Artigos escritos por pesquisadores do laboratório de ciências para educação do Instituto Ayrton Senna (eduLab21)
Publicado em 11/04/2025
Mais do que um conflito entre perpetradores e vítimas, a série ‘Adolescência’ evidencia como a violência escolar reverbera em toda a comunidade — e exige respostas articuladas entre escola, família e sociedade
Por Ana Crispim* e Gisele Alves** | A série Adolescência, da Netflix, reacende discussões fundamentais sobre violência, bullying e relações de gênero nas escolas. A trama gira em torno de Jamie, um adolescente de 13 anos acusado de matar uma colega de classe. A partir desse ato, acompanhamos os efeitos emocionais, sociais e legais sobre os envolvidos — amigos, familiares, educadores e investigadores — e somos convidados a refletir: o que poderia ter sido feito para evitar o crime? De quem é a culpa?
Essas perguntas, comuns em situações de violência, escancaram o desejo coletivo por uma convivência pacífica. Mas a realidade muitas vezes frustra esse ideal, inclusive na escola — espaço que deveria garantir proteção, socialização e desenvolvimento. A série mostra como os personagens são pegos de surpresa. A família expressa sentimentos de negação. Na escola, não há plano de gestão de crise, as conversas sobre o ocorrido são fragmentadas. A sensação de despreparo e desespero é generalizada.
Os investigadores enfrentam obstáculos próprios da era digital: a ambiguidade de emojis e dinâmicas perigosas em redes sociais. O cenário é desafiador. O tempo online aumentou significativamente nos últimos anos: entre 2008 e 2018, o tempo médio diário que adultos passaram no celular aumentou 12 vezes, chegando a 3,6 horas em 2018 [1]. O cenário entre jovens é semelhante: em pesquisa da Pew Research de 2022 [2], 46% dos adolescentes disseram estar “quase o tempo todo” on-line.
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Série ‘Adolescência’ e a violência: prevenção exige ações coletivas
Minissérie britânica ‘Adolescência’ em 15 pontos para refletir
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Paradoxalmente, o sentimento de solidão cresce. De acordo com dados do Pisa 2022 [3], 16% dos estudantes disseram se sentir sozinhos na escola. Isso é alarmante porque relações significativas e seguras são essenciais para o bem-estar e um desenvolvimento saudável [4]: são essas relações que nos fazem sentir valorizados pela nossa comunidade, além de elas ajudarem jovens a identificar pessoas confiáveis com quem possam conversar e pedir ajuda.
A vida digital, embora ofereça oportunidades de conexão a distância, pode inibir chances de aprender a conviver no mundo real, afastando vínculos mais profundos, afetuosos, presenciais e expondo adolescentes a conteúdos nocivos e com pouca (a nenhuma) supervisão — incitação à violência e discursos de ódio, conotações sexuais, comparações sociais e comunidades que exploram vulnerabilidades [5]. Isso é particularmente perigoso em momentos de sofrimento, como exclusão social, bullying ou crises emocionais pois, por exemplo, comunidades de ódio podem oferecer uma falsa sensação de acolhimento ou validação, bem como enviesar o pensamento crítico sobre fenômenos complexos.
A adolescência já é, por natureza, um período de intensas transformações físicas, emocionais e identitárias [6,7]. Quando combinadas ao uso exagerado e equivocado das redes, essas vulnerabilidades podem ser intensificadas, refletindo no aumento de sintomas relacionados à saúde mental e de inadequação social, como apontado por Jonathan Haidt [5].
Foto: Shutterstock
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Rumo à escola que queremos: caminhos para um ambiente escolar seguro e acolhedor
Quatro conteúdos sobre combate ao bullying
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Na série, essas tensões aparecem na forma como Jamie usa redes sociais para seguir modelos e consumir conteúdos misóginos e na aparente dificuldade de mobilizar competências e empregar estratégias eficazes que o protejam de potenciais danos. Também há a exposição de Kate, a vítima, por meio do compartilhamento não autorizado de uma imagem íntima — prática que configura crime e revela a presença de violência de gênero e cyberbullying na escola [8].
Jamie, que se vê inseguro, parece enxergar na vulnerabilidade de Kate uma chance de aproximação. Após ser rejeitado, a história sugere que ele é alvo de cyberbullying também. O cyberbullying tem o mesmo objetivo do bullying — machucar ou humilhar —, mas seus efeitos são potencializados pois seus conteúdos alcançam grandes audiências e permanecem disponíveis por muito tempo.
O acúmulo dessas experiências e de vulnerabilidades diversas no contexto desses personagens levou ao desfecho trágico. As medidas legais foram acionadas, mas uma pergunta permanece:
A resposta não é simples. A violência é um fenômeno complexo, com raízes individuais, sociais e estruturais. Ainda assim, há caminhos para a prevenção e o enfrentamento. A seguir, cinco pontos práticos que podem ser adotados por escolas, famílias e comunidade:
Relações de confiança entre estudantes, professores, famílias e colegas são fatores de proteção contra violências9. Investir no desenvolvimento socioemocional10 e fortalecimento dessas conexões favorece a construção de uma comunidade que preza pelo bem-estar, reduz o isolamento e estimula espaços seguros para os pedidos de ajuda em momentos difíceis.
É essencial ensinar crianças e adolescentes a navegar no ambiente online: reconhecer seus riscos, pensar criticamente, compreender os impactos das redes em suas emoções e agir com responsabilidade e ética nas interações digitais. Ações no mundo virtual também têm consequências no mundo real.
Toda escola deve ter planos estruturados e bem embasados para lidar com situações de bullying, cyberbullying e outras formas de violência. E deve fazê-lo de forma coordenada com equipes escolares e bem-informada por dados disponíveis em monitoramentos. Esses protocolos devem ser elaborados por equipes multidisciplinares e conhecidos por toda a equipe escolar, não apenas a pedagógica.
Conversar sobre vulnerabilidades deve ser possível e seguro, mesmo quando são sobre situações fora das escolas. Espaços de escuta, com mediação ética e suporte especializado, ajudam na identificação de riscos e na construção de estratégias de cuidado.
Combater a violência exige um esforço coletivo. Famílias, escolas e sociedade precisam assumir, em conjunto, a responsabilidade por construir ambientes seguros e acolhedores. O respeito à diversidade, a empatia e a boa convivência devem ser promovidos de forma contínua e articulada entre todos os envolvidos.
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Como as competências socioemocionais podem apoiar os professores no dia a dia da profissão?
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Jamie cometeu um crime, e a responsabilidade pelo ato é dele. No entanto, há diferenças legais na aplicação da lei a menores de 18 anos, como a adoção de medidas socioeducativas. Além disso, pais ou responsáveis legais também podem ser responsabilizados, dependendo das circunstâncias e da negligência identificada em relação ao ato infracional. A série nos mostra o quanto os sinais de sofrimento, o uso tóxico das redes, a ausência de diálogo e a desinformação sobre o papel da escola — legal e ético — ajudam a compor esse cenário trágico. A violência não é um ato isolado, mas o resultado de um emaranhado de fatores.
Enfrentá-la exige mais do que encontrar culpados. Exige compreender a complexidade do fenômeno e construir soluções conjuntas, regulares e consistentes – não apenas ações emergenciais quando casos extremos acontecem. Qualificar o debate, embasar ações nas melhores evidências disponíveis, ampliar a escuta e promover ações coordenadas são os primeiros passos para garantir um ambiente mais seguro para nossos estudantes e educadores — dentro e fora da escola.
*Ana Crispim é gerente de pesquisa do Laboratório de Ciências para Educação (eduLab21) do Instituto. Psicóloga, mestre em psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em psicologia, com ênfase em psicometria pelo programa de pós-graduação em psicologia da University of Kent, Reino Unido, com pós-doutorado em modelagem estatística para ciências do comportamento na Universidade de São Paulo. Também é professora referência no programa de pós-graduação da PUCPR Digital.
**Gisele Alves é gerente executiva do Laboratório de Ciências para a Educação (eduLab21) do Instituto Ayrton Senna. Chairholder da Cátedra Unesco de Educação e desenvolvimento humano na mesma instituição. Psicóloga, mestre em psicologia com ênfase em avaliação psicológica pelo Programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu em Psicologia da Universidade São Francisco. Consultora em avaliação psicológica, construção de instrumentos, adaptações transculturais e treinamento na área de avaliação psicológica.
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