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Cristine Takuá

É do povo Maxacali, filósofa, educadora, aprendiz de parteira. Lecionou por 12 anos em uma escola indígena de São Paulo. É representante do Núcleo de Educação Indígena e fundadora do Instituto Maracá. Coordena o projeto Escolas Vivas.

Publicado em 16/06/2025

Educar para o Bem Viver

Séculos de razão e desenvolvimento científico não foram capazes de respeitar o fluxo natural da vida, e os humanos, numa busca incessante de controle e dominação, se distanciaram da natureza, tornando tudo mercadoria

Há muitas gerações, mestres e sabedores nos quatro cantos do mundo vêm transmitindo seus conhecimentos e orientando as crianças e jovens a buscar e praticar o Bem Viver. Porém, o desequilibrado mundo atual, tecnológico e individualista, está cada vez mais afastando as pessoas dessa essência ancestral. A palavra Teko Porã, em guarani, tem um significado muito amplo e profundo, pois é um conceito político, cultural, filosófico e espiritual. É a boa e bela forma de ser e estar no seu território.

Hoje, pensamos como tornar possível aplicar esse sistema e filosofia indígena do Bem Viver nas cidades do mundo como forma de transformação a todos e, assim, criar uma espécie de metamorfose nas relações humanas e democráticas, tão distanciadas pelo abuso e pelo egocentrismo. É urgente a necessidade de metamorfosear as relações humanas para que possamos respeitar todas as formas de vida que convivem com a gente nessa morada que é a Terra.

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Terra essa que nos acolhe, nos alimenta, nos protege e nos dá todas as condições para que possamos viver em harmonia com todos os seres que compartilham conosco desse sagrado território. Contudo, de forma muito desrespeitosa, nessa teia de relações e interações, os humanos conseguiram, com suas duras e pesadas pegadas, desequilibrar, ao longo da história da humanidade, a morada de muitos espíritos. Repensar e refazer essa caminhada começam pela regeneração de Gaia — o planeta Terra —, a qual requer cicatrizar, remendar e tecer possibilidades de extinguir a monocultura mental que a tudo reduz e separa.

bem viver

“Os humanos conseguiram, com suas duras e pesadas pegadas, desequilibrar, ao longo da história da humanidade, a morada de muitos espíritos” (Foto: arquivo/Cris Takuá)

A escolha é nossa

Vivenciar o sentido profundo do Bem Viver nos dias de hoje pode, muitas vezes, parecer algo contraditório devido a diversas situações que nos afastam dele, nos levando para o Tekó Vai, o Mal Viver, que está presente no consumo desenfreado e na mania de servidão voluntária onde muitos vivem escravos de seus quereres. Também está presente nas guerras, no individualismo, na poluição dos rios, no empobrecimento, na depressão, enfim, em diversas situações que colocam o ser humano numa incessante busca de Viver Melhor — na ilusão de que os bens materiais, o conforto, o luxo, irão trazer a delicada e profunda satisfação da experiência que penetra no próprio ser e no estar quando se alcança, nas ações diárias da vida, o Bem Viver.

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Desde o início dos processos de colonização, a nossa avó do mundo, a Terra, vem sendo ferida, estuprada, contaminada pelas ações humanas que modificaram totalmente a morada de muitos seres. Hoje, vivemos em meio a muitos desequilíbrios e graves consequências dessas feridas que se concentram no útero da avozinha ancestral. Séculos de ‘razão’ e desenvolvimento científico não foram capazes de respeitar o fluxo natural da vida, e os humanos, numa busca incessante de controle e dominação, se distanciaram da natureza, tornando tudo mercadoria. O genocídio, historicamente, exterminou muitas culturas; o etnocídio segue latente silenciando línguas originárias e espiritualidades ancestrais; e o ecocídio também continua em movimento, contaminando as veias da Terra, os rios, causando destruições tão profundas que, possivelmente, não viveremos para ver e sentir sua transformação e cura.

Bases para a aprendizagem

O princípio da educação deveria ser o de semear o respeito e orientar as crianças e jovens para o caminho do Bem Viver, mas, infelizmente, somos moldados por um modelo educacional colonial, que valoriza teorias e incentiva a competição. Dessa forma, se faz necessário sonharmos mais para, assim, buscarmos caminhos que pulsem em muitos territórios, escolas vivas, onde a essência primeira seja retomar os princípios de respeito à nossa Terra e fazer brotar em cada ser o entendimento de que cada um de nós tem a responsabilidade de possuir comprometimento ético com a vida.

Sendo assim, se todos conseguissem enxergar de forma mais ampla e se desprenderem de sua humanidade, passariam a perceber que todas as formas de vida importam. As mães pacas, as mães cotias, as mães lontras, as mães onças, todos os seres merecem respeito, não somente as vidas humanas.

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Se não houvesse o racismo ambiental, possivelmente, não estaríamos presenciando essas feridas no útero da Terra. Uns chamam de mudanças climáticas, mas os líderes espirituais nos quatro cantos do mundo veem e escutam as dores e os gemidos que nossa avó tem sentido. Tecer novamente essas tramas da grande teia da vida exige de nós, humanos, conseguir fazer com que o sopro das nossas palavras caminhe no mesmo compasso dos nossos pés. Pensar, falar e fazer, com cuidado e afeto.

Porém, penso que ainda há tempo de reconstruirmos e de nos harmonizarmos. Há alguns caminhos, como as práticas educativas do Tekó Porã. Mas, as sociedades urbanas devem repensar as formas de educar suas crianças. Valorizando o potencial que jaz dentro de cada uma, principalmente, fazendo uma escola que seja útil para a vida das pessoas e capaz de ampliar a consciência na busca do respeito.

Na floresta, habitam seres muitos criativos. Os espíritos guardiões de tudo que nela habita estão a nos observar, e estão bravos com nossa desajustada maneira de caminhar. Precisamos reaprender a caminhar suavemente sobre a Terra, senão, todos nós morreremos em consequência dos nossos próprios dejetos, ganâncias e contradições.

No entanto, enquanto os cantos sagrados estiverem soando nas casas de rezas, os rezadores e rezadoras entoando as boas e belas palavras, e as crianças cantando e encantando o mundo, ainda teremos possibilidades de praticar o Bem Viver e de regenerar o interior profundo da nossa avozinha, a Terra.

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