Professor de pós-graduação em educação: currículo na PUC-SP e secretário municipal de Educação da cidade de São Paulo (2001-2002)
Publicado em 11/08/2021
Estabelecer uma guerra à escola pública gratuita é afrontar a Constituição brasileira
O Brasil demorou 500 anos para realizar sua tarefa de ter todas as crianças nas escolas. Tarefa republicana por excelência, ela foi procrastinada pelo Império e pelas primeiras Repúblicas até o limite do século 20 Em números gerais, a partir do início deste século 21, temos 98% das crianças nas escolas de educação fundamental. O ensino, podemos dizer, se universalizou.
É interessante notar que a crítica à escola e ao seu aparato cresceu muito a partir do início do século 21, com a universalização iniciante da escola. Qual pode ser um dos motivos desta reclamação generalizada?
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Todos sabemos que números significativos da universalização foram atingidos. Embora o analfabetismo funcional ainda grasse por todo o país, já há um índice de 98% de matrículas nas escolas públicas de educação fundamental e o acesso às creches cresce significativamente em todo o país.
Ou seja, mais do que nunca, nossas escolas deviam ser prestigiadas, estimuladas, aparelhadas e financiadas pelo Estado. Afinal nossa escola republicana é a mais atrasada do continente sul-americano, para não comparar com a Ásia ou Europa.
Desde então, as escolas começam a ser bombardeadas de todos dos lados. Todos apanham: o currículo (desmotivador), os professores (despreparados), os métodos (arcaicos), as instalações (inadequadas), os alunos (alheios). Ninguém escapa do massacre de críticas. Só a Finlândia se salva.
“Antigamente a escola era boa”, dizem alguns. “Enquanto a escola era para poucos, ela era boa”, dizem outros. Nesse sentido, a escola era um privilégio de poucos. Qualidade para poucos não é qualidade, é privilégio. Qualidade tem que ser para todos.
Por que então que, em dado momento (marquemos o início deste século 21 para balizar a questão), a escola deixou de parecer boa e ficou tão questionada? Exatamente quando a escola se democratizou ela começou a parecer algo tão desnecessário? Estranha lógica da perversidade.
As soluções trazidas para a escola a partir dessa lógica perversa – chamada agora, sobretudo, de incompetente e desnecessária – se dão de múltiplas maneiras: acabar com a escola pública, privatizando tudo; substituir os professores por aulas online dadas por animadores de auditório; criar um sistema de aulas todas disponíveis na web; instaurar regime de homeschooling, ou matricular seus filhos em escolas americanas ou canadenses – para morarem fora depois de formados.
Sendo assim, o rumo dessa lógica é que se estabeleça uma nova modalidade de aprender que prescinda da escola, para construir um país gelatinoso e sem sonhos no qual apenas se busque o sucesso individual acoplando cada aluno à sua máquina digital, com a internet das coisas e das pessoas.
Leia: Um dos criadores do Pisa analisa o investimento público em educação no Brasil
No início de 2020, temos aproximadamente 52 milhões de jovens em escolas, públicas ou particulares. Para onde irá esse espólio de seres humanos sem rumo a não ser as próprias iniciativas e de suas famílias (nem sempre elas mesmas formadas na escola básica)?
A renda média dos brasileiros que se utilizam da escola pública não é a mesma da Finlândia, tão decantada como produtora de resultados para a comparação de nossos alunos com os alunos que compõem os países da OCDE, com uns poucos com a distribuição perversa que tem o Brasil. Para onde irão tais estudantes? Assim, com que recursos básicos terão livros, acessos a laboratórios, orientadores de pesquisas, organizadores de estudos do território ou grupos de trabalhos colaborativos da comunidade?
Não vale responder que na internet tem tudo. Nem se diga que a web oferece redes de aprendizado colaborativo para os que estão carentes de cultura de alianças ou de equipamentos e bandas largas para levar adiante dados e filmes e gráficos e experimentos e simulações e bibliotecas mundiais.
Leia: A imitação do Brasil, por Alexandre Sayad
As causas são complexas, mas algumas saltam à vista. Portanto, vou destacar uma que parece fundamental. A escola pública e democrática é, por exemplo, uma invenção republicana. Data da criação da república. A saber, vem da ideia de que o conhecimento é uma coisa pública. Todos têm direito de aprender porque todo ser humano consegue aprender. Nem precisamos ir a Amós Comenius, nem a John Dewey, nem a Anísio Teixeira, mas vamos à nossa Constituição de 1988, ao seu capítulo III, art. 205, que diz:
“A educação, direito de todos e um dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
“igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
“liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber…”
“gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais…”
A lei continua: “com garantia do padrão de qualidade”, mas aqui paramos voltando ao raciocínio. A quem interessa, pois? A quem não quer a República, ou seja, que a coisa pública e o interesse de todos não sejam a pauta da organização da sociedade.
Todavia, não acontece um programa sólido e operacional de educação sem a profunda clareza do que é o projeto de nação que se tem em mente. Sermos uma nação para quê? Como será sua coesão social, como se dará sua distribuição de bens e riquezas, como será sua cultura respeitada e livre? Como serão nossas relações com as demais nações? Como serão seus valores de vida social? A escola é o espaço da constituição dessa identidade e de sua crítica.
*Fernando José de Almeida é professor de pós-graduação em educação: currículo na PUC-SP e foi secretário municipal de Educação da cidade de São Paulo (2001-2002).
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