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Instituto Ayrton Senna

Artigos escritos por pesquisadores do laboratório de ciências para educação do Instituto Ayrton Senna (eduLab21)

Publicado em 08/08/2025

Da pesquisa à sala de aula: pela alfabetização de todas as crianças

Achados científicos destacam como o ser humano desenvolve as habilidades de leitura e como as áreas cerebrais atuam nesse processo

Por Ana Zuanazzi*, Gisele Alves**, e Lilian Dantas*** | A divulgação do Indicador Criança Alfabetizada dá informações sobre o cenário da alfabetização no Brasil que enriquecem discussões pertinentes ao objetivo de alcance de direitos sociais de todos. Os dados indicam que pela primeira vez, o Brasil se aproxima da marca de 60% de crianças alfabetizadas até o 2º ano e sugerem um crescimento contínuo e gradual, algo a ser celebrado.  

Ainda assim, o país está aquém da meta nacional, o que alerta para a urgência da recomposição das aprendizagens, já que quatro entre 10 crianças do 2º ano não conseguem ler palavras, frases e textos curtos ou localizar informações explícitas em bilhetes.  

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Dentre as iniciativas dedicadas à melhoria da alfabetização está o uso aplicado dos conhecimentos acumulados pela ciência da leitura que investiga como desenvolvemos as habilidades de leitura e como as áreas cerebrais envolvidas são ativadas e se modificam ao longo da alfabetização. 

Compreender como se dá a aquisição da leitura e da escrita é essencial para que a alfabetização aconteça de forma planejada, respeitando tanto as características desenvolvimentais quanto as especificidades do próprio objeto a ser ensinado: o sistema alfabético. 

Sem essa base, corremos o risco de recorrer a improvisos ou práticas pouco eficazes, comprometendo o direito de todas as crianças de aprender. Por isso, buscamos alguns dos principais achados científicos que podem servir de base para a consolidação de práticas eficazes. 

alfabetização

Temos um cenário nacional que nos mobiliza a traçar caminhos para a recuperação da alfabetização e atingimento de metas que vão para além de números (Foto: arquivo/Agência Brasil)

Existe idade certa para a alfabetização? 

As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) propõem que o processo formal de alfabetização aconteça no início do ensino fundamental. No entanto, há muito que se fazer na escola e em casa antes mesmo desta etapa escolar chegar, sem desconsiderar a prontidão biológica e o ritmo desenvolvimental das crianças. 

O que os estudos têm demonstrado consistentemente é que o trabalho precisa começar na educação infantil: sem apressar etapas, mas também sem desperdiçar o potencial de aprendizagem desse período. Nessa fase, é fundamental desenvolver, de forma intencional e adequada à idade, os principais precursores da leitura, como a linguagem oral (como o foco no enriquecimento do vocabulário) e a consciência fonológica, utilizando estratégias lúdicas que ajudem as crianças a reconhecerem sons e suas letras correspondentes. 

Esses achados são consonantes a outro importante aspecto do processo de alfabetização: as transformações que acontecem no cérebro durante a aquisição da leitura e escrita que darão pistas sobre práticas que podem contribuir com esse percurso. 

O que acontece no nosso cérebro na alfabetização? 

Estudos com neuroimagem que investigaram o funcionamento cerebral de pessoas alfabetizadas e não alfabetizadas permitiram compreender o percurso de aquisição da leitura. 

Resultados consistentes têm indicado que a leitura exige a ativação coordenada de diversas áreas cerebrais, responsáveis por processar sons, letras, informações visuais e fonológicas, manutenção da atenção e compreensão, o que sugere que seja um dos processos neurológicos mais complexos, envolvendo áreas cerebrais específicas para esse processo, como também não específicas para ele — como a visão, a atenção, etc. 

Outro achado importante envolve a chamada reciclagem neuronal. Trata-se da reorganização de funções do cérebro para ‘acomodar’ as funções necessárias à leitura. Um dos elementos dessa reorganização é a ‘quebra da invariância visual’, que contribui expressivamente para que seja possível identificar diferentes letras do alfabeto (por exemplo, quando o símbolo ‘b’ é rotacionado, ele será percebido como uma nova letra).  

A adaptação cerebral também resulta na migração de funções. Assim, uma região responsável pelo processamento de imagens especifica-se para a leitura quando somos ensinados a ler e passa a ser a ‘área da forma visual das palavras’, enquanto o que antes era processado nela migra para outras regiões. Por fim, os estudos evidenciaram que essa adaptação não ocorre naturalmente, diferente do que acontece com outras competências como a oralidade, o andar, etc. 

Em síntese, sabe-se há pelo menos 50 anos que a alfabetização não é um processo natural para o cérebro e envolve a reciclagem neuronal. A riqueza desses achados está na ênfase da necessidade de intencionalidade e mediação, majoritariamente realizada pelo professor alfabetizador.  

Como o professor e a professora podem potencializar esse processo? 

Uma vez que a leitura e a escrita exigem uma construção ativa e intencional, o papel do professor é essencial na mediação desse processo. Para tornar a mediação eficaz, sua atuação deve ser baseada em práticas fundamentadas. Imagine montar um castelo de blocos com uma criança sem mostrar o modelo final. Logo surgem dúvidas e frustrações: onde encaixa cada peça? Por que desmoronou? Vocês tentam adivinhar, improvisar. O tempo passa e o castelo pode nunca ficar de pé. 

Agora imagine que alguém oferece um modelo, uma base firme e instruções claras sobre quais peças usar e como. Mas você recusa. Diz que prefere “não engessar o processo”, ou que “cada um aprende no seu tempo e do seu jeito”. Só que a frustração cresce e o que poderia ser uma experiência potente de construção compartilhada vira um exercício de tentativa e erro, desnecessariamente difícil e improdutivo, justamente porque faltou direção. 

Entre as práticas que potencializam a alfabetização, destaca-se o ensino explícito e sistemático das correspondências entre grafemas e fonemas desde o início: é esse ensino que garante que serão oferecidas à criança as peças certas do castelo, no tempo certo e com o suporte necessário. 

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Décadas de estudos demonstram que, sem essa instrução direcionada, as crianças tendem a utilizar estratégias mais rudimentares, como a logográfica que, embora pareça funcional, não ativa adequadamente as regiões do cérebro relacionadas à leitura.  

O ensino que segmenta palavras em partes menores e as conecta aos sons da fala estimula o desenvolvimento de regiões cerebrais específicas da leitura, tornando o aprendizado mais eficiente e duradouro. 

Também é relevante provocar a estimulação multissensorial. Atividades como jogos que relacionam letras a sons e imagens, ou a construção de letras com materiais táteis ajudam a fortalecer as conexões neurais envolvidas no reconhecimento dos elementos da escrita. As atividades que envolvem brincadeiras com sons, letras, rimas, contação de histórias e encenações são interessantes para o trabalho com crianças mais novas.  

Em síntese, temos um cenário nacional que nos mobiliza a traçar caminhos para a recuperação da alfabetização e atingimento de metas que vão para além de números: referem-se ao cuidado para que nenhuma criança fique para trás. 

As perspectivas futuras nos convidam a uma maior articulação nacional e esforços concentrados para garantir avanços mais consistentes na alfabetização das crianças. Unir conhecimento científico e prático é um trabalho conjunto que requer a participação de diversos atores educacionais, sociedade e políticas públicas. 

Para saber mais: 

Aaron, P. G. et al. (2008). Diagnosis and treatment of reading disabilities based on the component model of reading. Journal of Learning Disabilities, v. 41, n. 1, p. 67-84. 

Araujo, F. A. S. de et al. (2023). Efeitos da alfabetização sobre os resultados nos anos iniciais do ensino fundamental: análise dos dados longitudinais do Ceará (SPAECE- Alfa e do 5º ano EF) entre 2016 e 2019. In: encontro da associação nacional dos centros de pós-graduação em economia, 51., Rio de Janeiro.  

Azoni, C. A. S. (2025). Rede nacional de ciência para educação. Conecta: evidências científicas para a alfabetização plena no Brasil e no mundo.

 https://cienciaparaeducacao.org/blog/2025/06/17/conecta-evidencias-cientificas-para-a-alfabetizacao-plena-no-brasil-e-no-mundo/

Brasil (2025). Política Nacional Integrada da Primeira Infância -PNIPI (Decreto Nº 12.574/2025). Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-12.574-de-5-de-agosto-de-2025-646726880  

Braga, L. B. et al. (2017). Tracking adult literacy acquisition with functional MRI: A single-case study. Mind Brain Educ., v. 11, n. 3, p. 121-32. DOI http:// dx.doi.org/10.1111/mbe.12143. 

Instituto Ayrton Senna (2024). Alfabetização integral: da teoria à prática. Disponível em: https://institutoayrtonsenna.org.br/app/uploads/2024/11/VF_ALFA-EduLab_Ebook_Alfabetizacao-Integral-da-Teoria-a-Pratica.pdf

Pegado, F.; Nakamura, K.; Hanagan, T. How does literacy break mirror invariance in the visual system? Frontiers in Psychology, v. 5, 2014. 

Pegado, F. et al. A protocol to examine the learning effects of ‘multisystem mapping’ training combined with post-training sleep consolidation in beginning readers. STAR Protocols, v. 2, p. 100712, 2021. 

Kim, T. A., Da Silva Loureiro, V., Ferrandini, L. M., & Cardoso, F. B. (2022). Intervenção Neuropsicopedagógica em Habilidades Preditoras da Alfabetização: Revisão de Literatura Sobre Consciência Fonológica. Epistemologia e Práxis Educativa-EPEduc, 5(1).  

*Ana Zuanazzi é gerente de pesquisa do Laboratório de Ciências para Educação (eduLab21) do Instituto. Psicóloga, doutora em psicologia com ênfase em Avaliação Psicológica pela Universidade São Francisco, mestre em psicologia pela Universidade de São Paulo, especialista em neuropsicologia pelo Centro de Diagnóstico Neurológico. 

**Gisele Alves é gerente executiva do eduLab21, laboratório de ciências para educação do Instituto Ayrton Senna. Chairholder da Cátedra Unesco de Educação e Desenvolvimento Humano na mesma Instituição. Psicóloga, mestre em Psicologia com ênfase em Avaliação Psicológica pelo Programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu em Psicologia da Universidade São Francisco. Consultora em avaliação psicológica, construção de instrumentos, adaptações transculturais e treinamento na área de avaliação psicológica.    

***Lilian Dantas é estagiária de pesquisa no Laboratório de Ciências para Educação (eduLab21) do Instituto Ayrton Senna. Bacharel em Ciências e Humanidades pela Universidade Federal do ABC, atualmente é estudante dos cursos de Psicologia na Universidade Municipal de São Caetano do Sul e Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC.

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