NOTÍCIA
Há cinquenta anos, havia quem quisesse o povo analfabeto, alegando que o aprender a ler era um acto subversivo. Leia aqui o texto de José Pacheco
Publicado em 10/09/2011
Acontece um tempo nas nossas vidas em que ficamos órfãos dos nossos filhos. Porque os amamos e os queremos com vida própria. Porque, como diria o Kalil Gibran, “uma árvore não cresce à sombra de outra árvore”. Porém, o nascimento de um neto é como o regresso de um filho pródigo. Voltamos ao tempo de contar histórias. Mas, desta feita, não apenas as que falam de duendes e fadas. Outras histórias assomam na memória dos avós. O envelhecimento ilumina a memória de longa prazo. E é frequente que eu conte ao Marcos histórias do tempo em que fui menino. Para o Marcos são tão reais e verosímeis como as que falam de princesas encantadas e de príncipes.
Fui com o Marcos até à beira do rio. Fui de mão dada com o meu neto, para fruir a confiança absoluta que segura a minha mão. Uma criança pertence ao que está acontecendo à sua volta. Ela é o que está acontecendo. Se o acompanho na identificação com o aqui e agora, reencontro-me com o movimento livre da criança que fui, reaprendo a tudo ver como se fora a primeira vez.
Enquanto ele seguia com o olhar o barco que ligava as margens, eu cerrava os meus olhos e via barcaças de carvão coladas à amurada de Massarelos (que fazer, para tornar mais leve o peso da memória?), ouvia o chape-chape das águas comprimidas entre as madeiras, o ranger das pranchas que ligavam o cais às barcaças. Quais formiguinhas, jovens de cesto na cabeça corriam sobre as pranchas como atletas em cama elástica, gestos dançarinos suspensos sobre o vazio, tem-te-não-caias, num equilíbrio precário. Ou milagre de S. Nicolau, pois, se a todo o momento, se adivinhava o escorregar na prancha lodosa e a queda, não me recordo de ter visto cair nas águas uma sequer.
– Avô, o que é aquilo? – perguntou o Marcos, olhando a ponte. Enquanto respondia, via-me em raids suicidas sobre o arco de betão incompleto da que viria a chamar-se “Ponte da Arrábida”. Transpúnhamos as águas e estávamos na outra margem. Na Afurada, éramos corsários lançados à abordagem de traineiras amarradas ao cais. Fugíamos, nadando, e depositávamos os tesouros (um pedaço de cordame, um pedaço de rede roubada, um prego enferrujado, não importava qual fosse o produto do saque.) nas ruínas de uma fábrica abandonada na encosta sobranceira ao rio, que era a nossa mina de Aladino.
Quando o sol acordava, encontrava-me atento ao agonizar do peixe, no fundo de um caíco. E, quando o dia se extinguia em vermelhos gritos, encontrava-me debruçado na varanda em frente ao Douro da minha infância, na contemplação do acostar dos barcos rabelos ao cais de Gaia, absorto em viagens imaginárias.
Em infantis lucubrações também ficava, quando me sentava junto da Miquinhas, que lavava a roupa carregada à cabeça, escadas do Codeçal abaixo. Certo dia, um empurrão despertou-me das divagações e fez-me mergulhar no rio. Lembro-me de ter vindo à superfície, depois de engolir uma substancial quantidade de líquido misturado com sabão. E de não ter um braço salvador à minha espera. Só risos e incitamentos. Foi nesse dia que descobri que sabia nadar.
– Avô, olha! Olha! – O Marcos estendia os braços, para alcançar as gaivotas que voavam perto. Os olhos do Marcos encheram-se de gaivotas. Os meus viram, por instantes, o cadáver do João rodeado de gaivotas. Faria dezoito anos no dia em que escolheu o rio para partir sem barco e sem regresso. As mesmas gaivotas que, fugindo a um mar revolto de Inverno, pousavam nos vagões do carvão, em S. Nicolau.
Como o avô tivera tempo de as observar! Em manhãs gélidas, expostas ao vento cortante de Dezembro, as crianças de há cinquenta anos esperavam horas a fio, nas filas de receber duas batatas raquíticas e um rabinho de bacalhau, o “bodo de Natal dos pobres”. As mesmas crianças que disputavam com as gaivotas os restos de sável que as peixeiras abandonavam no cais. Nesse tempo, a fome não matava apenas crianças na Etiópia, nem nos entrava em casa sob a forma de notícia de TV. Não havia televisão, e a fome era convidada que se impunha na mesa de muitas crianças da beira-rio.
O olhar da criança que fui toldou-se de uma névoa cristalina, que confundi com a que vinha descendo sobre as margens. Os olhos do Marcos estavam prenhes da luz que vinha do rio. Não era apenas o olhar, mas todo o corpo do Marcos que estava envolvido na contemplação dos reflexos nas águas. Sem que tivéssemos dado por isso, os candeeiros já tremeluziam. Deixámo-nos ficar por ali. E nem demos pelo anoitecer.
Empreendemos o regresso, passando em frente à antiga escola. Desta vez, não foi o Marcos quem perguntou; fui eu: – “Queres saber o que foi esta casa, antigamente?”
Enquanto lhe falava do meu tempo de escola, via-me no Portugal cinzento de há cinquenta anos. Havia quem quisesse o povo analfabeto, alegando que o aprender a ler era um acto subversivo. Os miúdos ranhosos, os “selvagens da beira-rio”, como lhe chamavam, eram um estorvo. Entregavam-lhes uma caneta de aparo, para molhar no tinteiro e fazer cópias, ditados. Davam-lhes uma lousa e uma pena, para copiar tabuadas, fazer contas, problemas. Davam-lhes bofetadas, bolos nas mãos…
Quando soava a sineta, alheios aos avisos, imprecações e insultos do mestre-escola, partíamos para o cais da Ribeira, onde a vida nos esperava para ser aprendida.
Ao nascer, perdíamos o aconchego e protecção do útero materno. O murmúrio das águas envolvia-nos numa nostalgia de líquido amniótico, que lavava as feridas recebidas na luta pela sobrevivência. Era curto o tempo de ser criança. Há quarenta anos, deixei a seita dos Tigres da Vitória, desertei dos renhidos combates com os Índios da Cordoaria, deixei dezenas de amigos junto ao Douro da minha juventude. E fui pela vida.
Enquanto caminhávamos, o Marcos deleitava-se em descobertas, e eu afogava-me em reminiscências lúgubres. Imagino que o meu neto reagisse com um sorriso às descrições do quotidiano das crianças de há cinquenta anos. Mas não me sobrou coragem para lhe contar histórias de meninos a quem a vida cedo roubou os sonhos.
A cultura ocidental não prepara as crianças para a difícil transição entre o mundo do imaginário e o mundo real. Existe a dificuldade de explicar às crianças que nem tudo acontece como nos contos de fadas. Mas também que nem tudo tem por força de se subordinar à dureza dos dias. Há cinquenta anos atrás, cedo se privava as crianças do mundo maravilhoso da invenção. No tempo em que o avô do Marcos foi criança, sublimava-se a fealdade no cadinho de uma fantasia que reinventava os dias. Sem adivinhar o que o Manoel de Barros viria a escrever, as crianças de há meio século também sabiam que “tudo aquilo que não é inventado é mentira”. Como sabiam que o Carlos Amaral Dias viria a sentenciar: que o se passa passa-se nas margens.
Por isso, íamos até às margens do Douro. No cais da Ribeira, tudo era possível.
Leia aqui os outros textos já publicados na série inédita e exclusiva do educador português José Pacheco:
Herrar é umano
Olhares e modos de ver
In illo tempore
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Entre dois fogos
Mais uma história da Ana
La porte-plume redevient oiseau
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