NOTÍCIA
Proteção da juventude requer pacto entre famílias, escolas e Estado
Por Gustavo Lima | Invisibilizado, negligenciado e alvo de violência em casa e até mesmo na escola, o adolescente só é enxergado quando deixa de ser a vítima e se torna o agressor. É o que alerta Vanessa Cavalieri, juíza da Vara da Infância e Juventude. Prevenir a violência no ambiente digital e garantir a proteção das crianças e adolescentes são ações essenciais para que esse ciclo seja, enfim, quebrado. Para tanto, se faz necessária a união das famílias, das escolas e do governo.
Na avaliação de Vanessa, quando o jovem se torna agressor e passa a ser percebido, o objetivo dessa visibilidade é claro. “Encarcerar e colocá-lo em um lugar onde ele não precisará mais ser visto.” A juíza relata ter se percebido na posição de “dona da caneta” que encarcera os jovens. “Foi aí que eu decidi não fazer mais parte desse ciclo perverso de invisibilidade. Eu precisava sair daquelas quatro paredes da sala de audiência para conversar com a sociedade, mostrar para as famílias, escolas e governo o que eu via.”
Vanessa esteve ao lado do pediatra Daniel Becker e da psicanalista Fernanda Costa Moura no 6º Congresso Socioemocional LIV*, no Rio de Janeiro, que aconteceu na quarta-feira, 21.
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Oito em cada 10 brasileiros de nove a 17 anos que usam internet têm celular próprio
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Daniel Becker falou sobre o impacto das telas na infância e na formação da juventude. “Na primeira infância e na adolescência se dão fenômenos complexos no corpo e no cérebro, que são indispensavelmente ligados às experiências do mundo real. Na primeira infância ocorre a formação do ser humano e, na adolescência, a configuração do cérebro através do amadurecimento do córtex pré-frontal. Diante disso, o jovem precisa de todas as experiências da vida que todos nós tivemos, mas os adolescentes estão trocando isso por conteúdos muito inapropriados”, diz. “O resultado são transtornos físicos — miopia, sedentarismo, doenças crônicas, fraqueza, dificuldade de ler ou de prestar atenção em uma aula. O uso constante do celular treina o cérebro para perceber tudo o que há no mundo real como chato e apenas o ambiente digital como algo maravilhoso.”
Legenda: Vanessa Cavalieri, Daniel Becker e Fernanda Costa Moura participaram do painel de abertura do 6° Congresso Socioemocional LIV. A conversa foi mediada por Caio Lo Bianco, CEO do LIV (crédito: divulgação/LIV)
Becker enfatiza o tipo de informações nocivas encontradas no ambiente digital, como conteúdos violentos e racistas. “Há uma série de blogueiras e influenciadoras dos nichos fitness ou de cosméticos, por exemplo, que propagam estupidez e futilidade na internet. A ostentação de corpos, vidas e viagens de luxo faz muito mal, especialmente às meninas, que se comparam e perdem a autoestima. Isso as leva, com o auxílio do algoritmo, para esse mundo do extremismo alimentar, dietas e treinos radicais e da cosmética”, lista.
“Hoje temos um fenômeno esquisitíssimo de meninas que, ao invés de brincar de bonecas, brincam de skincare. Meninas de nove anos usando creme antirrugas. Isso é uma deformação tão grave da infância. Trata-se do extermínio da infância e a infância é fundamental para a saúde vital. É o sonho, a alegria, a fantasia, a aventura, o antiestresse e o que nos prepara para a vida adulta, e essas crianças não estão tendo infância”, pontua Daniel Becker.
Ao citar a série Adolescência, produção que aborda a violência entre jovens e o bullying, Fernanda Costa Moura reforça a necessidade de um pacto entre a família, a escola e o Estado em prol da juventude. “Nós todos temos que agir melhor e nós todos teremos sempre a responsabilidade do fracasso, porque isso não se resolve de uma vez, mas temos que tomar a nossa responsabilidade.”
Vanessa Cavalieri também alerta para os conteúdos encontrados na internet e para o comportamento dos jovens no ambiente virtual. “Há crianças — que nem mesmo têm a idade permitida para usar o WhatsApp — trocando figurinhas misóginas em grupos, se dirigindo às meninas de forma misógina e ninguém se posiciona contra isso, nem mesmo as famílias, que deveriam estar monitorando”, afirma.
“Numa ânsia de não serem autoritárias, as famílias abriram mão da autoridade. Se a gente já sabe que a internet é a rua, que não é segura, que pessoas perigosas estão no WhatsApp, no TikTok, no Discord, entre outras plataformas, é evidente que os pais precisam supervisionar. Porque os pais não deixam os filhos saírem sozinhos na rua sem saber para onde eles vão. Ou, se deixam, são monitorados. Na internet é preciso o mesmo cuidado”, enfatiza Vanessa.
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Série ‘Adolescência’ e a violência: prevenção exige ações coletivas
Brincar, sonhar e contar histórias com Mia Couto, Jeferson Tenório e Joaquim Falcão
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A juíza destaca ainda que o ato de supervisionar não é uma invasão de privacidade. “Porque não existe privacidade nas redes. A maior prova disso é que toda semana eu recebo processos ou investigações contra adolescentes baseados no que eles fizeram nas redes sociais e que foi monitorado pela Meta, encaminhado para a Interpol ou para a Polícia Federal. Tudo está sendo monitorado, os únicos que estão ‘respeitando essa privacidade’ são os pais.”
Para dar início à supervisão, Vanessa sugere acordos entre pais e filhos. “A família pode fazer combinados, comprometendo-se a não olhar a conversa do filho com a namorada ou com a melhor amiga, por exemplo. Agora um grupo de WhatsApp onde há 50 pessoas não é privado, é um lugar público.”
*O repórter viajou ao Rio de Janeiro a convite do programa LIV (Laboratório Inteligência de Vida), focado em educação socioemocional.
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