Alexandre Le Voci Sayad é jornalista, educador e escritor. Mestre em inteligência artificial e ética pela PUC-SP e apresentador do Idade Mídia (Canal Futura)
Publicado em 21/05/2020
Em tempos de fechamento, a escola está aprendendo a se abrir – e enxergar por meio de fraturas expostas nos muros da educação formal
São cada vez mais raras as ortodoxias na vida contemporânea. Até agora estão restritas, no Brasil secular, a economistas e educadores. Os primeiros acreditam que a secura dos gastos públicos é o caminho indivisível para o desenvolvimento do país. Os segundos, que a aprendizagem ainda é uma possibilidade exclusiva da escola acumuladora de conhecimento, um templo de pilares greco-romanos. Após o “terremoto” pelo qual estamos passando, como mesmo definiram os economistas, de dogmáticos só sobrarão esses (e com um purismo ainda discutível).
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Segundo a Unesco, 90% dos estudantes do mundo estão sem frequentar a escola durante a pandemia da covid-19. O tal terremoto, que resultou no confinamento social, sacudiu a educação formal. Como consequência, quebrou alguns vitrais pelos quais a escola enxergava o exterior, e este penetrava, criando uma atmosfera demasiado mística e hermética – um mundo próprio, desconexo da realidade.
A ideia de que, em uma sociedade em rede e digital, o conhecimento está potencialmente espalhado mora mais no discurso de Pierre Levy do que no pragmatismo cotidiano de muitas escolas, que ainda ostentam aulinhas de cinquenta minutos e métodos industriais. Tendências vão, diretrizes vêm, e a instituição escolar ainda cultiva a soberba de que tem direito hereditário sobre o que é ou não conhecimento. Sofre, sobretudo, com a capacidade de implementação de novos processos; contra ataques, se fecha ainda mais. Existem, sim, modelos acima da média, mas lutam para se multiplicar.
O ensino remoto, um pesadelo para muitos, então se impôs verticalmente. Ampliou o fosso entre as escolas mais preparadas e com mais recursos, daquelas com menos prontidão e equipamentos, como conexão de banda larga (segundo dados do MEC, a maioria das públicas não tem; já a maioria das particulares têm).
No campo docente, ficou inadvertidamente para trás quem só trabalha com material didático engessado, além de lousa. O calcanhar de aquiles da formação tornou-se uma fratura exposta: quem tem intimidade com a tecnologia rapidamente reestruturou o programa pedagógico como um modelo de sala invertida, que alterna estudo individual em casa, com encontros remotos. Conseguiu, por meio de temas do cotidiano, atrair a atenção do estudante. Esse perfil de professor-mentor, antenado ao universo dos alunos, com formação sólida e fluência digital, se transformou hoje em uma espécie de Moisés, que abriu o Mar Vermelho: tornou-se o mentor que sempre vislumbrara. Um profeta cujos sonhos se tornaram realidade.
Numa outra frente, o enxame de lives tem aberto uma oportunidade para as “atualidades” entrarem de vez no debate escolar – uma demanda mal resolvida no currículo desde o tempo da primeira LDB (Lei de Diretrizes e Bases). Sendo assim, o que não faltam são personagens interessantes, debatendo temas que ardem de tão quentes, e que agora burlam o dogmatismo da sala de aula para chegar ao seu público.
O que se tem notado como consequência desse vitral em estilhaços é que muitos estudantes têm aprendido, apesar da falta de uma estratégia política. Alguns deles, se engajado mais com relação à cultura que os cerca (museus virtuais, bibliotecas digitais, sites até então desconhecidos ou games online).
Sendo assim, a realidade que a educação vive hoje diz menos respeito à tecnologia e mais ao sonho de Anísio Teixeira, e muitos outros, de integrar escola, comunidade e cidade com o propósito da aprendizagem. Ironicamente, em tempos de fechamento, a escola está aprendendo a se abrir.
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Aliás, a tecnologia é um caminho para isso e está deixando de ser o bode expiatório exclusivo da educação mequetrefe. Afinal, seria tudo culpa dela? Vivemos uma experiência educativa bem diferente daquela proposta antes da crise, pelo ensino a distância que substituía e aniquilava a experiência social e o acolhimento da escola – um porto seguro para milhões de crianças e jovens. Hoje, com tecnologia, podemos derrubar seus muros, mas manter o acolhimento.
Em tempos de cultura fluida, a ortodoxia também passa a ser algo controverso. Para espanto geral, o Estado deve engordar, e a escola tende a emagrecer. O processo de jogar fora os penduricalhos e se ater em ser o espaço de socialização, de desenvolvimento socioemocional e de curadoria de conteúdo não será indolor, mas necessário. Ou seja, a escola como base, e o mundo como quintal da aprendizagem.
Em tempos de insegurança, milagres se provam inexistentes. Mas há uma vereda promissora, construída no presente. Terá continuidade desde que recursos estejam bem alocados na formação dos docentes e estrutura escolar – é o que mostram as políticas públicas eficientes nos países da OCDE de educação desenvolvida. Essa sim é uma questão inconveniente para a ortodoxia de alguns economistas.
*Alexandre Sayad é jornalista e educador, diretor da ZeitGeist. É colunista de A Gazeta do Povo e autor do livro Idade Mídia – A Comunicação Reinventada na Escola, entre outros. Atualmente serve como chairman da aliança mundial da Unesco para educação midiática (GAPMIL). É membro do conselho consultivo do programa Educamídia e do conselho científico da revista acadêmica Comunicar (Universidad de Huelva, Espanha).
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