NOTÍCIA

Políticas Públicas

Autor

Luciana Alvarez

Publicado em 23/04/2025

Educação infantil vive expansão e precarização

Com salários baixos e condições inadequadas, auxiliares são contratados(as) para assumir atividades que deveriam ser de docentes

Os conceitos de ’educar’ e ‘cuidar’ são absolutamente indissociáveis, sobretudo, quando se trata da primeira infância. Mas, enquanto o Brasil passa por uma forte expansão da oferta de vagas na educação infantil, continua promovendo uma precarização das condições de atendimento às crianças e de trabalho dos educadores. Em vez de se contratar professores para essa etapa, as funções têm sido dadas a auxiliares, de quem não costuma ser exigida uma formação superior e a quem se oferecem salários piores.

Lívia Fraga Vieira, professora na Faculdade de Educação da UFMG, não tem dúvidas de que a situação ideal é ter 100% de professores formados em pedagogia como responsáveis pelas crianças desde a creche, numa razão de seis a sete crianças por profissional. “Evidentemente que, em certos momentos, ficar com sete crianças pesa. Por isso a gente defende a docência compartilhada, mas entre dois professores, com formação”, explica ela, que foi coordenadora de uma pesquisa nacional sobre o tema, intitulada Perfil e atuação das auxiliares na educação infantil.

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A realidade tem se mostrado muito diferente do desejável. O estudo que Lívia coordenou mostra que 25% das auxiliares têm apenas o ensino médio completo, que 6,4% têm o curso ‘normal’, que é também de nível médio, e que ainda há uma parcela, de 5,7%, que nem sequer completou a educação básica. Em conjunto são 37,1% dos profissionais que precisariam passar por formação. Há uma parte que já está, atualmente, na busca pelo desenvolvimento profissional: 24,8% cursam uma graduação.

Contudo, uma grande parcela, de 38,2%, são profissionais formados e até com especialização. Ainda que tenham o estudo, não têm o mesmo cargo e remuneração que as professoras. “Muitos contratos de auxiliares são temporários, mas que duram e duram. E elas são admitidas por processo seletivo simplificado, não é concurso público, com cargo e carreira, ou até terceirizadas. Cria-se uma situação em que as auxiliares ficam mais horas, ganhando remuneração menor. E, na prática, atuam como regentes de turma”, relata Lívia sobre as situações que viu Brasil afora.

Em alguns locais, os serviços para os de zero aos três anos é feito todo com base em assistentes. “Vi num berçário uma professora para seis auxiliares. E não é uma situação excepcional, mas sim algo que está cada vez mais recorrente”, diz. E Lívia alerta que a realidade deve ser ainda maior do que os números mostram, porque há subnotificação. “Tem um município vizinho de Belo Horizonte que consta no Censo que não tem auxiliares, mas eu sei que eles têm sim”, afirma.

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Beatriz Abuchaim, gerente na Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, entidade referência em primeira infância, defende que, ao reconhecer os desafios atuais, devem-se desenhar soluções possíveis para o Brasil, o que, na prática, significa aceitar que a educação infantil vai lançar mão de assistentes que não sejam professores formados. “A realidade é de déficit de vagas, com muitas crianças que não têm seu direito à educação garantido. Então, temos de pensar em como qualificar os profissionais que já estão atuando e como podemos permitir aumentar a oferta”, afirma.

Para ela, o essencial é seguir o que está previsto na resolução do Conselho Nacional de Educação sobre o tema. “O professor é o regente, que deve estar presente em todos os momentos. Ele é quem deve planejar as atividades, fazer o contato com as famílias, avaliar as crianças. Parte da carga horária do professor é para o planejamento pedagógico”, explica Beatriz.

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“Pensar em como qualificar os profissionais que já estão atuando e como podemos permitir aumentar a oferta”, diz Beatriz Abuchaim, da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (Foto: reprodução/Canal Futura)

Portanto, se há períodos ou turnos em que só os assistentes ficam responsáveis pelas crianças, a oferta não está respeitando a legislação. E isso é algo que tem acontecido com frequência; na pesquisa sobre trabalho das auxiliares, 29% responderam que ficam responsáveis pelas crianças sem a presença da professora no período da tarde.

Junto ao docente e sem assumir suas responsabilidades, outros profissionais podem colaborar nas tarefas da rotina de creches e pré-escolas. “Tanto o professor como o auxiliar são adultos de referência para as crianças. Embora seja o professor quem organize, é desejável que o trabalho seja uma parceria, que haja uma fluidez entre os papéis; não é para o auxiliar ficar só no papel de trocar fralda e dar comida”, afirma Beatriz. E, claro, todos precisam passar por formações continuadas frequentes.

Um dos problemas atuais é que cada município cria o cargo e as funções de um jeito próprio. “Já identificamos 58 denominações: assistente, monitor, apoio, babá, pajem”, elenca Rita de Cássia Coelho, coordenadora de Educação Infantil da Secretaria de Educação do Ministério da Educação. A coordenadora reconhece que a lei admite esse profissional, mas se preocupa em como suas funções têm sido definidas pelas diferentes redes. “Nas descrições das funções há coisas que seriam o cerne do trabalho do professor, como brincar, contar histórias, cantar, ninar”, diz.

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Segundo Rita, o resultado é uma fragilização do trabalho da docência na educação infantil, uma situação que se torna injusta para os auxiliares, para os professores e, acima de tudo, para as próprias crianças. “Se o financiamento da educação infantil é insuficiente, deveríamos lutar por mais recursos em vez de precarizar o trabalhador. Até porque uma creche ruim, sem qualidade, pode prejudicar o desenvolvimento da criança. A pressão por vaga não pode derrubar a qualidade.”

 

Cada município cria o cargo e as funções de um jeito próprio. “Já identificamos 58 denominações: assistente, monitor, apoio, babá, pajem”, elenca Rita de Cássia Coelho, coordenadora de Educação Infantil do MEC (Foto: Divulgação/Cogei)

Além da dimensão econômica, a precarização do trabalho com a primeira infância reflete uma desvalorização da infância na sociedade, lembra Paulo Fochi, coordenador e professor do curso de pedagogia da Unisinos e fundador do Observatório da Cultura Infantil (Obeci). “Não faz tanto tempo, a creche era vinculada a uma concepção assistencialista. E até hoje se mantém uma visão de que de zero a três anos não é necessário um profissional com formação, o que é um grande equívoco, porque é o momento mais importante do desenvolvimento do ser humano”, afirma.

Logo, o tema transcende as instituições de ensino, exigindo uma mudança cultural mais ampla dos brasileiros. “A gente precisa construir um conhecimento coletivo sobre a educação e o desenvolvimento infantil. Com esse conhecimento, num momento de eleição municipal, as pessoas ficariam mais atentas às políticas educativas para a infância”, cita o pesquisador.

E a hora de fazer a discussão — e aumentar a conscientização — é agora. “Estamos num momento propício, porque estamos discutindo os Parâmetros de Qualidade da Educação Infantil, e um dos eixos é a qualidade dos profissionais e a adequada proporção no número de adultos e crianças. O próximo passo é sair dos documentos e partir para o monitoramento”, diz Fochi.

 

A precarização do trabalho com a primeira infância reflete uma desvalorização desta etapa na sociedade, lembra o professor Paulo Fochi (Foto: arquivo pessoal)

Todos pelas crianças

Situações em que auxiliares ficam submetidas às ordens de uma professora podem produzir dinâmicas indesejáveis — e que acabam criando maus modelos para os pequenos. “Na relação professor-auxiliar a gente tem muitas representações de poderes, e muito exercício de micropoderes. Sobretudo quando se trata de escolas particulares, é comum ter uma professora titular branca e uma auxiliar negra, o que reproduz a imagem de uma relação que está ancorada no imagético construído a partir do racismo estrutural da nossa sociedade”, afirma Solange Miranda, que desde 2012 trabalha na EMEI Nelson Mandela, na capital paulista, onde já atuou como professora, coordenadora e diretora. A EMEI é referência nacional de educação infantil a partir de um currículo antirracista.

 

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Sobretudo em escolas particulares, é comum ter professora titular branca e uma auxiliar negra; o que reproduz o racismo estrutural, destaca Solange Miranda, da EMEI Nelson Mandela (Foto: reprodução)

Uma forma de evitar que um profissional subjugue o outro e, assim, construir relações mais equitativas, é investir na ideia da escola como uma comunidade educadora, em que todos estão lá pelas crianças. “Não se deve ter um auxiliar para o professor, mas um auxiliar para as crianças. E todos apoiam uns aos outros”, explica Solange.

Portanto, independentemente do cargo, quem está trabalhando numa instituição de ensino precisa passar por processos de educação e reeducação frequentes. “Todas as pessoas da escola educam, logo, todos os funcionários precisam passar pelas formações. Nossos encontros educativos na Nelson Mandela sempre foram para todos”, conta a professora.

A concepção de que estão todos juntos educando em comunidade permite, por exemplo, que as 210 crianças da EMEI possam brincar ao mesmo tempo no ‘quintal’ da escola, sem divisões por turmas, em momentos conhecidos como Bopi. “As crianças saem da sala de referência para momentos livres — e têm diferentes convites no quintal, com várias propostas”, explica Solange. Para a atividade dar certo, a preparação foi geral. “A nossa coordenadora Ana Carolina Cassola foi responsável por nutrir a ideia do Bopi, que era uma vontade antiga, e por formar toda a equipe a partir do conceito de desemparedamento das infâncias”, relata.

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Enquanto o Brasil passa por uma forte expansão da oferta de vagas na educação infantil, continua promovendo uma precarização das condições de atendimento às crianças e de trabalho dos educadores (Foto: Shutterstock)

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