NOTÍCIA
Três mulheres que fizeram, das pedras no caminho, luzes que sinalizam sabedoria, força e beleza
Por Maria Cláudia Baima | Na dúvida, não ultrapasse. E na certeza? Três grandes brasileiras viveram plenas de certezas transbordantes: Cecília Meireles, Lélia Gonzalez e Nise da Silveira. No início do século 20, suas ideias e ações espantaram a poeira de instituições da saúde, da educação e da política. Perseguidas, não recuaram.
Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu no Rio de Janeiro, em 1901. Antes de nascer havia perdido o pai e três irmãos. Aos três anos, fica órfã da mãe e é criada pela avó materna, dona Jacinta, e por sua babá Pedrina, de quem ouvia histórias do folclore.
Cresceu ensimesmada em leituras — a avó não lhe permitia conviver com outras crianças e adultos. Aprende a tocar violão, violino e canto, mas o coração é arrebatado pela literatura. Um coração reflexivo, sensível, a tudo atento. Torna-se professora e jornalista. Tentou a vaga de professora catedrática, mas, a palavra lúcida de sua tese balançava estruturas.
Clamava por um novo estilo de ensino e denunciava que a escola clássica inibia a imaginação, que o mobiliário feio e pesado forçava a imobilidade na criança. “Vamos passar a limpo a escola? Que escola queremos para o Brasil?”. Frases assim eram a sua marca. Sua obra, diz o poeta Carlos Nejar, reveste-se com a “técnica do instinto e o instinto da técnica”. Vida, morte, solidão, angústia, justiça e espiritualidade embalam seus versos com rigor gramatical.
Seus primeiros escritos de educação resultam no livro Criança, meu amor (ed. Global) logo adotado nas escolas. Regina dos Santos, doutora em Educação pela USP, lembra-nos a amorosa dedicatória dessa obra: “Ela escreve: ‘Como te chamas? Que idade tens? Onde estás? Não sei. Não sei quem és, mas eu te amo’. Cecília foi escritora atenta às questões de seu tempo, com uma consciência social profunda, e professora com clareza sobre a responsabilidade de atuar como educadora. Via a necessidade de termos mais livros didáticos e de qualidade, dirigidos às crianças”. Sua letra transcendia o papel. Em 1932, assinou o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova — entregue a Getúlio Vargas por intelectuais e educadores, defendendo a escola pública, laica, gratuita, obrigatória e universal como direito de todos. Dois anos depois, criou a 1ª. Biblioteca Pública Infantil do Brasil, no Rio de Janeiro.
Cecília Meireles tinha uma consciência social profunda, destaca Regina dos Santos, doutora em Educação pela USP (Foto: reprodução)
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Após o suicídio do primeiro marido, em 1935, viu-se com o sustento de três filhas, sem perder a fluência literária. Ganha o Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, com o livro Viagem (ed. Global). Em 1940, como jornalista, vai cobrir a Semana Santa, em Ouro Preto (MG). Inspira-se em Tiradentes para escrever, por 10 anos, o Romanceiro da Inconfidência (ed. Global). Em 85 poemas ela dá voz a tropeiros, escravizados, carcereiros e ao próprio Tiradentes — os não ouvidos pela história oficial. Ela pergunta: “Quem vai saber, no futuro, o que se aprova ou reprova? De que alma é que vai ser feita essa humanidade nova?”. Não temos respostas, mas sua vida e obra as dispensam.
A professora de Filosofia da Organização Nova Acrópole no Brasil, Lúcia Helena Galvão, é admiradora de Cecília Meireles: “Ela tinha uma velhice de alma que lhe permitia tomar a adversidade não como fator de abatimento, mas como encorajamento e inspiração. As mortes e a solidão da sua infância foram tomadas como estímulo, ao invés de obstáculos, fazendo com que mergulhasse mais no mistério da vida. Ela pode ser uma grande incentivadora para educadores, por jamais desistir de querer realmente passar uma visão de beleza, de inspiração, de doçura para as crianças. Acreditava naquilo que fazia, em si própria e na possibilidade dos seus alunos. Acreditar no valor daquilo que se faz e no potencial do ser humano gera carisma e ela era muito carismática. Quanto mais vemos valor no que fazemos e transmitimos, mais acreditamos na transformação”.
Até 64 anos, Cecília manteve a palavra acesa. Se ela poetiza “não sei se fico ou passo”, também diz “tem sangue eterno a asa ritmada”.
“Cecília Meireles pode ser uma grande incentivadora para educadores, por jamais desistir de querer realmente passar uma visão de beleza, de inspiração, de doçura para as crianças”, diz a professora de filosofia Lúcia Helena Galvão (Foto: arquivo pessoal)
“Por que vocês buscam referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo.” Era o que dizia a estadunidense Angela Davis, 81 anos, quando convidada a palestrar no Brasil. Professora, negra e ativista, acompanhava Lélia em vários seminários e eventos.
Lélia nasceu em Belo Horizonte, 1935, sendo a 17ª. filha de 18 irmãos. Aos sete anos migrou para o Rio de Janeiro. Foi professora da rede pública, cursou mestrado em Comunicação Social e doutorado em Antropologia Política. Cedo, dedicou-se às pesquisas de gênero, raça e etnia, assumindo-se como crítica das leituras eurocêntricas. O termo amefricanidade é criação dela, para referir-se à influência da diáspora africana na formação cultural do continente. No Brasil, o feminismo negro deu largada com Lélia Gonzalez, a voz que primeiro denunciou a tríplice discriminação da mulher negra: racial, sexual e de classe social — uma reflexão que hoje se chama ‘interseccional’. Ela foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), 1978, ao lado de Abdias Nascimento, com quem sempre viajava para o Quilombo de Palmares, na Serra da Barriga, em Alagoas, para homenagear Zumbi dos Palmares, Dandara, Aqualtune e Acotirene.
“Nosso lema era ‘reagir à violência racial’. O respirar, o silenciar, o falar de Lélia — tudo era exemplo”, diz Iêda Leal, amiga da intelectual e coordenadora do Centro de Referência Negra Lélia Gonzalez (Foto: arquivo pessoal)
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Lélia festejou os 50 anos com uma grande festa em sua residência, em Santa Tereza. Na mesma casa, nove anos depois, deixaria órfãos seus inúmeros seguidores. “Fomos à festa e ficamos até a madrugada em prazerosa conversa sobre a questão racial. A força de Lélia continua e sua obra é leitura obrigatória nos estudos sobre educação, mulheres e feminismo negro. Meu doutorado é permeado pela valorização da produção acadêmica de Lélia, presente na nossa luta, sempre”, conta Ilma Fátima de Jesus, doutora em Educação pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Lélia deixou contribuições pedagógicas que movimentam a vida das pessoas.
“Viver como Lélia é amanhecer todos os dias com coragem para quebrar as tratativas criadas pelo racismo para não nos deixar voar, não nos deixar aprender a ser felizes e a nos reconectarmos com nossa verdade africana. Sua vida foi combate: levantava Lélia, passava o dia sendo Lélia e adormecia Lélia. Nosso lema era ‘reagir à violência racial’. O respirar, o silenciar, o falar de Lélia — tudo era exemplo”, diz Iêda Leal, professora, sindicalista de Goiás, militante do MNU e coordenadora do Centro de Referência Negra Lélia Gonzalez (CRENLEGO).
O racismo é cruel e, segundo Iêda, “a pedagogia de Lélia era do aconchego, acompanhamento e estudo. Sempre com afeto, cobrava com firmeza o estudo para darmos mais qualidade às ações”. Iêda cita Lenny Blue de Oliveira, escritora e ativista da questão racial e feminina: “Sigo te seguindo, Lélia, e a gente gostaria de todos os dias escrever e contar a história de muitas outras mulheres que também vivem te seguindo”.
Ilma Fátima de Jesus, da UFMA, foi amiga de Lélia Gonzalez: sua obra é leitura obrigatória nos estudos sobre educação, mulheres e feminismo negro (Foto: arquivo pessoal)
Carlos mexia na lixeira — era um dos pintores do ateliê da médica psiquiatra Nise da Silveira. Há anos não formava uma frase lógica. Embora cuidasse para não invadir o mundo de pessoas tão fragilizadas psiquicamente, Nise perguntou: “Carlos, por que você está tirando as sementes do lixo?”. Ele respondeu com uma frase compreensível: “Sementes são para serem plantadas, e não jogadas no lixo!”. Nise calou-se, emocionada. Essa foi a semente para a prática de jardinagem, mais uma inovação de Nise no Setor de Terapia Ocupacional e Reabilitação (STOR), que depois se tornou, em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente (MII), no Rio de Janeiro.
A própria Nise foi cultivada em terra fértil. Nasceu em 1905, em Maceió (AL). O pai era professor de matemática e jornalista; a mãe, talentosa pianista. Entre intelectuais e artistas, Nise cresceu e decidiu ser médica, formando-se na Faculdade de Medicina da Bahia — única mulher da turma. Mudou-se para o Rio, onde conheceu o comunismo, mas seu espírito livre não aceitava a cartilha do partido. Confidenciou, aos mais próximos, que resolveu fazer revoluções à sua maneira.
“E como revolucionou”, diz Teresa Vignoli, psicoterapeuta, poeta e amiga pessoal de Nise.
“A mim ela fez um bem enorme. Eu ia várias vezes estudar no pequeno e simples apartamento que também era seu escritório. Sua vasta biblioteca era disponível a todos e servia sempre chá com bolachas, além de conversar sobre filosofia, budismo e poesia. Tocava-me sua sensibilidade e senso de humor, além da genialidade intelectual. Era muito verdadeira nas relações e não tinha medo da loucura. Seu olhar continua vivo em meu coração, trazendo alento, alegria e gratidão por tê-la conhecido”, diz Teresa.
“Sua vasta biblioteca era disponível a todos e servia sempre chá com bolachas, além de conversar sobre filosofia, budismo e poesia”, conta Teresa Vignoli, psicoterapeuta e amiga de Nise da Silveira (Foto: arquivo pessoal)
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Nise foi presa na ditadura Vargas, por ter livros marxistas. Foi levada para o mesmo presídio onde estava Graciliano Ramos, de quem ficou amiga. Desse tempo colheu inspiração para inovar o tratamento em saúde mental, vendo o quanto era importante estar ativa para não enlouquecer. A Nise médica era também uma grande educadora, desde o início do seu trabalho. Ela não gostava de nariz empinado, não valorizava títulos ou status. Gostava da simplicidade, de pessoas sem preconceito e amorosas com os desfavorecidos.
Nise rompeu com métodos psiquiátricos violentos, como eletrochoque e lobotomia, trocando-os por afeto e arte. O músico e museólogo Eurípedes Gomes Cruz Júnior conta que “a área acadêmica, mais arraigada às teorias freudianas, mostrava-se refratária ao trabalho de Nise, por este se dar mais na prática e estar ligado à psicologia analítica do Jung — então ainda visto com preconceito. Ela não foi só alguém que desenvolveu um método humanizador de tratamento na psiquiatria. Ela propôs uma nova abordagem”. Autor de Do asilo ao museu – Nise da Silveira e as coleções da loucura (ed. Holos), Eurípedes coordena projetos da Sociedade Amigos do MII. “Sobre o legado de Nise, gosto de uma frase de Thomas Szasz, autor de ‘A fabricação da loucura’ livro apreciado por Nise: ‘assumir uma posição de dignidade humana não é o mesmo que propor uma nova teoria ou fazer uma descoberta empírica’.”
O Poeminho do contra, de Mário Quintana, cai bem aqui: Cecília, Lélia e Nise — vocês passarinho.
“A área acadêmica, mais arraigada às teorias freudianas, mostrava-se refratária ao trabalho de Nise, por este se dar mais na prática e estar ligado à psicologia analítica do Jung”, explica o museólogo Eurípedes Gomes Cruz Júnior (Foto: arquivo pessoal)
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