como, por exemplo, “como se sente um dia antes da prova de matemetática”, “como se sente ao folhear o caderno de matemática”. Em cada questão há cinco opções, que vão de nenhuma ansiedade até ansiedade extrema. Com as respostas em mãos, o professor faz os cálculos de qual é o nível de ansiedade de cada aluno, e em quais situações.

“O questionário é um instrumento muito simples e dá para ver a predominância do problema. As medidas fisiológicas, como o aumento da pressão arterial, a aceleração do coração, a quantidade de cortisol na saliva, a gente não consegue medir em sala”, diz Santos. Mas o professor afirma que a medida emocional a partir da declaração do aluno tem se mostrado bastante precisa. Quem tiver interesse em aplicar o questionário pode entrar em contato com o professor [jcarmo@ufscar.br]: ele e seu grupo ensinam como aplicar e ler os resultados.

Para a professora Márcia Regina de Brito Dias, integrante do grupo de estudos de Psicologia e Educação Matemática (Psiem) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), um dos pontos que originam muitos dos casos de ansiedade matemática está relacionado à passagem da aritmética para a álgebra. Segundo ela, por volta do 6º ano, quando o aluno passa para um conteúdo que exige abstrações e, se não tiver os conceitos anteriores bem fundamentados, buscará “caminhos alternativos”.

“Por exemplo: quando não consegue ter entendimento sobre um tema, usa um recurso alternativo que é a memorização de passos do problema. Isso não permite que o estudante generalize e aprenda significativamente problemas semelhantes, mas com procedimentos de solução diferentes”, afirma.

Márcia Regina explica que ao receber suas primeiras notas baixas, seguidas de repreensões da família e de seus colegas, a criança começa a desenvolver algum grau de ansiedade que, caso nada seja feito para reverter o quadro, pode ir se acumulando até o que o indivíduo evite ao máximo situações que envolvam os números.

Outra especificidade da matemática que faz com que ela tenha maior potencial para causar ansiedade do que as demais matérias escolares é o fato de que ela exige a resolução de problemas, um processo cognitivo que visa transformar uma dada situação em uma situação dirigida a um objetivo, quando um método óbvio de solução não está disponível, diz Márcia Regina. Ou seja, o aluno que tiver dificuldade em qualquer ponto desse processo, não chega ao resultado. “Muitos estudantes não conseguem resolver problemas matemáticos com história porque não conseguem ler e compreender a história e, com isso, não conseguem chegar à estrutura matemática do problema, perceber quais estruturas matemáticas estão sendo exigidas”, cita a professora como exemplo.

Fugindo do problema
Para que alunos não desenvolvam a ansiedade matemática, é preciso primeiro que os professores percam seu próprio medo da disciplina e se preparem bem para ensiná-la. “Um dos estudos no nosso grupo mostrou que muitas estudantes de pedagogia escolhem esse curso para fugir da matemática, mas depois vão para o magistério ensinar os fundamentos para crianças”, afirma Márcia Regina.

E pessoas “fugindo” da matemática costumam encontrar cursos que não preparam adequadamente sobre metodologias de ensino do conhecimento matemático, constata João Carmo Santos. “Fizemos um “teste” com 50 professores da rede pública sobre o que é “contagem” e qual a importância de ensiná-la. Nenhum dos 50 conseguiu dar uma definição exata. E é algo que está na base das operações e ajuda a formar o conceito de número”, diz.

Para acabar com esse ciclo, o professor deve assumir como sua primeira tarefa o autoconhecimento, aconselha do professor da Ufscar. Ou seja, perceber quais são suas dificuldades emocionais e de conteúdo, rever seu conhecimento de matemática e procurar se renovar em relação a novas metodologias de ensino da disciplina. Dentro de sala, quando o professor percebe que o aluno fica ansioso em relação à matemática, deve se concentrar em descobrir qual é a dificuldade conceitual dele. “Por exemplo, há crianças que não conseguem identificar visualmente a diferença entre os sinais de multiplicação e soma. Isso gera uma aflição: a criança fica em situação de desamparo e nem consegue dizer o que não está entendo”, diz Santos. Caso não consiga resolver o problema em classe, o professor deve procurar um serviço especializado.

Alguns professores têm como receita aliar a matemática a atividades como jogos e música. Uma das experiências de sucesso é a do professor de música da rede estadual de São Paulo Moisés de Araújo. Conquistados pelas flau­tas, vio­lões, surdos e pratos, os alunos passaram também a usar as quatro operações matemáticas para calcular os valores musicais das notas. “Um ajuda o outro – a matemática e a música – e tudo fica mais fácil”, comemora Araújo. O projeto, que começou no início do ano passado, teve resultados praticamente imediatos. As notas da escola no Saresp (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) para os alunos do 3º ano pularam de 48,8 para 69,4 de 2010 para 2011. “Deu tudo tão certo que devemos não só continuar, mas ainda aperfeiçoar o projeto”, diz o professor.

Ruins de conta

A matemática não costuma ser o ponto forte dos alunos brasileiros. Basta olhar os resultados de algumas avaliações nacionais e internacionais para reconhecer o tamanho do problema. Um levantamento da organização Todos Pela Educação apontou que, em 2009, somente 35 cidades brasileiras (o equivalente a 0,6% do total) tinham 50% dos seus alunos com o aprendizado de matemática adequado à sua série. No último Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), o desempenho em matemática dos estudantes brasileiros de 15 anos foi o mais baixo entre as três áreas medidas – em leitura, o Brasil alcançou 412 pontos, em Ciências 405, e em Matemática, apenas 386. Os resultados mais recentes do Saresp (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) mostram que somente 0,3% dos estudantes do 3º ano do ensino médio têm conhecimento de matemática desejável para a série. 


Claro que o problema de aprendizado não pode ser explicado apenas pela ansiedade matemática, mas por uma série de deficiências estruturais no sistema e métodos de ensino. Contudo, o esforço para que todos os alunos aprendam bem os conteúdos da disciplina passa necessariamente pelo reconhecimento dessa condição e adoção de procedimentos de apoio ao aluno.  

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