NOTÍCIA

Edição 291

Alunos autistas: iguais, mas com diferenças

As escolas devem formar grupos de trocas de experiência e estudos que funcionem como rede de apoio

Publicado em 24/01/2023

por Maria Cláudia Baima

alunos-autistas-enzo Enzo, 15 anos, tem TEA. Toca cavaquinho, percussão em uma banda e terminou o ensino fundamental 2 (foto: arquivo pessoal)

Normal é estar dentro da norma. Que norma? Definida por quem? Depende, não é? Por isso a normalidade é só uma ideia. Contudo, a ciência precisa padronizar sintomas e manifestações do ser humano e da natureza a fim de criar procedimentos que melhorem a qualidade de vida e a interação. É o que pretende o ICD (International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems). No Brasil, o ICD é chamado de CID-11 (Classificação Internacional de Doenças). São 17 mil códigos únicos para lesões, doenças e causas de morte, além de 120 mil termos que, combinados, codificam mais de 1,6 milhão de situações clínicas.


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TEA, diagnóstico e escola

O autismo sempre existiu? Sim, dizem os especialistas, lembrando que a pré-ciência se mesclava com mitos e lendas, como as lendas nórdicas de bebês humanos raptados por fadas que deixavam em seus lugares cópias idênticas, mas que tinham comportamentos estranhos. Hoje, o consenso absoluto é de que o autismo não é doença. Portanto, não existe medicamento para o autismo. Trata-se de um transtorno de ordem comportamental que se manifesta das mais diferentes formas e níveis. Por isso é nomeado de Transtorno do Espectro Autista (TEA), com níveis 1, 2 e 3 ou suportes leve, médio e severo, respectivamente. Um estudo publicado no Nature Genetics com 150 mil pessoas aponta 72 genes com fortíssimas ligações ao TEA.

Às vezes, o olhar perdido do bebê ou sua forte sensibilidade aos ruídos podem não ser vistos como atípicos àquela fase de desenvolvimento. Considerando que os maiores desafios se dão no campo das habilidades sociais – como manter um diálogo, amizades, criar vínculos, dizer o que precisa, o que quer e o que não quer – é na escola que essas dificuldades serão mais perceptíveis.

“O diagnóstico de TEA é clínico. É preciso observar cada etapa de neurodesenvolvimento. A média mínima para diagnosticar é em torno de 18 meses, mas cada caso é um caso”, diz a psiquiatra da infância e adolescência Vivian Hirsch. Quanto mais cedo se tem um diagnóstico, mais rápido começam as intervenções.

psiquiatra

Auxiliares contratados sem orientação nas escolas, critica a psiquiatra Vivian Hirsch
Foto: arquivo pessoal

Em relação à escola, a psiquiatra alerta que a inclusão de alunos autistas está sendo feita de forma irresponsável:

“auxiliares são contratados sem orientação. Em geral, apenas dizem que a criança não deve se machucar senão serão penalizados. As escolas devem formar grupos de trocas de experiência e estudos que funcionem como rede de apoio, incluindo também as crianças nesse diálogo para que as trocas sejam transparentes e lúdicas, envolvendo carinho e respeito”, expõe a psiquiatra Vivian Hirsch.

A psicopedagoga Mara Rúbia Martins lembra que o diagnóstico de TEA também se apoia nos critérios do DSM-5 (em português Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) da Academia Americana de Psiquiatria (5.ª edição/2013), muito usado por psicólogos, fonoaudiólogos, médicos e terapeutas ocupacionais.

Mara é conselheira fiscal da ONG MOAB (Movimento Orgulho Autista Brasil), se empenha na pesquisa de softwares para autistas e tem doutorado em ciências da informação na Universidade Fernando Pessoa, em Portugal. “Capacitação de professores, direito dos alunos TEA à adequação curricular e ao Atendimento Educacional Especializado (AEE) e formação de equipes multiprofissionais para abordagem sistêmica são pontos cruciais nessa questão”, diz Mara.

Olhar para além das normas consideradas normais

Enzo tinha oito meses quando sua mãe, a professora Marilda Lima dos Santos Rodrigues, começou a suspeitar de seus longos períodos dormindo e a supersensibilidade aos ruídos. Já trabalhando com educação especial, Marilda juntou o que tinha e não tinha e fez um mestrado na Flórida, Estados Unidos, com foco em ABA (Applied Behavior Analysis/Análise do Comportamento Aplicada). O diagnóstico com TEA suporte 3 (severo) veio aos três anos.

Hoje, Enzo tem 15 anos, toca cavaquinho e percussão em uma banda, terminou o ensino fundamental 2 e varia no suporte de 2 a 1. “TEA é transtorno de comportamento e trabalhar rotina estruturada dá bons resultados. Legalmente, foi enquadrado como deficiência apenas para garantir acesso às políticas públicas”, diz Marilda, que tem milhares de seguidores nas redes sociais e recebeu prêmios, com destaque para a sala sensorial que montou na Escola Classe 501, em Samambaia, no Distrito Federal. “Existem ótimos materiais para estudo e prática, como a Escala Portage, um método de diagnóstico que ensino muito nas lives, por ser simples, eficaz e gratuito.”

Somos todos neurodiversos

Muitas escolas ainda rejeitam matrícula de crianças com TEA, mas poucas famílias buscam seus direitos, até por desconhecê-los. Essa discriminação é chamada de capacitismo, e embora esse termo não conste na legislação brasileira, a Lei do Estatuto da Pessoa com Deficiência prevê, em seu artigo 4º, que “toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação”.


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Segundo o advogado Marcelo Válio, “se comprovado o ato preconceituoso ou discriminatório, a família pode elaborar boletim de ocorrência na delegacia mais próxima de sua residência ou na delegacia especial de crimes contra as pessoas com deficiência, relatando crime de capacitismo previsto no art. 88 da Lei Brasileira de Inclusão”.

A professora Maria Lima é mãe de Enzo
Foto: arquivo pessoal

“Colaborar para que toda pessoa com deficiência tenha uma educação de qualidade na escola comum” é a missão do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), fundado em 1994, em São Paulo. Segundo Karolyne Ferreira, analista de advocacy do IRM, “o Brasil é um dos países que tem uma das melhores políticas de educação inclusiva, com boas taxas de matrículas em escolas inclusivas (comuns)”.

Há desafios importantes, como o projeto de lei da educação domiciliar, que afetaria enormemente o público com deficiência. Karolyne cita o chamado “decreto da exclusão” (Decreto 10.502), suspenso por liminar do Supremo Tribunal Federal, que propõe a volta das escolas especiais.

 

“Seria um retrocesso na educação brasileira, pois fere a Constituição e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, documento da ONU ratificado pelo Brasil como Emenda Constitucional”, diz ela.

É até redundante dizer que a luta continua, mas é a verdade. Toda conquista é fruto do ativismo da sociedade civil organizada e a mais recente delas é a CIPTEA, Carteira de Identificação de Pessoa com TEA, aprovada no Senado (PL 2.573/2019) e que vai ajudar na própria independência e autonomia de todos com TEA. Somos iguais, mas temos diferenças.



Conceitos diferentes para muitas diferenças

As nomenclaturas para transtornos comportamentais mudam com o tempo, na intenção de entender que diferenças entre características individuais não são, necessariamente, doenças ou déficits. Confira:

Neurotípico indivíduo ‘dentro dos padrões’ de neurodesenvolvimento, sem alterações significativas na memória, atenção, cognição, etc.;

Neuroatípico – todos os diagnosticados com TEA (Transtorno do Espectro Autista);

Neurodivergente – indivíduo com desenvolvimento cognitivo, comportamental, neurológico e neuroanatômico alterado, apresentando, por exemplo, TEA, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), síndrome de Tourette, depressão, dislexia, esquizofrenia, etc.;

Neurodiverso – somos todos nós, “habitantes neurodiversos do planeta”, como explica a socióloga australiana Judy Singer, que usou esse termo pela primeira vez em 1990. Trata-se do conceito mais amplamente inclusivo, inspirado na natureza e sua biodiversidade. Ela diz que “não existem duas mentes absolutamente iguais”.



Escute nosso episódio de podcast:

Autor

Maria Cláudia Baima


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