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Autor

Redação revista Educação

Publicado em 09/05/2025

Do conceito à urgência: por que falar sobre masculinidade tóxica?

A masculinidade está doente. E não apenas os homens, mas toda a sociedade que os cerca está adoecida

Por Rubens Bollos* | A masculinidade está doente. E não apenas os homens, mas toda a sociedade que os cerca está adoecida. Quando falamos em “masculinidade tóxica”, não nos referimos a uma condenação à existência masculina, mas a um modelo cultural hegemônico que impõe aos meninos e homens um ideal de força, domínio e insensibilidade. Este modelo tem se revelado nocivo à saúde mental, ao convívio social, às relações familiares e, inclusive, à própria biologia.

A palavra masculino vem do latim masculus, diminutivo de mas (homem adulto, macho), associada à ideia de força e fecundidade. Feminino vem do latim femina, que significa mulher, ligada à fertilidade, nutrição e cuidado. Esses significados originais não apontam para antagonismo, mas para complementaridade. Força e cuidado, ação e nutrição, estrutura e acolhimento — atributos que, integrados, fortalecem tanto indivíduos quanto sociedades.

A distorção desses princípios por meio de práticas de dominação, controle ou submissão marca o desvio que hoje chamamos de “masculinidade tóxica”. Tóxico deriva do grego toxikon, originalmente relacionado ao veneno utilizado em flechas. A etimologia revela seu potencial simbólico: aquilo que, ao ser lançado, contamina à distância. 

Esse sentido ajuda a compreender como certas formas de masculinidade não apenas ferem diretamente, mas também envenenam relações, ambientes e culturas — mesmo sem contato direto. Assim, o termo “masculinidade tóxica” ganha força não apenas como crítica, mas como alerta sobre os efeitos difusos e persistentes de comportamentos e modelos que, ao serem repetidos, intoxicam gerações. Algo que, ao contaminar, adoece e fere.

Desde a infância, meninos são incentivados a reprimir suas emoções, competir para provar valor e rejeitar qualquer traço associado ao cuidado ou à escuta. Crescem, muitas vezes, isolados emocionalmente, confundindo vulnerabilidade com fraqueza. Esse processo compromete o desenvolvimento afetivo, favorece quadros de ansiedade, depressão, transtornos de conduta e dificuldades de relacionamento.

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As estatísticas são contundentes: os homens cometem mais de 90% dos homicídios; as taxas de feminicídio vêm crescendo de forma alarmante no Brasil — entre 2016 e 2022, o aumento foi de 10%, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), e em 2024, ao menos uma mulher foi vítima de feminicídio a cada 17 horas. Os homens também respondem por 79% dos suicídios registrados no Brasil [1].

Embora as causas sejam multifatoriais, não há como ignorar o papel das normas culturais que silenciam, oprimem e condicionam o homem a responder com agressividade diante de qualquer sinal de fragilidade.

A história brasileira contribui para esse cenário. Pesquisas genéticas revelam que descendemos de poucos pais (em geral, europeus, bandeirantes, degredados) e muitas mães (indígenas, africanas, camponesas), muitas vezes submetidas a relações violentas. Isso significa que a base genética e comportamental da sociedade brasileira foi forjada em um contexto de dominação, exploração e abuso. Herdamos, assim, não apenas um modelo cultural, mas uma matriz biológica marcada pela assimetria, imposição e pela violência. A colonização impôs um padrão masculino predatório, autoritário e sexualizado, que foi inscrito tanto na biologia quanto na simbologia da população brasileira.

masculinidade tóxica

Foto: Shutterstock

A biologia não é destino: genética, cérebro e ambiente

A genética desempenha um papel importante na predisposição à agressividade e ao comportamento impulsivo. E a ciência contemporânea tem revelado que não descendemos exclusivamente de uma única espécie humana. Nosso genoma é resultado de uma ancestralidade híbrida, com traços herdados não apenas do Homo sapiens, mas também de outras linhagens como os neandertais e os denisovanos. Estudos genômicos indicam que entre 1% e 4% do DNA de populações fora da África possui origem neandertal, enquanto traços denisovanos estão presentes sobretudo em populações da Oceania e partes da Ásia. [2]

Ainda que o Homo sapiens tenha emergido há cerca de 300 mil anos, os ramos evolutivos humanos ainda não estão totalmente definidos, e há evidências robustas de que hibridizações e encontros entre espécies, bem como entre subpopulações dentro da mesma espécie. Esses processos de cruzamento, perda e fusão contribuíram para uma complexidade crescente na constituição biológica e social dos grupos humanos. 

Como resultado, herdamos uma diversidade fenotípica que inclui variações na resistência imunológica, predisposição comportamental, agressividade, sensibilidade emocional, organização coletiva e padrões culturais, aspectos que moldam a forma como nos relacionamos, reagimos e nos organizamos em sociedade. 

A atual configuração civilizatória, com cerca de 10 mil anos, representa apenas uma fração recente dessa longa e intricada trajetória evolutiva. Compreender essa ancestralidade múltipla é essencial para reconhecer que nossos padrões de masculinidade, vínculos afetivos e conflitos sociais têm raízes profundas, biologicamente herdadas e culturalmente moduladas [3].

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Estudos identificam os genes MAOA (monoamina oxidase A) e COMT (catecol-O-metiltransferase) como importantes na regulação emocional e no controle dos impulsos. O MAOA, conhecido como “gene guerreiro”, participa da quebra de neurotransmissores como serotonina e dopamina, e sua combinação com traumas precoces pode aumentar a tendência à impulsividade e à violência. Pesquisas sugerem que variantes arcaicas desses genes já existiam no Homo sapiens e em linhagens como Neandertais e Denisovanos, tendo possivelmente passado por seleção natural, moldando padrões comportamentais ao longo das migrações humanas. [2]

Além disso, o cromossomo Y, exclusivo dos homens, pode influenciar a vulnerabilidade comportamental, especialmente em contextos ambientais adversos, favorecendo impulsividade e dificuldades na regulação emocional. Estudos em genética comportamental indicam que essa predisposição, combinada a fatores sociais e culturais, ajuda a explicar diferenças estatísticas entre homens e mulheres em níveis de agressividade, criminalidade e comportamentos de risco. [4]

A masculinidade é herdada não apenas socialmente, mas também por vias biológicas. A epigenética, que estuda como o ambiente pode alterar a expressão dos genes sem mudar o DNA e que atua além da genética tradicional, revela que repressões emocionais, experiências adversas e modelos tóxicos podem deixar marcas biológicas duradouras. Essas alterações podem ser transmitidas entre gerações, reforçando padrões como autoritarismo, alcoolismo, negligência afetiva e impulsividade. [4]

Neurociência

A neurociência ajuda a compreender parte dessa complexidade. O cérebro masculino possui, em média, menos conexões entre emoção e linguagem, o que exige um esforço maior na educação emocional. Estudos indicam que essas conexões, entre o sistema límbico (centro das emoções) e o córtex pré-frontal (envolvido na linguagem, tomada de decisão e regulação), são menos integradas nos homens do que nas mulheres, o que pode contribuir para uma menor fluência emocional verbal [5].

Essas vulnerabilidades se agravam na ausência de referências afetivas e na presença de traumas precoces, ampliando o risco de comportamentos impulsivos, externalização da dor e tendência à violência. Quando somadas a uma arquitetura cerebral menos integrada entre as áreas da emoção e da linguagem, mais comum em cérebros masculinos, essas fragilidades contribuem para uma menor capacidade de autorregulação e maior propensão à masculinidade tóxica. Assim, a combinação de traumas, estrutura neurobiológica e ausência de vínculos afetivos está na base de muitos comportamentos de risco e da perpetuação de modelos tóxicos de masculinidade.

Além das diferenças estruturais no cérebro, a neurobiologia do estresse revela o papel do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA) na vulnerabilidade comportamental. Homens tendem a apresentar maior reatividade do HHA frente a situações de ameaça, resultando em picos de cortisol e adrenalina que, se crônicos, desregulam o sistema imunológico, favorecendo inflamações sistêmicas e aumentando a impulsividade. A ativação excessiva desse eixo não apenas agrava padrões de agressividade e adoecimento físico, como também perpetua comportamentos de risco e reduz a capacidade de empatia e autorregulação emocional. Assim, a biologia do estresse atua como mediadora entre cultura tóxica e saúde coletiva [6].

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Na esfera clínica, embora a masculinidade tóxica não seja classificada como uma doença, ela pode manifestar padrões comportamentais que se aproximam de critérios diagnósticos reconhecidos no DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e na CID-11 (Classificação Internacional de Doenças). Entre eles estão o transtorno de personalidade narcisista (caracterizado por grandiosidade, necessidade de admiração e ausência de empatia), o transtorno de personalidade antissocial (impulsividade, manipulação, desprezo por normas sociais), o transtorno de personalidade histriônica (busca constante de atenção, dramatização excessiva) e o transtorno dissocial (presente na CID-11, com padrões persistentes de insensibilidade, violação dos direitos alheios e ausência de remorso). Esses quadros não explicam por si só a masculinidade tóxica, mas ajudam a compreender como certas manifestações clínicas podem se alinhar ou agravar os efeitos socioculturais da mesma, especialmente quando não reconhecidas ou tratadas adequadamente.

Cultura, mídia e a pedagogia da agressividade

A masculinidade tóxica se perpetua culturalmente por meio da linguagem, da mídia e das instituições. Desde cedo, meninos são expostos a discursos que associam virilidade à dominação, à frieza e ao desprezo pelas emoções. A pornografia, consumida precocemente por cerca de 80% dos adolescentes meninos antes dos 16 anos — dado identificado por pesquisas internacionais como o relatório do Children’s Commissioner for England (2023) e confirmada no Brasil pela pesquisa TIC Kids Online (2023) — torna-se uma forma distorcida de educação sexual, erotizando a violência e reforçando a objetificação do feminino [7,8].

Grupos como os incels (homens que se consideram involuntariamente celibatários), influenciadores da chamada machosfera e redes sociais que propagam discursos de ódio têm estimulado jovens a canalizarem suas frustrações afetivas contra mulheres e minorias. Algoritmos e bolhas digitais amplificam a intolerância, fomentando a construção de identidades masculinas ressentidas e agressivas. 

Plataformas como Discord, 4chan e fóruns criptografados, muitas vezes de difícil acesso para pais, responsáveis e até mesmo para as autoridades fiscalizadoras, oferecem anonimato, e a ausência de uma regulação adequada facilita o recrutamento, a radicalização e o compartilhamento de conteúdos violentos e misóginos. Esse cenário escancara a urgência de políticas de regulação das redes e de educação digital crítica, sobretudo entre famílias e instituições educativas.

A série britânica Adolescência (Netflix, 2025) — sobre a qual já escrevi anteriormente —, ilustra esse cenário ao retratar jovens sem vínculos afetivos seguros, isolados emocionalmente, e influenciados por gurus digitais e conteúdos extremos. A ausência de figuras paternas simbólicas abre espaço para substituições disfuncionais — como pornografia, gangues ou discursos radicais —, agravando o risco de violência on e offline. A série “acordou” o mundo todo pois o evento acontece em país rico, em um lar comum e não periferia de 3º mundo, como “esperado”.

Contribuem para o agravamento deste quadro, os exemplos de lideranças e estadistas aqui e no mundo com declarações misóginas sob o disfarce de piadas ou ironias. Essas manifestações atravessam o espectro político e cultural, ganhando forma caricatural em momentos de radicalização populista. 

Memes e falas do ex-presidente brasileiro como “imbrochável”, “incomível” e “imorrível”, repetidos em discursos públicos e redes sociais, cristalizam um modelo viril caricato que reduz a identidade masculina à performance e à negação da vulnerabilidade. O atual, ao comentar que os índices de violência doméstica aumentam após partidas de futebol, relativizou a gravidade do tema com: “Se o time dele perde, tudo bem”. Além disso, referiu-se à recém-empossada ministra da Secretaria de Relações Institucionais como “essa mulher bonita” — justificando sua nomeação como forma de facilitar o relacionamento entre o Executivo e o Congresso. 

A fala, amplamente criticada por setores da sociedade civil, escancarou como, mesmo em esferas de poder, a presença feminina ainda é frequentemente reduzida à aparência, revelando o quanto a misoginia institucionalizada persiste nos bastidores da política.

A misoginia torna-se ainda mais evidente em episódios como os ataques a mulheres em cargos de poder — com insinuações sexuais, acusações degradantes e campanhas sistemáticas de humilhação. São falas que deixam de ser apenas machistas (enraizadas em estruturas) para se tornarem misóginas (movidas pelo ódio e desprezo). 

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Esse padrão se repete em diferentes esferas: nas universidades, com trotes violentos que normalizam agressões sexuais; no meio artístico, com casos como o de Harvey Weinstein, que gerou o movimento global #MeToo, revelando décadas de abusos sistemáticos na indústria do entretenimento; nos esportes, com escândalos envolvendo atletas e treinadores — como os abusos sexuais cometidos contra ginastas olímpicas nos Estados Unidos; e nas universidades, com trotes e práticas que banalizam a violência sexual — como o recente episódio ocorrido em São Paulo, em que estudantes de medicina aplicaram o trote “entra porra, sai sangue”, que viralizou nas redes e expôs a banalização da violência sexual sob a máscara do humor universitário e foram expulsos da faculdade. 

Esses episódios, muitas vezes tratados como exceções ou esquecidos como memes virais, revelam padrões perigosos. O termo “meme” foi cunhado pelo biólogo Richard Dawkins em seu livro “O Gene Egoísta” (1976), a partir da palavra grega “mimeme” (algo imitado), para descrever uma unidade de informação cultural que se propaga de mente em mente como um gene, influenciando comportamentos e crenças. Dawkin, professor da Universidade de Oxford, criou o conceito para explicar como certos elementos culturais se perpetuam mesmo sem benefício evolutivo direto — como ideias religiosas, modas ou normas sociais [8].

Aplicado à masculinidade tóxica, o conceito de meme ajuda a compreender como certos padrões de comportamento se tornam virais, mesmo sendo prejudiciais, justamente porque operam no nível simbólico, emocional e social da cultura humana. Esses eventos, ao não serem debatidos com profundidade, transformam-se em reforços culturais da misoginia, em vez de oportunidades de transformação ética e social. Que tipo de silenciamento coletivo estamos sustentando ao não confrontá-los com seriedade?

Homens também são vítimas dessa cultura. Bullying entre meninos, repressão ao afeto, homofobia e rivalidades destrutivas são expressões da masculinidade tóxica voltada contra o próprio masculino. 

Os dados são alarmantes: 91% das vítimas e 92% dos autores de homicídios no Brasil são homens [1]. Os homens também lideram estatísticas de violência entre torcidas organizadas, agressões em bares, bullying escolar e cyberbullying [9]. Entre adolescentes, o suicídio é quase três vezes mais comum entre meninos do que entre meninas [10]. No Brasil, em 2023, 145 pessoas transexuais foram assassinadas — 72% negras e 57% atuando como profissionais do sexo — consolidando o país, pelo 15º ano consecutivo, como o que mais mata pessoas trans no mundo. Gays, pessoas em situação de prostituição e trans seguem entre as principais vítimas de crimes de ódio e violência extrema, frequentemente cometidas por outros homens [11].

Esses episódios, longe de exceções, expõem um imaginário coletivo estruturado na vergonha da vulnerabilidade, na repressão afetiva e na crença de que ser homem é provar, a todo custo, força e controle. Um imaginário que precisa, urgentemente, ser ressignificado.

Mais do que reformular o que é ser homem, trata-se de libertar o masculino da cultura da opressão, da solidão e da performatividade agressiva — conceito desenvolvido por Judith Butler, aqui compreendido como a expressão de masculinidade afirmada por meio de atos simbólicos ou práticos de força, dominação e violência, como se esses comportamentos fossem essenciais para “provar” que alguém é homem. Um homem não se mede pela força que impõe, mas pelos vínculos que sustenta. Não pelo medo que causa, mas pela paz que inspira. E, então, o homem evolui para o Humano, como nos inspira o educador Bernard Charlot.

O que diz a lei: entre violência e responsabilidade

A Constituição Federal de 1988 garante a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República (art. 1º, III) e veda qualquer forma de discriminação por gênero, orientação sexual ou identidade. Assim, a masculinidade tóxica, quando deixa de ser um padrão subjetivo internalizado e passa a se manifestar em atos concretos de violência, assédio, humilhação, coerção ou discriminação, encontra barreiras legais e sanções penais.

O Código Penal brasileiro e legislações correlatas estabelecem como crimes: lesão corporal (art. 129), ameaça (art. 147), estupro (art. 213), feminicídio (Lei nº 13.104/2015), violência psicológica contra a mulher (Lei Maria da Penha, art. 7º), LGBTfobia (considerada crime de racismo pelo STF desde 2019). Além disso, a Lei do Feminicídio considera o assassinato de mulheres por razões de gênero um agravante penal, e a Lei Maria da Penha prevê medidas protetivas urgentes para prevenir e interromper ciclos de violência.

O Direito, nesse sentido, não apenas pune, mas também educa. Ao estabelecer limites, ele atua como referência simbólica — um contorno social e institucional que ajuda a frear a escalada de comportamentos abusivos normalizados pela cultura. Conhecer a lei é um passo fundamental para prevenir a violência e garantir a proteção das vítimas. Também é um instrumento de cidadania e saúde coletiva, na medida em que reconhece a violência de gênero como um problema estrutural que exige resposta sistêmica.

Ser homem, à luz da Constituição, é ser cidadão. É respeitar os direitos humanos, cultivar a equidade e não utilizar o poder como forma de dominação. Quando a masculinidade se torna instrumento de controle, violação ou opressão, ela deixa de ser identidade e passa a ser infração. Ser masculino não é estar acima da lei, mas viver com responsabilidade, ética e justiça.

Pai ausente, mãe sobrecarregada — um espelho da crise

A crise da função paterna tem produzido efeitos profundos e silenciosos. Falta-nos o pai que orienta, escuta, protege e, nesta ausência, são substituídos por gurus misóginos, pornografia, gangues ou radicalismos digitais. A função paterna é essencial não para controlar, mas para oferecer contorno, limite afetivo e referência de autoridade amada — aquela que educa com firmeza e cuidado, que diz “não” com presença e diz “sim” com responsabilidade.

Essa ausência não ocorre apenas no plano simbólico, mas também no plano material e estatístico. Segundo dados do IBGE de 2022, o Brasil conta com mais de 11 milhões de famílias chefiadas por mulheres solo, representando cerca de 28% dos lares do país[12].

Muitas dessas mulheres acumulam trabalho formal ou informal, tarefas domésticas, cuidado com os filhos e a gestão emocional e educacional da casa — sem qualquer divisão afetiva ou material. Em contrapartida, famílias chefiadas exclusivamente por homens solo são minoria, e muitas vezes sem envolvimento cotidiano com os filhos. O abandono paterno — financeiro, afetivo ou institucional — reforça o desequilíbrio entre os papéis parentais e perpetua um ciclo de sobrecarga para as mulheres.

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Esse excesso de maternagem, quando não equilibrado com uma presença paterna estruturante, pode gerar filhos mais autoritários, mimados e intolerantes à frustração. Paradoxalmente, o excesso de doação materna pode se tornar um ‘fogo amigo’: uma tentativa de proteção que, ao isentar o filho de frustrações e limites, acaba por reforçar padrões narcisistas e agressivos. A ausência do pai, paradoxalmente, alimenta a masculinidade tóxica ao deixar a mulher sozinha na difícil tarefa de dar limites e representar os dois polos da parentalidade.

Outro aspecto importante e pouco discutido é o medo da homoafetividade entre homens. O contato pai e filho — abraço, colo, conversa íntima, carinho — é a primeira forma de relação afetiva entre dois seres do mesmo sexo. Essa intimidade inicial, essencial para o desenvolvimento emocional saudável, vai sendo desvalorizada e reprimida culturalmente à medida que meninos crescem. Dois adolescentes que se abraçam, choram juntos ou compartilham confidências passam a ser vistos com desconfiança. Aquilo que entre meninas é celebrado como vínculo, entre meninos é muitas vezes inibido em nome da virilidade. Já no início dos anos 2000, o psicólogo clínico de Harvard, William Pollack, em sua obra ‘Meninos de Verdade’, evidenciava como os garotos aprendem a reprimir emoções desde cedo, sendo ensinados a suportar a dor — seja ela física ou emocional — em silêncio [13].

Essa lógica da superação pela dor remete a estruturas antropológicas ancestrais, como os rituais de iniciação masculina, em que o sofrimento e o corte do vínculo com a infância são vistos como passagem obrigatória para o reconhecimento social como homem. Essas experiências culturais, ao serem incorporadas sem atualização simbólica, continuam a reforçar modelos de masculinidade baseados na negação do afeto e na valorização do endurecimento emocional. 

O resultado é a ruptura precoce com a dimensão afetiva entre homens, gerando adultos que se relacionam com rigidez, desconfiança e aversão à vulnerabilidade. Resgatar a legitimidade do afeto entre homens é também parte da reconstrução da masculinidade saudável.

Caminhos de reconstrução: por onde começamos?

Para que a reflexão se transforme em ação, é fundamental oferecer caminhos concretos. A transformação começa nas famílias, mas precisa ser reforçada nas empresas e, principalmente, nas escolas, espaços fundamentais para educar meninos e meninas preventiva e emocionalmente, para o respeito e a escuta. Aqui algumas reflexões para pais, educadores e profissionais para inspirar sobre o futuro de nossos jovens:

  • Que tipo de cultura masculina estou sustentando com meus atos, silêncios e decisões?
  • Que modelos estou transmitindo a filhos, alunos, colegas e liderados?
  • Tenho contribuído para a formação de meninos capazes de sentir e respeitar?
  • O que posso fazer, a partir de hoje, para reconstruir o homem como referência afetiva e ética?

O sofrimento emocional masculino não adoece apenas quem o vive, mas reverbera nas relações familiares, afetivas e sociais. 

*Rubens Harb Bollos é médico, mentor e palestrante. É mestre e doutor (Ph.D) em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e pós-doutorado em Biologia do Desenvolvimento (USP/ICB). É também counsellor biográfico formado pela E.L. Estudos Biográficos/General Anthroposofical Section (Suiça) e em Transformação de Conflitos, pela Cátedra para Estudos de Paz da UNESCO (Innsbruck University, Austria). É analista reichiano clinico-corporal pelo IBAR/SIAR (Itália) e professor convidado da Fundação Dom Cabral. Presidente-fundador da Associação Brasileira de Medicina Personalizada e de Precisão.

Referências:

[1] Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. São Paulo: FBSP, 2022. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf.

[2] Dannemann, M., Prüfer, K., & Kelso, J. (2017). Functional implications of Neandertal introgression in modern humans. Genome Biology, 18, 61. https://doi.org/10.1186/s13059-017-1181-7

[3] Prüfer, K. et al. (2014). The complete genome sequence of a Neanderthal from the Altai Mountains. Nature, 505, 43–49. doi:10.1038/nature12886

[4] Rhee, S. H., & Waldman, I. D. (2002). Genetic and environmental influences on antisocial behavior: A meta-analysis of twin and adoption studies. Psychological Bulletin, 128(3), 490–529. https://doi.org/10.1037/0033-2909.128.3.490

[5] Ingalhalikar, M. et al. (2014). Sex differences in the structural connectome of the human brain. Proceedings of the National Academy of Sciences, 111(2), 823–828. https://doi.org/10.1073/pnas.1316909110

[6] Carvalho Fernando, C. A., & McEwen, B. S. (2021). Toxic stress and social inequalities: The neurobiology of health disparities in adolescence. Nature Reviews Neuroscience, 22(9), 595–610. DOI: 10.1038/s41583-021-00473-0

[7] Children’s Commissioner for England. (2023). Pornography and Young People: Understanding the Impact. Relatório técnico. Disponível em: https://www.childrenscommissioner.gov.uk

[8] Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). (2023). Pesquisa TIC Kids Online Brasil 2023. São Paulo: CGI.br. Disponível em: https://cetic.br/pesquisa/kids-online

[9] Dawkins, R. (1976). O Gene Egoísta. Oxford University Press.

[10] Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. São Paulo: FBSP, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br

[11] Ministério da Saúde / DATASUS (2023). Sistema de Informação sobre Mortalidade – Brasil, 2023. https://datasus.saude.gov.br

[12] ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais no Brasil – 2023. Brasília: ANTRA, 2024. Disponível em: https://antrabrasil.org

[13] Pollack, W. (2000). Meninos de Verdade.  Editora Alegro.

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