NOTÍCIA
MEC se mexe — para desgosto de alguns — e apresenta as novas regras para as licenciaturas. Especialistas analisam as mudanças
Em continuidade às mudanças que vem promovendo no âmbito dos cursos superiores, em especial das licenciaturas, mas não só, o Ministério da Educação (MEC) editou em maio um novo decreto, o 12.456 de 2025, que estabelece novas regras para a educação a distância (EAD). Bem menos leniente que o anterior (9.235/2017), ele cria a figura do curso semipresencial, que exige 50% de presencialidade, além de 20% de aulas síncronas, ou seja, em que o aluno e professores interajam online. Resta ainda a possibilidade de um máximo de 30% de aulas a distância.
Essas novas regras passam a valer para cursos de licenciatura que se iniciem 90 dias após a data de publicação do decreto, ocorrida em 19 de maio. Os estudantes que ingressaram em cursos regidos pelos formatos aceitos até então poderão terminar sua formação como concebida inicialmente. Além disso, alguns cursos superiores não poderão ter oferta em EAD, ficando restritos exclusivamente à modalidade presencial. São eles: direito, medicina, odontologia, enfermagem e psicologia. Outros pontos, relativos a metodologias, mediação pedagógica e exames presenciais, também constam do decreto.
No campo das licenciaturas, o novo decreto se junta às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior, homologadas pela Resolução 4 de 2024, e à instituição do Enade das licenciaturas, com provas anuais, introduzida ainda em formato experimental no ano passado.
Para Israel Batista, membro da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE), o decreto sobre EAD era algo aguardado há muito tempo pelos pensadores da educação e pela bancada legislativa que atua em prol de políticas públicas para o setor. “Temos um contexto muito agressivo da EAD, com 80% dos ingressantes e 60% dos formandos de licenciaturas na modalidade. E apenas 1% de cursos de licenciaturas em EAD foi avaliado com nota 5”, diz Batista.
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Para ele, o principal problema da modalidade é a impossibilidade de articular de forma adequada a formação teórica com a prática. “No Vale do Silício, na Califórnia, as empresas de tecnologia pioneiras no uso de EAD para formar profissionais não conseguem preparar bem seus funcionários em nível de gerência, e estão revendo o formato”, argumenta.
Segundo alguns representantes de instituições privadas de ensino superior, a nova legislação vai criar restrições para alunos de municípios mais distantes, com carência de docentes e de infraestrutura — agora exigida pela lei. Os polos terão de cumprir uma série de exigências, como laboratórios, dispositivos e conexão de internet de banda larga e um representante capacitado para apoiar os estudantes, entre outras obrigações.
Para Niúbe Ruggero, diretora de regulação do grupo Trivent/Ilumno, o formato que até então estava em vigência permitia grande capilaridade, chegando a muitos lugares onde não há faculdade. “Isso vai dificultar a oferta a municípios mais distantes. Não somos contra a questão da qualidade, mas há alunos de EAD que trabalham em período integral, que aproveitam essa flexibilidade. Essa nova legislação vai afetar regiões em que não temos profissionais para ministrar esses cursos”, acredita.
Raquel Carmona, assessora jurídica do Semesp, entidade que representa instituições de ensino superior privadas, diz que a Resolução 4 de 2024, que estabeleceu novas diretrizes curriculares, já havia ‘chocado’ bastante o setor, que terá de modificar suas licenciaturas até meados de 2026. “Vai haver reestruturação de todos os cursos. O CNE vai ter de trabalhar para regulamentar o que deve ser obrigatoriamente presencial, o que poderá ser a distância.” Ruggero complementa: “Obviamente, as IES e os candidatos vão ter de se adaptar. Vamos ver o quanto as atividades práticas agora exigidas vão afetar os interessados”, finaliza.
“Apenas 1% de cursos de licenciaturas em EAD foi avaliado com nota 5”, alerta Israel Batista, do CNE (Foto: arquivo pessoal)
Não são todas as instituições privadas que lamentam as restrições à EAD. No caso do Instituto Vera Cruz, que oferece licenciatura em pedagogia, tanto as medidas relativas à educação a distância como as novas diretrizes e o Enade anual são bem avaliados. A instituição tem por norma a oferta, para a licenciatura, apenas de atividades síncronas de EAD. “Temos 20% de atividades nesse formato, mas sempre com mediação do próprio professor, pois isso assegura a interação entre estudantes e docentes”, diz Andréa Luize, coordenadora do Vera Cruz e professora do curso de pedagogia.
Em sua percepção, é positivo que as licenciaturas tenham novas regulamentações, pois há uma multiplicidade de cursos de baixíssimo nível, especialmente os de EAD, em que há pouca ou nenhuma interação entre educadores e educandos. “Se olharmos o perfil de muitos alunos que chegam às licenciaturas, muitos vêm com uma formação bastante precária. É preciso, antes de tudo, fortalecer essa formação, recuperar conteúdos para que depois possam saber como atuar pedagogicamente”, explica.
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Por esse motivo, a licenciatura em pedagogia do Vera Cruz tem seis disciplinas voltadas a práticas de leitura e de escrita ao longo do curso, além de outras que tratam de conhecimentos matemáticos. A proposta é bem direta: fazer com que os futuros professores preencham as próprias lacunas para ter condições de ensinar seus alunos, de maneira a não perpetuar um círculo vicioso entre docentes e seus alunos.
Assim como Andréa Luize, também Israel Batista, do CNE, ressalta a importância de decisões que colocam ênfase na articulação entre teoria e prática na formação, a começar pelo novo Enade, que prevê estágio acompanhado por professores da educação básica na composição da avaliação dos alunos.
Para ele, as diretrizes da formação contidas na famosa Resolução 4/2024 significaram um freio de arrumação nas licenciaturas para que se chegue a um ponto de equilíbrio. “Estamos no meio do caminho de uma jornada que envolve muitas coisas. Estamos proibindo licenciaturas totalmente a distância, estabelecendo formatos e requisitos mais claros, inclusive para o percentual a ser realizado via EAD. Haverá avaliações presenciais com controle de qualidade, professor regente e mediação pedagógica, reforço em tudo que é prático e presencial, polos que precisam ser centros de práticas”, resume Batista.
A licenciatura em pedagogia do Vera Cruz tem seis disciplinas voltadas a práticas de leitura e de escrita, conta a coordenadora Andréa Luize (Foto: arquivo pessoal)
Segundo o conselheiro do CNE, as novas diretrizes, avaliações e regras para EAD, por si sós, não são suficientes. Faltam outros passos, com um rearranjo curricular nas licenciaturas que invista mais no como ensinar, na apropriação pedagógica dos conteúdos.
“Também temos de fortalecer a formação continuada. O CNE ainda não decidiu isso, mas deve ser formada uma comissão bicameral (educação básica e ensino superior) para tratar desse tema, assim como da regulamentação do decreto da EAD”, diz.
O sentimento de que as medidas da atual gestão estão no caminho certo, mas ainda são insuficientes, é compartilhado por Claudia Costin, ex-secretária de Educação do Rio de Janeiro e atual presidenta do Instituto Equidade Info, da Faculdade de Educação Stanford. “Sinto falta de um desenho mais integral. Desconfio que essa questão mais parcial se deva a um jogo de forças com o setor privado. Mas, no geral, acho que precisamos arranjar mecanismos para valorizar mais a prática, com mecanismos de reconhecimento, atrair os melhores alunos do Enem e criar um Sistema Nacional de Educação que se encarregaria de acompanhar as licenciaturas, com um olhar mais integrado em relação a todo o país”, opina.
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Costin ressalta um ponto de que ninguém discorda, mas que as políticas públicas têm dificuldade de encampar, talvez por falta de vontade política, talvez pelo desafio da equação financeira que significaria: a adoção da dedicação exclusiva dos docentes em uma única escola, com 1/3 de seu tempo dedicado a atividades formativas dentro da escola. Como exemplo disso, cita a rede estadual de Pernambuco, uma das que mais evoluíram nas duas últimas décadas. De novo, não é apenas isso, mas trata-se de outro ponto vital para melhorar a qualidade das interações entre docentes e destes com os alunos.
Nesse cenário, a criação do semipresencial é “uma forma de começar a agir”. “Não é ainda como no Chile, onde a EAD praticamente inexiste”, comenta Costin. É bem verdade que a dimensão continental do Brasil, mais a sua enorme diversidade populacional e socioeconômica, pede soluções mais variadas.
O acesso é uma preocupação justa e sua democratização, essencial. Porém, como diz Israel Batista, “não dá para fazer dos cursos de licenciatura portas de entrada no ensino superior à custa da qualidade”.
“Sinto falta de um desenho mais integral”, diz Claudia Costin, referência em políticas públicas (Foto: arquivo pessoal)
Que tipo de professor queremos formar e quem estamos formando? Para Fernando Almeida, professor titular da PUC/SP e um dos três titulares da Cátedra Olavo Setúbal, do Instituto de Estudos Avançados da USP, estas questões antecedem o olhar sobre a docência. Para Almeida, ex-secretário municipal de Educação de São Paulo e membro do conselho editorial desta revista, o discurso contemporâneo – ou os discursos – são tentativas de desfigurar a figura do professor e a escola.
Um a um, esse mestre de sabedoria clássica vai destruindo os rótulos de tutor (é um orientador privado, pago pelo pai), orientador de estudos (só entra nas dificuldades, não tem função estruturante), curador (é disfuncional, não tem identidade de formador), facilitador (equívoco! Deveria ser o contrário, tornar mais complexo, gerar dúvidas, incertezas, fazer pensar) e, o pior de todos, o coach ou influencer (autoajuda para inseguranças, problemas psicológicos…).
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“O professor é alguém que cumpre uma função dada pelo Estado. Esse Estado aprova sua formação, o licencia para operar um currículo nacional. O professor tem uma delegação do Estado. Não é funcionário de um indivíduo, cumpre uma função pública.”
Um segundo ponto é que esse professor tem de ter uma autoridade legítima diante dos alunos, tem de estar preparado para dar aula, conhecer a fundo o que vai ensinar e para quem vai ensinar. “O que dá essa autoridade é a autoria da própria aula. Quando se entrega uma apostila ao professor, tira-se sua autoridade. Dizer que o aluno é o protagonista de sua formação é uma covardia. Ele não tem condições de fazer isso sozinho. Isso é uma falsidade inventada pelo individualismo”, avalia Fernando.
Quem quiser conhecer melhor o que pensa esse professor de múltiplas atividades tem oportunidade de fazê-lo por meio de seu livro mais recente, Licença para criticar – a escola e suas tecnologias (ed. Cajuína).
Fernando Almeida: professor é professor. E não orientador, curador, facilitador ou influencer (Foto: Gustavo Morita/revista Educação)
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