Alexandre Le Voci Sayad é jornalista, educador e escritor. Mestre em inteligência artificial e ética pela PUC-SP e apresentador do Idade Mídia (Canal Futura)
Publicado em 06/03/2024
Países com bons resultados no combate à desinformação apresentam ações que se iniciam na escola, mas seguem por outros campos: governos, empresas, comunidade e processos de aprendizagem permanente compõem um combate sistêmico a esse mal
E se a Coca-Cola resolvesse entrar no combate à desinformação e imprimisse, em suas latas, dicas de checagem de informação pela internet, de leitura de texto e de pesquisa digital? Segundo dados de 2014 da própria empresa, são vendidas quase 20 mil latinhas por segundo no mundo — quase 1,7 bilhão por dia. Ao invés de ler um nome impresso, ação de marketing de sucesso na última década, seria possível, por exemplo, encontrar a dica ‘Informação duvidosa? Não compartilhe!’.
A desinformação, segundo a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), é um fenômeno em que informações não-confiáveis, disparadas de maneira proposital ou não, contaminam um ecossistema a ponto de afetar a cidadania e o discernimento na tomada de decisões, ou até prejudicar instituições ou indivíduos.
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Baseado no caso fictício do primeiro parágrafo, frequentemente proponho um exercício a estudantes de ensino médio e universitário: desenvolver estratégias criativas para empresas criarem um ambiente informacional mais saudável. O ponto principal, no caso, é perceber que o combate às notícias falsas, imprecisas, boatos, que nos atrapalham a tomar decisões acertadas, só funciona se as ações vierem de todos os atores sociais. Países considerados mais bem-sucedidos no combate à desinformação, como Estônia e Finlândia, segundo relatório de 2023 da Open Society Foundations, em Sófia, Bulgária, apresentam ações que se iniciam na escola, mas seguem por outros campos. Governos, empresas, comunidade e processos de aprendizagem permanente compõem um combate sistêmico a esse mal.
A ação sistêmica tem motivos para existir: segundo o Relatório de Riscos Globais de 2024 (que escutou 11,4 mil lideranças de 113 países), elaborado para o Fórum Econômico Mundial, a preocupação com o acesso e qualidade de informação consumida e produzida foi eleita como risco global número um para os próximos dois anos, e o quinto mais relevante (resultado muito otimista) para os próximos 10 anos.
Isso mostra que esse inimigo silencioso agora bateu de vez no calcanhar dos negócios. Afinal, o poder de um ambiente que respeite a integridade e a credibilidade de suas fontes, está intrinsecamente ligado ao sucesso de uma empresa. Desde aquela que sustenta a tomada de decisão dos diversos investidores, até a que garante a qualidade do produto ou então a que irradia para a sociedade a história de marca.
A urgência, tanto por parte do Fórum Econômico Mundial quanto da Unesco, na atenção à desinformação neste momento tem endereço certo: este ano cerca de 70 países (que representam quase metade da população global) irão às urnas para eleger posições no executivo e/ou legislativo. O fluxo acelerado de informações falsas, nesse caso, pode ampliar a polarização política e agravar questões que envolvem a manutenção da saúde pública e justiça social, além de estimular os governos mundiais a combatê-los com censura e controle de conteúdos.
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O que o Relatório de Riscos Globais 2024 alerta em especial para o uso da tecnologia para a criação de ‘deep fakes’ (alterações em vídeos e imagens com inteligência artificial que são quase imperceptíveis ao olhar ‘leigo’) que prejudiquem sistemas democráticos ou acentuem discursos de ódio.
A receita para a tempestade perfeita para a explosão da desinformação é a união de uma agenda política, o rápido e não-regulado desenvolvimento tecnológico (como a inteligência artificial) e um fluxo de informações exacerbado. Historicamente, a crise da integridade e credibilidade da informação não pode ser separada de outros enfraquecimentos como o da razão iluminista enquanto eixo central de governos do Ocidente, o dos modelos científicos criados no século 19, e da emboscada em que a democracia se colocou. Soma-se a isso o fato da internet ter provocado a explosão da possibilidade de se produzir comunicação em larga escala, direcionada a públicos fragmentados.
Abre-se, portanto, uma oportunidade para a iniciativa privada endereçar ações no campo da educação midiática e outras ações para colaboradores e clientes, no âmbito do que são conhecidas como práticas de ESG (alinhamento da empresa a valores ligados à sua governança, ao meio ambiente e à sociedade). O Fórum Econômico Mundial é um farol importante para que as empresas possam criar pontes entre tendências de médio e longo prazos e estratégias e práticas em ESG. No caso da desinformação, poucas foram criadas.
Escolas públicas e particulares brasileiras ainda patinam na inclusão da educação midiática como elemento curricular, mas as que realizam, podem inspirar empresas na ação. Ao invés de ESG, na escola, os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, desenvolvidos pela ONU (Organização das Nações Unidas), que abordam os principais desafios de desenvolvimento enfrentados por pessoas no Brasil e no mundo, têm fácil conexão com o tema da desinformação. Podem ser considerados estratégias para o desenvolvimento de práticas de ações de educação midiática por parte de professores, que estimulam os estudantes criarem soluções, e assim, compreender como a desinformação está diretamente conectada a todas as áreas de nossas vidas, gerando impactos negativos imediatos na sociedade.
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