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Qual foi a última vez que a afetividade foi a protagonista e o conteúdo o coadjuvante (o que não quer dizer desimportante) em um processo de aprendizagem? Temos inúmeros exemplos de tentativas sinceras de alçar o afeto ao topo da montanha da aprendizagem, mas há […]
Qual foi a última vez que a afetividade foi a protagonista e o conteúdo o coadjuvante (o que não quer dizer desimportante) em um processo de aprendizagem?
Temos inúmeros exemplos de tentativas sinceras de alçar o afeto ao topo da montanha da aprendizagem, mas há ainda mais relatos de que no primeiro aperto, ele é sacrificado. Metas, avaliações, vestibular. Não há espaço para a afetividade. Não?
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São muitos os que já colocaram luz na importância do afeto no desenvolvimento humano. Baruch Espinoza, filósofo holandês que viveu em meados de 1600, dedicou boa parte de sua obra à discussão sobre o afeto e a sua influência no nosso corpo e mente. “A maneira como somos afetados pode diminuir ou aumentar a nossa vontade de agir”, disse em Ética III. Dentre as muitas reflexões oferecidas por este filósofo, entendemos ser impossível desconectar os processos de aprendizagem da afetividade. Aprendemos o que nos emociona.
Infelizmente, observamos em diversos ambientes de aprendizagem que há falta de afeto. Em todos os sentidos, em todos os setores. Em casa, na rua e na escola. Não pegue isso como uma crítica, um dedo apontado a alguém que já tem seu dia esmagado pelas horas. Mas temos a sensação de que metas, avaliações e vestibulares são hoje ainda mais protagonistas do que antes. Ouvimos: “É urgente recuperar o tempo perdido”. “A defasagem de conteúdo vai gerar um atraso inimaginável.”
Mas, de que adianta um acesso invejável ao conteúdo se não fazemos ideia de como usá-lo no mundo? Como coloco todo esse ‘saber’ à serviço da humanidade se não sei me comunicar, me relacionar. Se não sei sentir? Do que adianta correr atrás de um conteúdo atrasado se estamos todos devastados. O que vamos realmente aprender?
Reportagens e mais reportagens, pesquisas e mais pesquisas sobre as dificuldades emocionais latentes e gritantes no ambiente escolar. São relatos de falta de concentração, depressão, ansiedade, agressividade e violência. Isso não é novidade, sabemos, mas certamente foram agravadas pelas consequências da pandemia.
O distanciamento social resultou em uma situação completamente inusitada em que, da noite para o dia, sem preparo prévio, tivemos que lidar com todas as atividades sendo realizadas no mesmo espaço: nossa casa. Os limites e as atribuições profissionais, do cuidado da casa e dos filhos ficaram confusos. Passado o período de restrição, tivemos a complexa tarefa do retorno ao presencial. Também sem qualquer preparo prévio, voltamos. Após dois anos de pandemia, o emaranhado de experiências vividas em nossas casas e o distanciamento social impactou nas nossas habilidades de socialização. Todos fomos afetados, cada um de um jeito.
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Os reflexos desse contexto na aprendizagem podem ser vistos nas primeiras avaliações diagnósticas de desempenho dos estudantes. Segundo a Avaliação Amostral da Aprendizagem dos Estudantes, uma pesquisa da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, a pandemia provocou um grande estrago na aprendizagem escolar. Isso sem contar a evasão de crianças e jovens devido à falta de internet para acompanhar as aulas online (de acordo com a Unicef 3,7 milhões de alunos matriculados não tiveram acesso às aulas), desinteresse pelo formato apresentado, ambiente ao qual estavam inseridos durante as aulas, desemprego dos pais ou cuidadores. Será mesmo que este é o momento de focarmos nas metas, avaliações e vestibulares? Resolveremos nossas questões educacionais com aulas extras aos sábados?
Para nós, a resposta é não. Um não bem alto e com letras maiúsculas. Cuidemos da saúde mental de toda a comunidade escolar. É a oportunidade perfeita para agirmos na estrutura ainda tão engessada de ensino. É a ‘desculpa perfeita’ para a mudança. E não é uma mudança de perfumaria, aquela para ‘apagar um incêndio’. Ela tem de ser profunda, coletiva, diária, humana e de base. É a vez e a hora da aprendizagem afetiva.
Não serão medidas desarticuladas e ações pontuais desprovidas de planejamento que resolverão a questão da saúde mental. É preciso a elaboração de um programa de acolhimento e reintegração social de todas as personagens do ecossistema escolar com o objetivo de minimizar os impactos psicológicos da pandemia e do distanciamento social. Sim, um desafio significativo e que deveria fazer parte do projeto político-pedagógico (PPP), revisado periodicamente. Precisamos, dentro das escolas, de pessoas pensando na saúde mental de toda a comunidade. Observando a dinâmica da escola, das classes, das pessoas, atuando e propondo ações práticas e efetivas.
Desta forma, a aprendizagem afetiva conseguirá desconstruir a rotina dura e impessoal presente nas escolas, inserindo a comunidade escolar no processo de construção do saber. A aprendizagem afetiva enxerga as individualidades, reconhece a importância do autoconhecimento para o processo de aprendizagem e reforça significativamente o papel das relações sociais na construção do saber individual e coletivo.
A aprendizagem afetiva potencializa e transforma o ambiente escolar. Ela ressignifica papéis e estruturas, lança olhares mais profundos e cuidadosos e promove maior integração, participação genuína e envolvimento. É a vez e a hora de rompermos com certas estruturas sufocantes. É a vez e a hora de arriscarmos. É a vez e a hora de praticarmos a afetividade. Vamos começar?
Mariana Gonzalez é fundadora da Rima Aprendizagem. Jornalista, historiadora e empreendedora. Apaixonada pela comunicação afetiva e pesquisadora de processos de aprendizagem e inteligência coletiva.
Tatiana F. Laganá é fundadora da Rima Aprendizagem. Física, doutora em astronomia e pedagoga. Autora e revisora de materiais didáticos e atua como consultora em inovação em educação.