Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)
Publicado em 04/06/2020
Crianças eram acordadas de madrugada e enfrentavam estrada de pó e espinho até chegar ao ponto do ônibus escolar
Num janeiro de há uns vinte anos, eu seguia de Toritama para Serra Talhada, a caminho de Cajazeiras. À medida que se avança para o interior, na proximidade do sertão, o clima fica cada vez mais seco, e a paisagem mais árida. Na madrugada da passagem pelo Agreste, o que mais me chamou a atenção foi o cortejo de crianças, mochilas nas costas, esperando o transporte escolar.
Conversei com algumas e com a mãe de uma delas. A filha havia sido acordada cerca das cinco horas. Todos os dias, era retirada do leito de madrugada. Cerca de uma hora, caminhava por estradas de pó e espinhos, até ao ponto onde o ônibus a esperaria, quando fossem sete horas.
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No ônibus, as crianças dormitavam. O cansaço marcava o semblante de todas. Segui o trajeto do ônibus escolar. Aos trancos e barrancos, após meia hora de padecimento, num trajeto de buracos e alguns pedaços de estrada, eis-nos chegados a um prédio, que denotava abandono e a que chamavam… escola.
Na Brasília daquele tempo, crianças moradoras em São Sebastião, por não haver “vaga” – o conceito de vaga era um absurdo, um dos sutis modos de negar o direito à educação – eram obrigadas a enfrentar transporte para outros locais do Distrito Federal. Crianças de tenra idade eram transportadas em ônibus alugados pela secretaria de educação. Os alunos mais velhos enfrentavam o transporte público, alguns precisando de quatro passagens, para chegar à… “escola”.
Mensalmente, se desperdiçava um milhão e seiscentos mil reais. Certamente, os funcionários responsáveis pelo transporte escolar ainda não haviam tido tempo de ler o documento orientador da política educacional da sua secretaria. Nele, Anísio sugeria uma gestão de espaços educacionais alternativos ao da “escola da vaga”. Dizia que a escola deveria ser o bairro, a comunidade – onde não era preciso transporte escolar.
No dia seguinte, participei numa mesa de debate sobre evasão escolar. O momento alto do debate foi provocado por uma oportuna intervenção vinda da plateia, referência a uma notícia, que dava conta da deleção de um empresário de ônibus, que atingia esferas de poder. Falta de ônibus impedia alunos de estudar em Rondônia. Algumas crianças já tinham perdido dois anos letivos. E o governo dizia que a situação ficaria normalizada. Era apenas mais um exemplo de corrupção, que grassava no transporte, na merenda escolar – e não só.
Naquele tempo, havia muita gente que pensava que escola era um prédio e que, dentro dele, era suposto que as crianças aprendessem algo, que justificasse acordar de madrugada e percorrer a via-sacra de estradas do interior. Não radicaria aí uma das causas da evasão? Aproveitei para lançar o debate: Por que é preciso transporte escolar? O que aprendem os jovens dentro de um edifício chamado escola, que não possam aprender fora dele?
Uma “especialista” do departamento de transporte escolar da secretaria interrompeu a leitura do seu power point, para me invectivar: O senhor doutor é um europeu, não consegue entender. Não vê que, aqui, é preciso levar as crianças para a escola?
Retorqui: Mas, não foi um pernambucano que escreveu que aprendemos uns com os outros mediatizados pelo mundo? Não consta que o vosso conterrâneo tenha escrito “mediatizados por um prédio. Escolas são pessoas, não são prédios, minha senhora”.
Um esgar de desagrado e de desdém atravessou a face da “especialista”. Ignorou a minha interpelação. Passou, também, a ignorar a minha presença. E essa secretaria de educação nunca mais me convidou para “palestrar”.
José Pacheco é educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal).
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