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Alexandre Le Voci Sayad

Jornalista, educador e escritor. Mestre em inteligência artificial e ética pela PUC-SP e apresentador do Idade Mídia (Canal Futura)

Publicado em 30/09/2025

Combater a precarização da infância nunca foi prioridade no Brasil

Parte do país gosta, explora e lucra com a adultização da infância, e torce para uma possível volta ao século passado

Uma das maiores conquistas do Brasil pós-redemocratização foi o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). No mundo, há poucos exemplos em que a sociedade civil se organizou e apoiou com tanto afinco a aprovação de uma complementação à Constituição Federal que priorize a infância e a adolescência. O texto original, sancionado em 1990, tem uma escolha explícita da nação: considerar que essas duas etapas da vida necessitam de uma proteção especial para garantir direitos básicos que permitam um desenvolvimento pleno do ser humano. Havia ainda um subtexto, mais ou menos assim: é necessário cuidar da infância para garantir um futuro de bem-estar individual e coletivo, seguro e próspero.

Recentemente, a contribuição fundamental da reportagem de Felca (fala-se em postagem, mas o que foi feito se assemelha a um perfeito trabalho jornalístico) para os riscos da exposição infantil na internet acendeu um alerta que não é novo, pois endereça problemas ligados a essa escolha do Brasil de décadas atrás.

Ao contrário do que se possa imaginar, combater a adultização de crianças nem sempre foi prioridade de todos no Brasil — tampouco é responsabilidade da internet apenas.

A infância enquanto um período de cuidados é uma invenção relativamente recente no mundo (a partir da década de 1940). A especialidade médica da pediatria, não por acaso, também. A historiadora Mary Del Priore, em Historia das crianças no Brasil (1991), nos lembra que o trabalho bruto nas primeiras naus que chegavam às Américas era feito por crianças — essas morriam aos milhares na travessia, e eram jogadas ao mar. Até então, a criança era considerada, de fato, um adulto em miniatura — e que não deveria se expressar (‘infante’ significa, em latim, literalmente o que ‘não fala’). O desenvolvimento de psicologia e da psicanálise ajudou a colocar os ‘baby boomers’ no radar dos estudos científicos, mas também na ferocidade do mercado de consumo.

adultização

Combater a adultização de crianças nem sempre foi prioridade de todos no Brasil — tampouco é responsabilidade da internet apenas (Foto: Shutterstock)

Agir é possível e fundamental

Uma das maiores conquistas do ECA foi abrir, justamente, escuta às crianças, como um direito. Suas vozes deveriam ser escutadas, por exemplo, na elaboração de políticas cujo foco são elas mesmas. A internet, em sua fase inicial utópica, representou o terreno fértil para isso. A rede mundial de computadores, entretanto, se transformou em um espelho de consumo do mundo offline, e abriu espaço para riscos ao mesmo tempo que oportunidades. As legislações deveriam começar a se adaptar.

O Reino Unido liderou a criação de leis ligadas à garantia de que os direitos das crianças no mundo físico deveriam se estender ao mundo online. O Online Safety ACT (2023) foi um passo importante, numa linha histórica que se iniciou ainda na década de 1970. Recentemente, foi aprovada a obrigatoriedade de comprovação de maioridade para acessar sites de conteúdo sexual — uma medida que ainda não se firmou como eficaz.

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Pois aqui, o ECA também foi atualizado para abranger crimes digitais, prevendo punições para a exploração infantil online. Os artigos 240 a 241-E criminalizam a produção, venda, posse e compartilhamento de imagens de abuso de crianças e adolescentes; o artigo 241-A trata da oferta ou transmissão desse conteúdo pela internet; o 241-B penaliza o armazenamento dessas imagens em meios digitais; e o 241-D responsabiliza quem pratica aliciamento ou assédio online (grooming). Mas não se refere a todos os atores — sobretudo, não responsabiliza as plataformas digitais.

Nas últimas décadas, o Brasil se dividiu entre desmontar e apoiar o cumprimento do ECA. Combater a precarização da infância nunca foi prioridade no Brasil, pois parte do país gosta, explora e lucra com a adultização da infância, e torce para uma possível volta ao século passado. 

Não faltam fatos históricos que comprovam um passado ambíguo; quando por muitas vezes o país fechou os olhos para o trabalho infantil, insistiu em reduzir a maioridade penal, apoiou o armamento civil, não priorizou a construção de creches, se negou a apoiar recursos para a equidade da educação.

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Há um sorriso cínico e incômodo no rosto de muitos legisladores. A imagem atual, de direita e esquerda apoiando incondicionalmente o PL 2628/22, é uma miragem oportunista que se apoia nos horrores da erotização precoce para parecer digno ao eleitorado. Esse tema, especificamente, virou uma espécie de ‘coringa’ que puxa votos e indignação popular. Sem buscar a historicidade e considerar a complexidade dos fatos, ou seja, uma análise ‘de lupa’, é muito difícil reparar políticas públicas ou criar novas que melhorem a vida na sociedade brasileira. Acreditar na ilusão de uma sociedade horrorizada é o caminho mais fácil.

Historicamente, a classe média tem uma tendência a espantar-se com o cotidiano justamente porque se furta a acompanhá-lo com atenção, mergulhada em mazelas que ela mesma cria. Fico em dúvida se as tarifas impostas pelos Estados Unidos não serão tão nocivas, ou até piores, à vida das crianças e adolescentes vulneráveis do que a própria internet. Disso não se fala. Precisamos de um debate sério e profundo — garantir a aplicação total do ECA é fundamental. Prosseguir com o debate de regulamentação das redes, também. Escutar as crianças deveria ser fundante.

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