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Redação revista Educação

Publicado em 03/09/2025

Ética, conhecimento e imunidade social: caminhos para civilizações sustentáveis

Assim como o corpo cria defesas contra vírus, a sociedade precisa de anticorpos contra práticas e informações nocivas. E esses anticorpos se formam pela educação ética, pelo cultivo da empatia e pelo diálogo

Por Rubens Bollos* | Princípios éticos são bússolas que orientam a vida em sociedade. Eles ajudam a distinguir entre o certo e o errado, o que pode e não pode e o que funciona e não funciona, assegurando que tratemos os outros com respeito e justiça, sustentando a integridade das relações humanas. Valores como honestidade, integridade, responsabilidade e solidariedade são normas individuais que garantem a continuidade da vida social em bases humanas e sustentáveis, fortalecendo o pacto coletivo, em contraposição à desonra, manipulação e abuso, que fragilizam sociedades.

A história mostra que tradições, costumes e práticas, mesmo aquelas disfarçadas sob o manto da aceitabilidade cultural, podem comprometer profundamente esses princípios. A escravidão, o racismo, a autocracia, a exploração de trabalhadores, o colonialismo e a manipulação da opinião pública são exemplos de costumes legitimados por épocas e sociedades, mas que violaram princípios éticos fundamentais. 

A questão que se coloca hoje é: como educar jovens e adultos para reconhecer os perigos de tradições e costumes que perpetuam injustiças e ameaçam a integridade coletiva?

Vivemos em tempos de excesso de informação e escassez de sabedoria e discernimento. A segurança factual e epistemológica, a garantia de que o conhecimento é construído sobre fatos verificáveis e métodos rigorosos, tornou-se urgente. A avalanche de fake news, a manipulação algorítmica e a polarização política corroem a confiança no conhecimento científico e alimentam a infodemia.

Manipulação

O cientista social italiano Giuliano da Empoli, em Os Engenheiros do Caos, mostra como líderes populistas exploram a desinformação e as emoções coletivas para manipular massas, transformando ressentimento em arma política e nos alerta: a engenharia da manipulação não é acidente, mas estratégia. Diante disso, a educação midiática e científica torna-se defesa civilizatória. Educar para a verificação dos fatos, o pensamento crítico e a dúvida honesta é essencial para neutralizar o poder corrosivo da mentira organizada.

Essa questão não tem idade: crianças, jovens, adultos e idosos estão à mercê dessa tática de guerrilha digital que mina saúde, relações e instituições. E no A Hora dos Predadores, Empoli amplia a análise iniciada em Os Engenheiros do Caos: se antes a ênfase estava na manipulação das emoções coletivas e na engenharia da desinformação, agora o foco é a lógica predatória que se instala nas redes sociais e, a partir delas, na vida política e social. 

Predação social é de base antropogenética e significa o processo em que grupos humanos exploram e hierarquizam outros em busca de poder e controle. A predação começa quando plataformas digitais, desenhadas para maximizar engajamento e lucro, passam a organizar o espaço público em torno da competição pela atenção, nosso ouro da vez. 

Essa competição não é neutra: os algoritmos hierarquizam conteúdos que geram indignação, medo ou ódio, criando artificialmente pirâmides de influência e desinformação. Surge, assim, uma espécie de “casta digital”, em que poucos comandam as narrativas e muitos são conduzidos por elas. 

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Nesse ambiente, formam-se as câmaras de eco de que fala o filósofo polonês Zygmunt Bauman: escutamos o que queremos ouvir e ensurdecemos para o que precisamos ouvir: o contraditório. Uma máxima atribuída a Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, e analisada por Hannah Arendt, ilustra o risco: uma mentira repetida muitas vezes pode ser tomada como verdade. 

Esse mecanismo sustenta a guerra de narrativas e o uso político da propaganda, substituindo o debate racional; os princípios éticos acabam erodidos em favor do neomaquiavelismo, onde líderes operam com uma lógica de manipulação e conquista a qualquer custo; vale mais o impacto do discurso do que sua veracidade e estratégias astutas e imorais para garantir o poder. A exposição pública de “inimigos” pela desonra, entendida como a prática de destruir reputações e marginalizar adversários por meio de humilhação social, o uso estratégico de fake news e a manipulação emocional tornam-se armas políticas de alta potência. 

Sabemos, como aponta Empoli, que a tática começa na chamada machosfera, comunidades digitais masculinas radicalizadas que difundem misoginia e discursos de ódio. São espaços facilmente manipulados para reforçar a lógica do “nós contra eles”, canalizando ressentimentos em polarização e ataques organizados nas redes. Essa lógica encontra terreno fértil em minorias masculinas organizadas, muitas vezes ligadas a grupos gamers com práticas hackers e a um domínio digital predatório que amplia ainda mais as hierarquias e a guerra de narrativas.

imunidade social

A metáfora da imunidade social ajuda a pensar: assim como o corpo cria defesas contra vírus, a sociedade precisa de anticorpos contra práticas e informações nocivas (Foto: Freepik)

Predisposição ao autoengano

Essa nova ordem não é apenas tecnológica, mas antropológica. O ser humano possui predisposição neurobiológica ao autoengano que maximiza-se a partir da avalanche de estímulos que reforçam vieses cognitivos e fragilizam sua capacidade crítica. A genética e a epigenética demonstram que padrões de medo, submissão e hostilidade podem ser transmitidos e perpetuados, consolidando um caldo social propício à autocracia e ao caos. 

Nesse sentido, podemos perguntar: estamos contaminando e favorecendo alterações comportamentais que perpetuam a predação em detrimento da confraternização no coletivo? 

A neurociência e a psicologia cognitiva nos ensinam que o ser humano tem predisposição ao autoengano. Mecanismos como a dissonância cognitiva, os vieses de confirmação e as heurísticas revelam que o cérebro prefere soluções rápidas e emocionais que podem levar a prejuízos e regressões ao invés das verdades reflexivas e incômodas, mais evolutivas. Basta observar alguns líderes políticos e empresariais que, ao seguir atalhos cognitivos sem reflexão crítica, tomam decisões impulsivas ou equivocadas, com impactos negativos para pessoas e organizações. O mesmo vale para a crise de parentalidade atual no âmbito familiar: medicamentalização e profissionalização em excesso adoecem famílias.

Heurísticas são atalhos mentais que facilitam decisões em contextos de incerteza, mas podem levar a erros sistemáticos. O viés da disponibilidade, por exemplo, nos faz superestimar riscos de eventos recentes ou muito noticiados, enquanto o viés da representatividade leva a julgamentos baseados em estereótipos. Esses mecanismos, embora úteis para a sobrevivência, tornam-nos vulneráveis a manipulações emocionais e narrativas falsas, em conexão com o que já foi descrito acima sobre genética e epigenética.

Inteligência artificial

Hoje, a discussão ganha nova dimensão com a inteligência artificial generativa, que também opera por padrões estatísticos e heurísticos computacionais. Assim como a mente humana, algoritmos “completam” informações baseando-se em probabilidades, e não necessariamente em verdades.

Isso levanta desafios éticos: como distinguir atalhos úteis da fabricação de ilusões convincentes? Como educar sociedades para não confundirem fluência narrativa com precisão factual? Muitas vezes, o falar empolado e carregado de emoção se sobrepõe ao conhecimento, à consciência e ao verdadeiro sentido.

Nas hierarquias sociais e digitais, a combinação de heurísticas humanas e algoritmos preditivos intensifica a vulnerabilidade coletiva. Narrativas falsas, ao serem repetidas e amplificadas, oferecem identidade e pertencimento, ainda que ilusórios, em meio a uma crise global de solidão. 

Dados recentes da OMS apontam que milhões de pessoas relatam sentir-se solitárias de forma crônica, fenômeno considerado hoje um problema de saúde pública. Talvez esse pertencimento ilusório seja uma resposta caótica a essa questão. 

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A pergunta aqui também é um diagnóstico: por que estamos tão sozinhos e solitários? Reconhecer como cérebros e máquinas fabricam justificativas é passo crucial para fortalecer a autonomia crítica e a liberdade ética. Essa reflexão aponta também para a esperança: somente com consciência crítica e diálogo poderemos, de fato, alcançar encontros sociais mais empáticos e solidários.

Podemos nos preparar para resistir às manipulações? Sim! A metáfora da imunidade social ajuda a pensar: assim como o corpo cria defesas contra vírus, a sociedade precisa de anticorpos contra práticas e informações nocivas. 

Esses anticorpos se formam pela educação ética, pelo cultivo da empatia e pelo diálogo. Exemplos concretos incluem uma escola que promove debates respeitosos, uma comunidade que cria redes de apoio ou plataformas digitais que valorizam a cooperação em vez do ódio.

Por isso, compreender a lógica da predação é essencial para fortalecer uma imunidade social baseada em ética, ciência e cooperação. Sem esse antídoto, a sociedade corre o risco de viver sob uma guerra permanente de narrativas, onde a verdade deixa de ser critério de justiça e a mentira organizada se converte em fundamento de poder.

Estratégias eficazes incluem: 

  • educação filosófica desde cedo, estimulando perguntas, dúvidas e reflexão crítica; 
  • competências socioemocionais, como empatia, tolerância à frustração e capacidade de lidar com conflitos sem violência;
  • educação científica, baseada na valorização do método, da experimentação e da humildade diante do desconhecido; 
  • e espaços de convivência democrática, onde diferenças não sejam vistas como ameaças, mas como oportunidades de evolução coletiva.

Antídotos

Construir civilizações saudáveis exige unir razão e emoção, ciência e cultura e cultura da paz e a responsabilidade compartilhada, que são antídotos contra os engenheiros do caos e os predadores. Como lembram o educador Bernard Charlot e a filósofa Hannah Arendt, é preciso reumanizar-se e sair da barbárie, combatendo a banalização e reintegrando-nos no todo, evitando comportamentos que se assemelham a uma célula de câncer, que se multiplica e devora o corpo coletivo. Conseguiremos reencontrar pertencimento e solidariedade antes que a banalização corroa o tecido social? Estamos dispostos a transformar nossos hábitos em direção a uma vida mais justa, saudável e solidária? Pense em quantas vezes você tentou mudar, seja fazer um regime, largar um vício ou apenas ser mais honesto consigo mesmo.

Os desafios de hoje definem o futuro da humanidade. Reconhecer tradições nocivas, promover segurança factual, criar imunidade social e confiar no conhecimento científico e nos princípios éticos são tarefas urgentes. E mais do que nunca, uma questão de sobrevivência. Educação é ponte para atravessar a ignorância rumo a uma civilização mais lúcida. E saúde é horizonte: escolhas saudáveis e estratégias de cura são parte do combate à praga cultural que assola a humanidade.

*Rubens Harb Bollos é médico, pesquisador e mentor. Mestre e Doutor (Ph.D) em Ciências da Saúde pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e Pós-Doutorado em Biologia do Desenvolvimento (USP/ICB). Pesquisador nas áreas de imunologia, epigenética, salutogênese e cultura de paz com foco no estudo de indicadores de êxito em saúde. É presidente-fundador da ABMPP.org (Associação Brasileira de Medicina Personalizada e de Precisão).

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