NOTÍCIA

Políticas Públicas

Autor

Paulo de Camargo

Publicado em 01/04/2025

Carreira docente: valorização da boca para fora

Embora a importância do(a) professor(a) seja consenso, na prática, a carreira docente é pouco atrativa e continua a enfrentar problemas de salário e desvalorização social

Diretora da Escola Classe 39, da cidade de Taguatinga, no Distrito Federal, a educadora pública Geovana Ferreira de Oliveira tem quase 30 anos de carreira e já poderia estar aposentada. Formada no magistério e em história, passou boa parte da sua vida em sala de aula, como alfabetizadora, e não quer se distanciar das crianças, que considera sua maior motivação. Recentemente, Geovana foi eleita diretora escolar e, como fez ao longo da carreira, segue lutando pela valorização profissional — melhores salários, uma aposentaria digna, boas condições de trabalho. “O que mais me pega é a falta de valorização do professor pela sociedade”, conta.

A história de Geovana pode ser contada em qualquer parte do país, em qualquer etapa escolar. É a história de uma profissional que recebe menos do que as outras carreiras com nível superior, que tem uma aposentadoria com salários não muito melhores do que o recebido no início da carreira, já que as gratificações de caráter provisório acabam sendo uma estratégia dos governos para não elevar o custo da folha previdenciária. Mais: é uma trajetória recorrente em uma profissão de importância unânime, cantada em prosa e verso,mas que sofre, na vida cotidiana, com o desprestígio e rótulos de todos os tipos. “Agora, resolveram dizer que todo professor é esquerdista, e vivemos sob desconfiança das famílias”, lamenta Geovana.

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Dados publicados recentemente pelo Anuário Brasileiro da Educação Básica evidenciam as contradições de um país que valoriza os professores da boca para fora — uma vez que a exigência de valorização profissional docente está definida já no artigo 206 da Constituição Federal, que previa, em 1988, planos de carreira, ingresso por concurso e piso salarial.

Embora 100% dos estados e 96,3% dos municípios já tenham planos de carreira para seus professores — o que parece bom —, cresce desenfreadamente a contratação de professores temporários, que escapam a critérios mínimos para a efetivação.

Nos estados, a proporção de professores temporários em exercício nas escolas saltou de 31,1% para 51,6% em 10 anos. Ou seja, há mais docentes em regime temporário do que concursados. Já nos municípios, essa proporção subiu de 25,6% para 33,8%. Vem aumentando também o número de professores terceirizados (como nas creches conveniadas) e em regime CLT, ainda que sejam minoritários.

A Lei do Piso do Magistério, de 2008, vem provocando mudanças importantes. Além de estabelecer um piso mínimo nacional, definiu que 1/3 do tempo docente fosse dedicado a atividades fora da sala de aula, como formação. Contudo, essa legislação também tem dificuldades de ser cumprida. Segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), 700 prefeituras ainda não cumprem a norma.

Se há 10 anos os salários dos educadores representavam 71% do salário dos demais profissionais com curso superior, hoje essa diferença caiu para 14%. Mas, segundo especialistas, isso se deve mais à retração da massa salarial das demais profissões do que boas-novas no holerite docente. “A legislação não tem sido cumprida a contento, impedindo, portanto, a valorização real dos profissionais da educação”, demonstram os pesquisadores Andreza Barbosa, Márcia Aparecida Jacomini e César Augusto Minto, em artigo científico recentemente publicado sobre o cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação.

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Além do salário, há outras questões envolvidas, como as condições de trabalho e os critérios de progressão funcional. Como resultado, por muitos fatores, a carreira docente ainda está longe de tornar-se atraente para os mais jovens. E esse é o principal nó da questão: afinal, por que alguém desejaria ter como profissão a docência?

Essa é uma das razões para o recente lançamento do programa Pé-de-Meia Licenciaturas, que faz parte do Mais Professores para o Brasil, conjunto de ações de valorização do magistério lançado pelo governo federal e que faz parte de um pacote de ações. Hoje, segundo o Ministério da Educação, apenas 3% dos jovens de 15 anos querem ser professores.

O objetivo do Pé-de-Meia Licenciaturas é atrair estudantes com bom aproveitamento no Enem para as carreiras do magistério. O candidato que alcançar nota igual ou superior a 650 pontos no Enem e se matricular em um curso presencial de licenciatura terá direito a uma bolsa mensal de R$ 1.050 durante o curso. Haverá 68 mil vagas via Sistema de Seleção Unificado, bem como acesso por meio do Programa Universidade para Todos (ProUni) e do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).

 

carreira docente

Ao mesmo tempo que há pouco valor social para a profissão, o trabalho do docente é cada vez mais complexo (Foto: Shutterstock)

Fixação do professor

Para a pesquisadora Claudia Costin, que tem em sua longa carreira a passagem pela Secretaria Municipal da Educação do Rio de Janeiro e ainda ter sido diretora global de educação do Banco Mundial, as novas políticas do governo federal sinalizam um bom caminho, já trilhado por outros países. “Não vai resolver todo o problema, mas lida com uma parte da questão, que é atrair professores para atuar em áreas com escassez”, diz.

 

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Escola em tempo integral para melhorar a atratividade,
permitindo a fixação do docente em um mesmo ambiente escolar, orienta a pesquisadora Claudia Costin (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)

Na análise, Claudia, além de melhorar salários — o que é consenso —, diz que é preciso enfrentar a fragmentação dos contratos docentes. A educadora lembra que a carga horária diária das escolas brasileiras ainda é baixa, o que penaliza os docentes especialistas. Estes precisam dar aulas em mais escolas, às vezes se deslocando por longas distâncias.

Por isso, na sua visão, a escola em tempo integral também seria uma forma de melhorar a atratividade da carreira docente, permitindo a fixação do docente em um mesmo ambiente escolar. “Isso muda a vida do professor”, defende. A fixação traria também outras consequências positivas, mas que exigem um replanejamento dos espaços de trabalho comum, como a sala dos professores. “É preciso valorizar as práticas dos professores, para que compartilhem dúvidas, falem sobre o que está dando certo e aprendam uns com os outros, colaborativamente”, considera.

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Para a educadora Givânia Maria da Silva, primeira quilombola a integrar o Conselho Nacional de Educação, tudo se torna ainda mais difícil quando se levam em conta populações excluídas. Este é o caso dos moradores de áreas quilombolas, em que há altas taxas de analfabetismo. 

“Temos feito um trabalho para que os nossos jovens ingressem no ensino superior e entrem na carreira docente, para que contem a nossa história e valorizem nosso conhecimento marginalizado, mas também enfrentamos o descrédito da carreira”, desabafa Givânia.

Para fazer frente a esse desafio, conta Givânia, as comunidades quilombolas têm lutado por oportunidades — inicialmente, para garantir o acesso com políticas afirmativas, como as cotas. Ao mesmo tempo, procuram fortalecer os alunos para que permaneçam. “São questões complexas, pois nossas universidades foram constituídas por matriz eurocêntrica. Não se conhece a história dos quilombos. Somos povo que não conhece a própria história”, diz a conselheira.

Para ela, o número de professores quilombolas vem crescendo, mas com dificuldades. “Nadamos contra o pensamento que está na sociedade. É um desajuste na sociedade e isso se reflete na escola”, finaliza.

 

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A educadora e quilombola Givânia Maria da Silva reforça que tudo se torna ainda mais difícil quando se leva em conta a formação de populações excluídas (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)

Apagão docente

É comum pensar que este seja um problema apenas da educação pública — mas é um engano. Na rede privada, apenas as condições de trabalho costumam ser melhores — já que sequer há uma carreira. Por uma dedicação semanal de 29,5 horas, os docentes da rede pública recebem R$ 5,1 mil, em média, e têm direito à aposentadoria integral. Na rede privada, a média salarial oscila em torno de R$ 3,5 mil, segundo os dados do Anuário Brasileiro da Educação Básica. Não dá para ninguém ficar contente, em nenhum dos casos.

Os números confirmam essa percepção. Recentemente, a partir de dados do Inep, o Anuário do Ensino Superior, publicado pelo Semesp, projetou uma falta de até 235 mil professores, em 15 anos. Segundo o estudo, o percentual de alunos em licenciaturas com até 29 anos de idade caiu de 62,8%, em 2010, para 53%, em 2020. Da mesma forma, há menos ingressantes do que em outras carreiras.

Com isso, o profissional da educação envelhece. Desde 2009, o número de professores com até 24 anos de idade caiu de 116 mil para 67 mil. O número de educadores com mais de 50 anos mais do que dobrou.

Para a diretora escolar Luana Serra, o Brasil já vive um apagão de professores. Luana passou 22 anos na educação pública e há 12 anos tem sua própria escola privada, em Santos, no litoral de São Paulo. “Os jovens estão cada vez menos interessados em entrar e continuar, tanto na educação pública como na privada”, diz.

Para Luana, que também atua no ensino superior, o sucateamento dos cursos de formação inicial também tem sua parcela de culpa. “Os que escolhem a pedagogia já vêm com defasagens da escola básica, e as faculdades, cada vez mais sucateadas, não conseguem oferecer condições para formar um bom professor”, analisa. Faltam, a seu ver, bons estágios de prática profissional, como ocorre na medicina, por exemplo.

A diretora acredita que o diálogo entre a universidade e a educação básica precisa ser fortalecido. Em sua escola, que trabalha com pedagogias contemporâneas, Luana precisa investir muito em formação para que seus professores acompanhem a evolução da educação.

Profissão mais complexa

Ao mesmo tempo que há pouco valor social para a profissão, o trabalho do docente é cada vez mais complexo, seja na relação com a família, seja em relação às demandas multidisciplinares que chegam à escola, como a inclusão. “Quando o professor não desiste, pinga de instituição em instituição para complementar o salário ou acaba se afastando por questões de saúde”, acredita Luana.

Segundo o estudo Quando os professores desistem: um estudo sobre a exoneração na rede pública estadual de ensino de São Paulo, publicado em 2023 pelos autores Gabriela Pagani, Maria José da Silva Fernandes e Andreza Barbosa, foram registradas oito exonerações por dia, totalizando mais de 3 mil saídas entre os servidores efetivos, em 2018 (último ano do levantamento apresentado).

A professora Gil Menslin, de São Francisco do Sul, em Santa Catarina, sofreu resistência da família quando decidiu fazer magistério, mas seguiu em frente. Inclusive, seu irmão e marido atuaram na educação, mas acabaram optando pela transição de carreira.

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Hoje, mais de 20 anos depois, Gil se sente afetivamente recompensada no trabalho com bebês, mas lamenta a desvalorização social da carreira. Para ela, isso começa cedo. “Se um aluno é bom em matemática, ninguém diz para ele: ‘ah, vai ser um bom professor’. Logo falam: ‘faça engenharia’”, exemplifica. “Existe a máxima de que qualquer profissão passa pela mão dos professores, mas a sociedade escolheu fechar os olhos para isso”, acredita.

Por acreditar no valor de seu trabalho, a educadora seguiu em frente e vem buscando se aprimorar, e hoje tem milhares de seguidores na rede social que acompanham seu trabalho com crianças pequenas. São 62 mil seguidores no Instagram e 18.500 inscritos no YouTube. “A educação infantil é a etapa mais importante do desenvolvimento humano e a gente precisa, para uma sociedade saudável, de uma educação de qualidade”, defende Gil Menslin.

Para a educadora, tão graves quanto as questões salariais são as más condições de trabalho da rede pública. “Faltam espaços adequados, materiais, formação continuada, e muitas vezes o professor tem de tirar dinheiro do próprio bolso para poder ter um pouco de qualidade no trabalho realizado com as crianças”, conta.

E o futuro? Gil pensa muito, mas quer continuar na área. 

“Se analiso friamente, era para desistir da carreira docente. Mas a gente resiste, continua e não se vê fora da escola por entender qual é a importância do nosso trabalho para a sociedade”, finaliza.

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