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Raquel Alves

Filha do educador Rubem Alves, foi presidente do Instituto Rubem Alves. É escritora, palestrante e fundadora da Arquitetura do Sensível

Publicado em 31/05/2022

E o alfabetismo emocional?

A educação, para ser efetiva, deve ser pensada a partir da criança e do adolescente e não do sistema

alfabetismo-emocional Foto de Yan Krukov/Pexels

Lembro-me como se fosse hoje, devia ter 17 anos, cheia de sonhos pela frente e, junto com eles, dúvidas e incertezas. Eu iria fazer minha inscrição para o vestibular naquela semana e, caso a internet já fosse do nosso uso rotineiro, provavelmente não teria vivido o que quero compartilhar aqui com vocês.

Meus pais estavam viajando há semanas e ainda ficariam longe um pouco mais , “lá do outro lado do oceano”. E quando a saudade bate, uma coisa milagrosa acontece: passamos a dar muito mais valor ao que as pessoas nos dizem, as coisas negativas da convivência desaparecem e tudo o que queremos é ter as pessoas que amamos ao nosso lado.


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Eu tomava meu café com o jornal na mão. Não porque eu costumasse ler, mas era domingo, dia em que as crônicas do meu pai eram publicadas no “caderno C” do Correio Popular, o que era uma forma de matar as saudades.

Lá estava ela, com o título Para a Raquel. Ele havia feito as contas e combinado com o pessoal do jornal a data correta para cada crônica ser publicada, de forma que suas palavras chegaram até mim na hora certa, e até hoje, 30 anos depois, ainda as carrego comigo.

“Filha, você fará sua inscrição para o vestibular essa semana” ele começou… “Essa é uma ocasião em que ninguém pode escolher por você… Você terá que fazer isso sozinha”… E foi aí que ele falou sobre a brevidade da vida e sobre como nossos momentos precisam ser saboreados.

Mas, como saber o que nos dará prazer de fazer uma vida inteira aos 17 anos? Ele mesmo admitia já ter mudado de área várias vezes: tinha sido pastor, depois tornara-se professor universitário, psicanalista, escritor, palestrante, educador…

“EU SOU muitos!” Essa afirmação errada gramaticalmente é correta para a alma. Não temos apenas um lado só, e isso ele escreveu em várias de suas obras. Esse era o ponto: como saber qual lado meu eu deveria escolher para aquele momento?

“Faça o ‘x’ nas alternativas que achar que combinam mais com você agora, mas se você mais para frente mudar de idéia (sic), tudo bem. Eu mudei de idéia várias vezes ao longo da minha vida e cheguei onde cheguei.” Ele não me deu resposta nenhuma, mas me apontou uma questão crucial que precisava saber: se mudasse de ideia, seria perdoada.

 

Aquele domingo de manhã me ensinou duas coisas fundamentais: uma é que nosso lado de dentro precisa ser conhecido com relativa profundidade, senão não saberemos nunca o que escolher. A outra é que não somos os mesmos o tempo todo. Amadurecemos (bem… a proposta é essa, não é? Que a gente amadureça?) e passemos a pensar e sentir de forma diferente COM O PASSAR DO TEMPO?

Essa sensação de “decisão definitiva” que algumas situações da vida, assim como os vestibulares nos trazem, são angustiantes e exigem muita destreza emocional e psíquica para serem enfrentadas.

Compartilhei minha memória para chegar em dois aspectos que considero fundamentais a respeito da educação: as coisas têm hora certa para serem ensinadas e nossa identidade emocional e/ou psicológica não deve ser tratada como uma entidade paralela aos assuntos escolares.

Se vocês se assustaram com a minha informação de que as coisas têm hora certa para serem ensinadas, os compreenderei… Afinal, Rubem Alves, meu pai e um dos maiores educadores do Brasil, já se dedicou a afirmar o contrário. A questão é que ele mostrava que enquanto acharmos que tem hora certa para ensinar matemática ou química, o ensino não será efetivo. Estou falando da mesma coisa, mas sob outro ponto de vista: ele falava enquanto educador e eu falo enquanto o ser que estava sendo educado.

A hora certa para as coisas serem ensinadas é aquela em que estamos abertos e sedentos para aprender. Essa é a hora, e não as horas contadas no relógio e anunciadas pelos sinais que tocam nas escolas. Foi exatamente por isso que aquela carta que ele me enviou em forma de crônica entrou em mim para nunca mais sair: as palavras foram escritas/ditas na hora que meu corpo carregava as perguntas que elas respondiam.

A educação, para ser efetiva, deve ser pensada a partir da criança e do adolescente e não do sistema.

Olhando por essa ótica do ser e não do sistema, trago a outra questão fundamental que creio – toda escola enquanto agregadora de conhecimento e de convivência deveria priorizar o conhecimento das nossas competências socioemocionais e o conhecimento das nossas emoções. Essas são as coisas mais importantes que devemos saber na vida. Pois é exatamente a partir delas que crianças se tornam adultos com a destreza de tomar grandes decisões, de lidar com situações adversas e, principalmente, ter bons valores.

O nosso autoconhecimento e a nossa capacidade de reconhecer e de administrar nossas emoções e sentimentos são a base estrutural de todo o restante que a escola oferece. Precisamos disso para saber em qual alternativa por o tal “x” quando vamos escolher o curso que queremos concorrer no vestibular e em todas as outras grandes decisões que devemos tomar na vida.

E aí fica a pergunta: o que a educação deseja nos ajudar com a nossa autocompreensão e com o enfrentamento das situações desafiadoras que a vida sempre nos impões ou com a aprovação no vestibular?

De que adianta uma pessoa ser brilhante na vida profissional e um fracasso na vida pessoal, justamente por falta de autoconhecimento, autoestima e autoconfiança?

Fala-se muito em alfabetização funcional, o que é ótimo. Ainda bem que algum olhar já está sendo lançado para essa questão crucial, tão ligada à nossa capacidade de pensar. Contudo, gostaria de alertá-los sobre a importância da alfabetização emocional, tão ligada à nossa capacidade de nos entender melhor e conviver melhor.

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