NOTÍCIA
Quem estuda à noite enfrenta hoje um arremedo de ensino: horas-aula são achatadas e a evasão é bem maior. Apenas 3,5% dos ingressantes na Fuvest em 2006 saíram do noturno.
Publicado em 10/09/2011
Alceu Luís Castilho e Fábio de Castro
Agência Repórter Social
Os alunos do ensino médio noturno vivem diante de uma mentira: a garantia legal da mesma qualidade proporcionada pelo curso diurno. O encolhimento das horas-aula oferecidas à noite tornou-se tão evidente que, no Acre, a Secretaria da Educação resolveu assumir o problema e exibi-lo à sociedade. Mas, no Brasil, ainda predomina o jogo de faz-de-conta. Arremedo do diurno, o ensino noturno atende cada vez mais a periferia e o aluno mais necessitado, que precisa trabalhar durante o dia. Assim, tende a sintetizar as desigualdades do país.
Os números da Fuvest são gritantes em relação à exclusão social de quem faz o noturno. Apenas 398 (3,5%) dos 11.402 alunos matriculados em 2004 estudaram exclusivamente à noite – quase quatro vezes menos que o percentual de inscrições (12,4%) de oriundos do noturno em relação ao total. Esse percentual, por sua vez, exibe por si só a falta de confiança de quem estuda à noite: eles representam 43% do total de alunos do ensino médio público no país, mas nem tentam entrar em instituições como a Universidade de São Paulo.
A luz amarela está acesa para o noturno. Ou não: em uma das escolas selecionadas pelo Ministério da Educação (MEC) entre os melhores projetos para o ensino noturno, só após muita insistência a direção conseguiu que o poder público iluminasse a região – e ajudasse na prevenção da violência. A exploração sexual ronda estudantes de escolas como a Professor Eidorfe Moreira, em Belém (PA), ou Professora Esther da Silva Virgolino, em Macapá (AP). “Há muito assédio entre as meninas”, conta a paraense Luiza Pereira da Silva. Os problemas começam pelo horário de entrada.
Os estudantes chegam atrasados, apesar de a saída mais cedo do trabalho ser garantida por lei. “Mas isso não é cumprido”, diz Milton Alves Santos, do Fórum da Educação da Zona Leste, em São Paulo (SP). “A escola, por sua vez, proíbe o aluno de entrar fora do horário e não faz nada para o empregador cumprir a legislação.” Cansados e com fome (diversas escolas não têm merenda ou lanchonete), muitos alunos prefeririam passar em casa após o trabalho, mas não podem. A escola Dona Maria Amélia Bezerra, em Juazeiro do Norte (CE), outra selecionada pelo MEC, chegou em 2006 a instalar chuveiros como uma das ações para elevar o índice de aprovação e diminuir o índice de evasão do ensino noturno.
O horário apertado estrangula o rendimento. Na outra ponta, muitos estudantes saem mais cedo, cansados ou para pegar o último ônibus.
“Tem aluno que chega quase às 2h da manhã em casa”, conta Sonia Maria Barbosa, da EE Maestro Fabiano Lozano, na Vila Mariana, em São Paulo.
“Tinha um que pedia para sair até 21h, porque havia toque de recolher imposto por traficantes na comunidade onde ele morava, em Heliópolis.” No Acre, a Secretaria de Educação cansou-se do acordo tácito entre professores, alunos e direção para que se faça de conta que a carga horária está sendo cumprida.
“Estamos jogando limpo com a sociedade no Acre, dizendo que não é verdade que se ministram quatro horas por dia”, dispara o coordenador de Ensino Médio, Hildo Montysuma. “Em média, são dadas no máximo três horas.” A coordenadora do Ensino Médio da Secretaria de Educação Básica do MEC, Lucia Lodi, rejeita essa iniciativa, embora reconheça que os professores do noturno faltem mais que os do diurno. “Não podemos em hipótese alguma ignorar o que a legislação estabelece a propósito da duração do ano escolar”, afirma.
E o aluno, é capaz de aproveitar todo o conteúdo durante a noite? Rose Neubauer, secretária de Educação em São Paulo entre 1995 e 2002, diz que a partir das 22h ele não aprende mais nada. “O rendimento deles é muito menor mesmo”, define. “Os alunos da mesma série do noturno têm, no mínimo, um ano de evasão de conteúdo em relação ao diurno.” Por outro lado, não é possível encurtar mais a jornada: “Esse menino não vai conseguir aprender em três horas, cansado, o que os outros fazem no dia em cinco horas.”
Evasão epidêmica
– Um dos resultados desse quadro nebuloso é um fantasma antigo, a reprovação.Em um universo de 9,1 milhões de alunos matriculados no curso noturno em todo o Brasil, em 2004, foram reprovados 30%, ou 2,7 milhões – 900 mil em cada uma das três turmas do ensino médio. Mas há uma conseqüência ainda pior: a evasão.
No fim de 2003, só 946 mil alunos concluíram o ensino médio noturno no Brasil. Apenas 385 mil, cerca de 40%, tinham entre 17 e 19 anos, na faixa etária ideal. A explicação: entre 1,2 milhão de estudantes que abandonaram o ensino médio em 2003, nada menos que 835 mil (70%) eram do noturno.
Todas as cifras acima referem-se majoritariamente à rede pública estadual, com mais de 90% da cobertura do ensino médio. Nem sempre foi assim, informa Rose Neubauer, hoje de volta à pesquisa na Faculdade de Educação da USP. Há 20 anos, o grosso do ensino médio estava nas escolas particulares, noturnas. Era muito pequeno o percentual no ensino médio público. As particulares pararam de crescer e o ensino médio público avançou assustadoramente – era 80% privado, hoje é 90% público.
“Observamos em todo o Brasil um aumento de evasão no curso noturno, que se reflete nos números do ensino médio”, afirma Rose. Segundo o MEC, a participação dos alunos do noturno em relação ao total do ensino médio já foi superior a 50% e agora vem decaindo – está por volta de 43%.
Segundo Rose Neubauer, a progressão continuada mudou o perfil do ensino noturno nos últimos dez anos, ao fazer diminuir a reprovação e a evasão no Brasil. “Nos anos 80, havia falta de vagas no ensino fundamental e uma clientela enorme de reprovação era empurrada para o noturno”, afirma.
Ensino para trabalhadores
– Um dos diretores da Apeoesp, o sindicato paulista dos professores da rede estadual, considera o ensino noturno um “mal necessário”. “O ideal seria ter todos os alunos atendidos regularmente na sua faixa etária, freqüentando a escola durante o dia e só ingressando no mercado de trabalho depois de terminar o ciclo de ensino”, afirma Roberto Guido. “Mas não é a realidade.”
Transformado em uma espécie de ensino para alunos que trabalham, o noturno não reflete a realidade dos trabalhadores, avalia a professora Célia Pezzolo, autora em 1995 do livro Ensino Noturno: Realidade e Ilusão (Ed. Cortez, 120 págs., R$ 14). “Em minha pesquisa, encontrei uma falta de atenção à questão da diversidade e às especificidades do aluno da noite”, avalia a professora, aposentada pelo campus de Ribeirão Preto da USP. “É preciso trabalhar conteúdos coerentes com o mundo do trabalho.” Célia diz que em dez anos pouca coisa mudou para esse aluno “que é mais pobre, trabalha e tem maior responsabilidade”.
“O tratamento não é diferenciado, e ele tem interesses diferentes e saberes específicos que a escola não aborda”, avalia. A pesquisadora define a escola no período noturno como “outra escola”. “É um diurno piorado”.
Experiências de sucesso
Em Teotônio Vilela (AL), o curso médio noturno da EE Pedro Joaquim de Jesus foi dividido em quatro blocos letivos por ano. A medida visa evitar a evasão, provocada pelo trabalho na agroindústria da região. Quando há pico de produção, o aluno pode trancar somente um bloco letivo.
Em Ijuí (RS), o projeto A Gente Vive do Jeito que Dá foi, a exemplo do alagoano, um dos escolhidos pelo MEC em concurso para identificar dez experiências de sucesso de melhoria do ensino noturno. A EE Emil Glitz busca relacionar o conteúdo ao processo produtivo, como recomendado por especialistas.
A coordenadora do ensino médio do MEC, Lucia Lodi, diz que a inscrição de 976 projetos indica que a comunidade escolar tem procurado dar respostas às especificidades do noturno. “Para compensar as entradas tardias do aluno, há desenvolvimento de outras atividades”, exemplifica. “Para fazer o aluno se motivar a ir à escola, há um cuidado especial com as atividades da sexta-feira.” O edital do MEC ofereceu R$ 140 mil para cada uma das dez escolas escolhidas, duas de cada região.
Em um universo de 16 mil escolas públicas, pouco.
Mas Lucia Lodi informa que, a partir das 50 melhores experiências, o MEC fará aos gestores estaduais uma proposta de organização curricular, didático-pedagógica e de gestão.
Fazer as boas experiências ganharem escala, eis o desafio. Ela reconhece a dificuldade, mas invoca o pioneirismo da iniciativa: “A LDB diz que o ensino noturno tem de ser oferecido com a mesma qualidade do ensino diurno. Ponto.” (ALC).
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