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Edição 287

Em parceria inédita, currículo escolar de ensino técnico ganha participação da indústria

No sertão de Pernambuco, iniciativa intersetorial – governo, escola, terceiro setor e empresas – constrói curso em energia limpa adaptável para outros estados

Publicado em 09/09/2022

por Laura Rachid

destaque Ensino técnico Estudantes de energia renovável, Maria Eduarda e Gustavo Antonio optaram pela EPT por conta do diálogo com o mercado Foto: Kleverson Gomes /IET

Em dias de chuva, nem mesmo a lama das estradas de Araripina, localizada no sertão de Pernambuco, na divisa com o Piauí e a 150 km de Juazeiro do Norte, Ceará, desanima o vigilante Aurélio Lima. Aos 42 anos, das 6h às 18h trabalha e à noite, das 18h40 às 21h20, faz curso técnico em sistemas de energia renovável na turma do subsequente – nas palavras dele, está buscando algo a mais para sua vida e da esposa. E está investindo: nos dias do plantão paga para seu colega vigilante chegar mais cedo e assim não perder as aulas. “Estou fazendo um sacrifício”, confessa o novo estudante que ingressou no início do ano para o curso que tem duração de um ano e meio. No 1º semestre, ele e seu grupo construíram um forno solar.


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O curso de sistemas de energia renovável é novo, começou a ser criado do zero em 2020, dialoga com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), com o novo ensino médio e é referência nacional por conta de um pioneirismo no Brasil: foi construído em parceria com o governo de Pernambuco, comunidade escolar da ETE (Escola Técnica Estadual) Pedro Muniz Falcão, em Araripina, terceiro setor representado pelo Itaú Educação e Trabalho e o mais incomum, o setor produtivo da região, primeiro com a Auren Energia e ano passado a Schneider Electric entrou para o time.

O vigilante Aurélio Lima está no curso técnico para melhorar de vida
Foto: Laura Rachid

”Como formar um jovem solidário, competente, produtivo e que tenha uma formação aderente às necessidades do mercado de trabalho? Trazendo o mercado de trabalho para junto da gente para dizer qual o perfil profissional, quais as competências e habilidades que eles esperam dos jovens que estão sendo formados nas nossas escolas. O que ganhamos com isso? Aumento da taxa de empregabilidade dos estudantes”, destaca a secretária executiva de Educação Integral e Profissional na Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco, Maria Medeiros. 

Desde maio de 2022, o currículo do curso pode ser replicado gratuitamente por qualquer rede pública ou escola particular (mais informações no site observatorioept.org.br). Cada região deve customizar e respeitar as suas demandas locais, por exemplo, para além da energia eólica e solar que são fortes em Araripina, é possível priorizar a energia de biomassa e as demais que condizem com determinada realidade. Piauí, Sergipe e Rio Grande do Sul são alguns dos estados interessados.

“Não achamos que as empresas fossem estar tão abertas. A Votorantim, que agora é Auren Energia, falou: acho que garantimos um profissional de cada área para participar desse processo de construção do currículo. Para a nossa surpresa vieram 32 profissionais e o tempo inteiro eles participaram, foi um processo muito democrático da empresa junto com a escola”, conta Carla Chiamareli, gerente de gestão do conhecimento do Itaú Educação e Trabalho. 

Para além do currículo, um dos grandes desafios na qualificação dos alunos é a infraestrutura, como a montagem de laboratórios. Auren e Schneider doaram alguns equipamentos de ponta, mas ainda são insuficientes. 

A construção e implementação de um currículo pioneiro como esse de Araripina requer mão na massa de todos os agentes escolares, principalmente da direção. “Não basta se envolver, tem que se envolver ao ponto de também conseguir engajar e mobilizar a comunidade escolar: professores, alunos, famílias, parceiros, comunidade no entorno, trazer a cadeia produtiva para dentro do circuito. Tem que ser algo em rede porque senão você não vai conseguir ter braço para dar conta dessa demanda”, explica Ricardo Marques Jacó, gestor da ETE Pedro Muniz Falcão. 

Na Pedro Muniz Falcão, não só o técnico em energia renovável, mas todos, como o de administração, visam desenvolver o estudante para além das competências técnicas. Até porque diversos estudos constatam que conhecimento técnico não é a única garantia de permanência no emprego, é preciso ter inteligência emocional, saber atuar em equipe e, claro, ser criativo.

“A escola só vai sobreviver fazendo o que o digital não é capaz de executar”, alerta Ricardo, que afirma passar mais tempo nos espaços da escola do que sentado em sua sala. Sobre a universidade, define: “diploma não quer dizer qualificação. O ensino superior no Brasil está engessado e não está formando o que o mercado necessita”.

O gestor da Pedro Muniz Falcão, Ricardo Marques (de óculos), destaca o trabalho em rede para um curso pioneiro gerar frutos. Ao seu lado, Miqueias Dantas, analista de sustentabilidade na Auren Energia
Foto: Laura Rachid


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Há critérios nas ETEs

A secretária executiva Maria Medeiros explica que na fase de construção de uma escola técnica, diversos estudos são realizados, por exemplo, para identificar os arranjos produtivos locais, empreendimentos previstos para chegar à região e as ofertas de cursos técnicos já oferecidos no município. Tudo para evitar mais do mesmo e não saturar a área. 

A largada do curso em sistemas de energia renovável foi dada no início de 2021, com 90 vagas para a turma do ensino médio integral e 90 vagas para o subsequente, à noite. Todas foram preenchidas.

“Compreendemos que crescimento econômico precisa estar atrelado a desenvolvimento social. Se economicamente sabemos que há oportunidades em determinada região, precisamos que as pessoas daquele lugar sejam beneficiadas e impactadas positivamente por essa efervescência econômica. E como a gente faz isso? Por meio da oferta de educação pública de qualidade”, pontua Maria Medeiros, que já foi professora e gestora escolar da rede pública.

Vale destacar que não se trata de todas as escolas técnicas terem esse curso de energia renovável, uma vez que a oferta deve respeitar os arranjos produtivos locais. Em Pernambuco, conta Maria Madeiros, uma região tem seu lado econômico forte na caprinocultura, outra com polo têxtil, e no caso do Vale do Araripe, onde Araripina está localizada, a energia renovável é a grande promissora, principalmente pelos parques eólicos.

Operado pela Auren Energia, parque eólico Ventos do Araripe III é um dos maiores da América Latina. Está na Chapada do Araripe, entre Araripina, PE, e Simões, PI
Foto: Laura Rachid

Sonhos e determinação 

Maria Eduarda Souza Lopes e Gustavo Antonio de Sousa têm 16 anos, são da primeira turma do curso técnico de sistemas de energia renovável da Pedro Muniz Falcão e estudam no 2° ano do ensino médio integral. Eles estão entre os nem 10% dos brasileiros que cursam ensino técnico – a média de diploma técnico em países como Áustria e Suíça ultrapassa 60%. A injusta desigualdade de gênero no segmento não desanima Maria Eduarda, que espera concluir o médio e já saltar para um emprego.

“Não quero ficar parada. Tem Enem, vestibular, mas não é uma coisa certa. Terminamos o ensino médio desempregados, seja passando na faculdade ou não. Já com o curso técnico, se você se destacar, se as pessoas apostarem em você, te contratam ali, então o técnico é uma coisa certa, afinal, adquirimos conhecimento lá dentro, praticando”, acredita. 

Assim como Duda, o ensino superior não está nos planos de Gustavo por conta da incerteza quanto ao trabalho. “Observando o crescimento daqui da minha região do Araripe, o ensino técnico é o caminho mais seguro a seguir”, acredita o jovem, que traçou metas mesmo antes de entrar no ensino médio. “Vi que a ETE poderia dar o embalo que precisava seguir. Daqui a 10 anos me vejo estabilizado na área e não quero chegar a um cargo e pronto, está suficiente. Não, quanto mais alto puder ir, mais alto eu vou.”

Entretanto, levantamento divulgado este ano pelos pesquisadores do Insper Sergio Firpo e Alysson Portella, a pedido do Itaú, e que foi matéria de capa da Educação de março, revela que o número de estudantes formados pela educação profissional e técnica e que ingressam no ensino superior é maior do que os formados no ensino médio regular. 

Parcerias docentes e discentes

A turma piloto do subsequente no curso de sistemas de energia renovável concluiu os estudos no final do 1º semestre deste ano. Adeilton Primo tem 37 anos, e é um dos primeiros formandos. Ao contrário de seus colegas, que estavam no primeiro curso e trabalhando em outras áreas para se manterem, Adeilton tem graduação e certificado em mais três técnicos. No início da pandemia, abriu uma empresa de formação profissional em segurança do trabalho que tende a dialogar com a sua nova certificação. “Hoje, no Brasil, as energias renováveis não têm nem 10% da capacidade instalada. O crescimento tende a ser incrível e eu não podia ficar de fora.”

Engenheiro, eletricista e professor na ETE Pedro Muniz Falcão, Lucival Carvalho está aberto às oportunidades de emprego, inclusive com seus alunos. Das quatro empresas que têm parceria, todas são de ex-alunos. “O Adeilton falou: professor, vou precisar de engenheiro eletricista e aceitei. Com ele, ficarei responsável pela parte elétrica de suas formações em segurança do trabalho.”

O professor Lucival Carvalho presta serviço para a empresa de seu ex-aluno Adeilton Primo
Foto: Laura Rachid

Segundo Gilda Modesto Coelho, assistente de gestão da ETE, a renda da maioria das famílias da escola é baixa, sendo que algumas sobrevivem com menos de um salário mínimo. Todos os cursos da escola possuem reserva de vagas para esses alunos, o que inclui porcentagem de pontuação menor para ingresso.



EPT universalizado em PE

Pernambuco tem colhido frutos com sua educação pública. Entre os motivos, os indicadores do ensino médio saltarem em pouco mais de uma década, muito por conta do Programa de Educação Integral lançado em 2008 e que abrange não apenas as competências técnicas, mas também as habilidades socioemocionais dos estudantes e o protagonismo juvenil. Agora, a secretária executiva de Educação Integral e Profissional do estado, Maria Medeiros, anuncia uma proposta ousada, mas que mostra o seu comprometimento e da equipe.

“está no nosso horizonte a partir de 2023 universalizar a oferta de cursos técnicos em Pernambuco. Universalizamos o ensino médio em tempo integral, o próximo passo é que todos os municípios do estado de Pernambuco possam ter escolas estaduais que ofertem o 5º itinerário que é o de EPT (educação profissional e tecnológica); já estamos com alguns desenhos interessantes, inclusive em parceria com o sistema S”.



É preciso cuidado

As chamadas energias renováveis ou limpas não são 100% inofensivas ao meio ambiente. As torres eólicas, por exemplo, impactam a fauna local, principalmente as aves, como destaca pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco. Outro problema tende a ocorrer com a comunidade local, sem citar os graves problemas da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. No final de julho de 2022, na região centro-norte da Bahia, 61 comunidades tradicionais de 37 municípios baianos participaram de uma audiência pública em que foi entregue aos órgãos licenciadores e fiscalizadores um dossiê (leia aqui) que, segundo nota do site Meus Sertões e republicada pelo Irpa (Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada).

“Contextualiza a expansão desenfreada do setor de energias renováveis na Bahia e no Brasil. O documento relata casos de desrespeito às comunidades e aos direitos humanos; as estratégias para ludibriar quilombolas, ribeirinhos, indígenas, populações de fundo e fecho de pasto e ocupar as terras que pertencem a eles; os aspectos econômicos; os danos ambientais; e projeta os prováveis cenários a partir da decisão de tornar o país exportador de “hidrogênio verde e combustíveis sintéticos”.



*A repórter viajou a Araripina, PE, a convite do Itaú Educação e Trabalho.

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Autor

Laura Rachid


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