NOTÍCIA
Produção trata de diferentes temas que afetam a juventude, como a influência da internet e o discurso de ódio; diretor e psiquiatra falam sobre medidas para enfrentar os problemas — que devem ser coletivas, com escola e família como peças-chave
A série Adolescência tem levantado muitos debates — e não por acaso. A produção da Netflix toca em temas tão delicados quanto urgentes, como violência entre jovens, bullying, discursos de ódio na internet e masculinidade tóxica. A história sobre um garoto de 13 anos que assassina uma colega de classe a facadas é de ficção, mas inspirada em casos semelhantes que, infelizmente, têm se tornado comuns. E preocupado famílias e escolas.
Stephen Graham, cocriador da série, lembrou numa entrevista ao programa ‘Today’ do famoso ditado “é preciso uma aldeia para criar uma criança”, refletindo que todos também podem ser ‘responsáveis’ de alguma forma — pais, sistema educacional, a política, a internet. Ou seja, quando atos extremos acontecem, como o cometido por Jamie Miller, protagonista da série, não se trata de apontar apenas um culpado. Na verdade, o avanço da violência e da radicalização entre jovens garotos é multifatorial. O problema é de toda a sociedade — e, como a psiquiatra ouvida pela Educação aponta, a prevenção da violência depende de um envolvimento coletivo.
Para o enfrentamento da violência e da cultura de ódio, Luciana Claro, psiquiatra pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP, destaca ações de caráter estrutural e outras específicas.
No âmbito social, ela cita medidas como uma educação que promova a empatia e a cidadania, a regulamentação das redes sociais para conter discursos de ódio, maior acesso a serviços de saúde mental, implementação de políticas públicas que reduzam desigualdades e responsabilidade da mídia ao retratar a violência.
Já as medidas específicas são voltadas a famílias e escolas. “No âmbito familiar, a construção de um ambiente de diálogo aberto e a presença ativa dos responsáveis na vida dos jovens são essenciais”, afirma a especialista. “Também é fundamental estar atento a mudanças de comportamento que possam indicar sofrimento emocional e buscar ajuda profissional sempre que necessário”, complementa.
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Em relação às escolas, a médica pontua a importância do incentivo à educação socioemocional, bem como a mediação de conflitos e capacitação de professores, para que eles possam identificar e lidar com situações de violência e exclusão. “Criar ambientes seguros e inclusivos é indispensável para garantir que todos os alunos se sintam acolhidos e pertencentes à comunidade escolar.”
Para a especialista, famílias e escolas têm papel fundamental nesse enfrentamento. “A prevenção da violência depende do envolvimento coletivo, sendo as famílias e as escolas peças-chave nesse processo, já que são os primeiros espaços de socialização e aprendizado das crianças e jovens.”
Segundo o diretor-geral da Escola Bilíngue Pueri Domus, Deivis Pothin, famílias e escolas são os espaços mais influentes na formação dos jovens — daí a centralidade de seu papel. De acordo com o diretor, se por um lado as famílias precisam estabelecer um diálogo aberto e acompanhar de perto o que jovens consomem na internet, por outro, as escolas devem ir além do conteúdo acadêmico, promovendo um ambiente seguro e acolhedor. Para isso, são necessárias ações efetivas de educação socioemocional, prevenção ao bullying e letramento digital.
Além disso, o diretor lembra da importância da parceria entre família e escola. “É essencial que ambas trabalhem juntas, criando uma rede de apoio que incentive o pensamento crítico, combata discursos extremistas e fortaleça a noção de responsabilidade coletiva na luta contra a violência”, afirma.
Cena da série ‘Adolescência’ (Foto: divulgação/Netflix)
Outro ponto importante que pode ser debatido a partir da série Adolescência é a influência do ambiente digital sobre os jovens. Isso porque, cada vez mais, os discursos de ódio — como os misóginos, que são abordados na produção britânica — têm se propagado nas redes. Com a atuação do algoritmo, é possível cair em bolhas cada vez mais radicais. Além disso, há também a ocorrência do cyberbullying, outro tema abordado na história.
Para Deivis, diretor-geral da Pueri Domus, educar crianças para a convivência digital “exige um trabalho contínuo de orientação crítica e construção de autonomia”. “Não basta apenas restringir o acesso; é necessário ensiná-las a interpretar conteúdos, identificar riscos e questionar o que veem”, orienta. Para isso, ele defende que o currículo aborde temas como privacidade, desinformação e impacto dos algoritmos. Já as famílias devem dialogar sobre uso de internet, estabelecer limites saudáveis e dar o exemplo de consumo digital consciente.
Contudo, ainda que seja possível usar ferramentas de mediação parental em relação ao uso da internet, o algoritmo segue sendo um ponto de atenção. Por isso, Deivis enfatiza que é preciso educar os jovens para um uso consciente e crítico. “Como o algoritmo continuará operando, o caminho não é apenas a mediação técnica, mas o desenvolvimento da consciência digital, para que as crianças aprendam a navegar na internet com responsabilidade e discernimento.”
Por outro lado, a psiquiatra Luciana Claro explica que o cérebro do adolescente ainda está em formação. “O córtex pré-frontal, região responsável pelo controle dos impulsos e pela tomada de decisões, só atinge a maturidade completa por volta dos 25 anos. Isso significa que crianças e adolescentes têm maior dificuldade em regular o tempo de uso das redes sociais e em avaliar criticamente o impacto emocional do que consomem online”, afirma. “O acesso irrestrito ao celular pode resultar em um ciclo vicioso de comparação social, baixa autoestima e dependência de estímulos rápidos, comprometendo a concentração e a capacidade de lidar com frustrações.”
Por isso, a médica analisa que, mesmo que haja uma educação para uso consciente da internet, como o adolescente ainda não atingiu esse desenvolvimento completo dos mecanismos cerebrais, ainda há dificuldades que se impõem. E, portanto, outras medidas podem ser necessárias.
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“Embora a educação digital seja essencial para ensinar jovens a questionar fontes de informação, reconhecer desinformação e identificar discursos de ódio ou manipulação, é preciso reconhecer que, mesmo com essas iniciativas, seus mecanismos cerebrais ainda não estão completamente desenvolvidos para discernir adequadamente o impacto do que veem e interagem nas redes sociais. A imaturidade neurológica torna-os mais vulneráveis à influência de algoritmos projetados para maximizar o engajamento, muitas vezes à custa do bem-estar mental”, analisa.
Para a psiquiatra, nesse sentido, a proibição do uso do celular nas escolas foi um acerto. E ela defende uma ação mais ampla: a restrição de acesso às redes sociais para menores de 16 anos. “Países como a Austrália já adotaram essa medida, e alguns estados dos Estados Unidos seguem pelo mesmo caminho. Proteger os jovens do impacto negativo das redes sociais não é apenas uma questão de controle, mas de garantir que tenham um desenvolvimento saudável, equilibrado e mais preparado para lidar com os desafios do mundo digital.”
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