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João Jonas Veiga Sobral

Professor de língua portuguesa e orientador educacional

Publicado em 18/06/2025

Deram-nos o espelho e vimos um mundo doente

Admirável é o silêncio da parcela lúcida da sociedade que assiste aos distúrbios como se fossem consequências naturais desse padecimento moribundo que nos assola

Em uma sociedade que mostra, em diversos estratos, sinais contundentes de adoecimento nas relações sociais, com exemplos fartos de ódio e de violência sortidos, e com pedidos de socorro explícitos e implícitos, não é de admirar que a educação na escola e nos lares revele, infelizmente, essa mesma faceta patológica. Sobretudo porque família e instituições de ensino estão inseridas no mesmo contrato social enfermiço.

Admirável é o silêncio da parcela lúcida da sociedade que assiste aos distúrbios como se fossem consequências naturais desse padecimento moribundo que nos assola. Ao invés da mobilização republicana, o que se nota é uma adaptação trôpega e triste à patologia alastrante.

E quase tudo vira meme e humor, o que não deixa de ser também sintomática essa escolha por uma saída de risos nervosos e conformados. Haja vista a repercussão e a viralização dos vídeos dos ótimos humoristas do Porta dos Fundos e Embrulha pra Viagem, entre eles, Diogo Almeida, que destilam — de forma humorada e ácida, para quem tem olhos de ver — as mazelas educacionais, geracionais e sociais em suas esquetes virtuais e apresentações ao vivo. Reafirmam a máxima latina castigat ridendo mores (rindo castigam-se os costumes).

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No entanto, fora do humor que não deixa de ser uma forma saudável e interessante de crítica social, há necessidade de alguma movimentação séria e urgente de mitigação das moléstias sociais que nos atingem em cheio literal e metaforicamente. Não raro, defrontamo-nos com notícias de latrocínios, atropelamentos, violências físicas e morais espalhadas em variadas faixas etárias e sociais, cooptação de jovens e de crianças pelo tráfico, por bandidos golpistas, por desafios de internet e por gentes mal-intencionadas que reforçam cada vez mais a misoginia, o neonazismo, o neofascismo, o preconceito, os roubos, os golpes e os assassinatos que revelam essa moléstia coletiva.

O que nos preocupa terrivelmente é que as famílias desestruturadas economicamente e/ou socialmente e/ou ideologicamente e/ou emocionalmente não conseguem oferecer aos seus filhos ferramentas e valores razoáveis para dar conta desse mundo caótico e enfermo. Nem educar consistente e carinhosamente para um mundo virtual que extrapola seus alcances de entendimento. Tanto que é possível comprovar com a série Adolescência da Netflix, das notícias de mortes de crianças e jovens estimulados pelo mundo sombrio das trends, com o recentemente falecimento de uma criança de oito anos (sozinha na internet) que inalou gás de desodorante depois de motivada por esse lado obscuro das redes.

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Nessa desordem familiar, independente da classe social, transfere-se para a escola o papel de educar em todos os sentidos a garotada e a função unívoca de dar ordem à babel e à balbúrdia social. Sim, é evidente que cabe também à escola a função de civilizar o aprendiz e lhe oferecer instrumentos consistentes para ler e transformar positivamente o mundo. Mas, para isso, a escola não pode nem deve estar também adoentada e inoculada dos bacilos do mal desses novos tempos. Contudo, ela está. Sobretudo, os professores que carregam nos ombros e no espírito a sobrecarga de trabalho e de tarefas insanas, o peso da solidão e da ausência na escuta, o desrespeito e ódio à sua autoridade intelectual e afetiva e as dores dos distúrbios provocados pela profissão e por esses tempos doentios.

Um corpo social combalido e enfermiço precisa de cuidados para que possa dar conta de si e do outro. E numa coletividade adoecida, no lugar da assistência zelosa, podemos encontrar o seu contrário, ou seja, o contágio alastrado da doença pública, da hostilidade social e da desatenção afetiva. E aí é que mora o perigo, porque temos uma sociedade deseducada que vem se tornando hostil e cega para o que ocorre e para o que há de vir; e — pelo que tudo indica — pouco preocupada com os terríveis desdobramentos que se avizinham.

mundo doente

Eis a sinuca de bico em que nos encontramos: um mundo doente sem vislumbre de cura (Foto: Shutterstock)

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Como profissionais de educação desestimulados, frágeis, adoecidos e expostos à barbárie contemporânea e à precariedade do espaço, do trabalho e da profissão, podem educar jovens vítimas desses mesmos sintomas e sem recursos cognitivos e emocionais mínimos para dar conta disso? Ainda mais porque, como alertam as pesquisas, a profissão anda em baixa entre os jovens. Eis a sinuca de bico em que nos encontramos: um mundo doente sem vislumbre de cura.

Com profissionais desrespeitados, afastados por doenças de trabalho, mal remunerados, torcendo pela aposentadoria, moídos por um cotidiano burocrático e afásico, cumpridores de tarefas sem sentidos, vítimas de violência e de ausência de escuta é que não encontraremos saída para uma sociedade educadora, cidadã. E, certamente, não é com famílias paralisadas — que vivem entre o descaso e o mimo —, não cumpridoras do seu papel formador de caráter que conseguiremos reverter o quadro doentio dessa gurizada. E, por fim, não é com governantes que mal valorizam de fato um projeto coletivo de educação social a curto, médio e longo prazo que teremos alguma chance de tornar a vida saudável e plena.

A saúde social está colapsando e junto com ela o que podemos chamar minimamente de coletividade sã. É o que revela nossa imagem no espelho.

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