NOTÍCIA
Bolsonaro exonera membros da sociedade civil eleitos democraticamente para a composição do órgão e ainda altera seu funcionamento. Entenda o que está em jogo e a importância do Conselho para a sociedade brasileira
Publicado em 20/12/2019
O principal órgão de proteção às meninas e meninos, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), está ameaçado. Em setembro, o presidente Jair Bolsonaro publicou o decreto presidencial 10.003/2019, que dispensa todos os representantes da sociedade civil eleitos democraticamente em dezembro de 2018 e alterava o seu funcionamento, dando poder absoluto ao Estado.
Contudo, tal medida já sofre reações, como o pedido de suspensão do decreto ao Supremo Tribunal Federal (STF) por Raquel Dodge, em 16 de setembro, já no fim de seu mandato como procuradora-geral da República e o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 608/19 enviado em novembro, que anula o decreto de Bolsonaro. Nesta quinta, 19, o ministro do STF Luís Roberto Barrosa atendeu ao pedido de Dodge e suspendeu provisoriamente o decreto presidencial.
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Para Raquel Dodge, a mudança prevista pelo presidente é inconstitucional por violar o direito de participação popular direta, sendo assim, um retrocesso. “1. É inconstitucional a redução do número de assentos destinados à sociedade civil em conselho deliberativo, gerando desequilíbrio representativo profundo, a ponto de desvirtuar a função do órgão colegiado, por ofensa aos princípios da igualdade e da participação popular direta. 2. A destituição desmotivada de todos os atuais membros, com mandato em vigor, eleitos por processo eleitoral legítimo, fere o princípio da segurança jurídica. 3. As mudanças na forma de escolha dos membros e na periodicidade das reuniões prejudicam o regular desempenho da função deliberativa do órgão”, defende a então procuradora no documento destinado e acatado pelo STF.
Com a decisão de Barroso, os conselheiros retornam a seus mandatos, a eleição dos representantes das entidades da sociedade civil deverá ser realizada por meio de assembleia específica e disciplinada pelo regimento interno e deverá ser garantido o custeio dos deslocamentos dos conselheiros que não moram em Brasília para as reuniões que voltam a ser mensais. “Os retrocessos democráticos, no mundo atual, não decorrem mais de golpes de Estado com o uso das armas. Ao contrário, as maiores ameaças à democracia e ao constitucionalismo são resultado de alterações normativas pontuais”, escreveu o ministro na decisão.
Em um país com cerca de 60 milhões de crianças e adolescentes entre zero e 19 anos e tendo cerca de 61% das meninas e os meninos vivendo na pobreza e/ou sendo privados de um ou mais direitos, conforme apresenta o estudo do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) Pobreza na Infância e na Adolescência divulgado em 2018, precarizar o Conanda, criado pela Lei n. 8.242 de 12 de outubro de 1991 para uma gestão compartilhada entre governo e sociedade para, entre as atividades, definirem juntos políticas nacionais de promoção, proteção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes, fiscalizarem a sua execução e gerirem o Fundo Nacional da Criança e do Adolescente (FNCA), traria grandes retrocessos ao país.
“O Brasil é um dos países que viola cotidianamente o direito de crianças e adolescentes. Proteger nossas crianças e adolescentes é assegurar o direito à vida e o respeito enquanto pessoas em desenvolvimento e que devido ao ciclo da vida encontram-se em situação de constante vulnerabilidade social, econômica, emocional, educacional e saúde”, alerta a assistente social Magali Regis Franz, diretora do CFESS (Conselho Federal de Serviço Social). Para Magali, o Conanda possui papel fundamental para impedir essas “desproteções” a partir de políticas públicas “que atendam às necessidades de toda a sociedade e não somente de uma parcela privilegiada da população”, defende.
Em meio a tais ameaças advindas pelo decreto presidencial, em entrevista à Educação, a advogada e representante do Instituto Alana no Conselho, Thaís Dantas explica que a extinção do órgão não é tão simples. “O que dá segurança jurídica ao Conanda é o fato dele ter sido criado por lei de maneira específica. Para ele ser extinto, é necessária uma alteração legislativa, o que só pode acontecer por meio de aprovação no Congresso Nacional. No entanto, deve-se reconhecer que o Conanda vem sendo sistematicamente enfraquecido, assim como os demais mecanismos de participação social e controle social dos direitos da criança e adolescente”, conta a advogada que enxerga o cenário de esvaziamento dos espaços de participação social como uma grande perda para a democracia brasileira.
Vinculado atualmente à Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), o Conanda nesses quase 30 anos é responsável por diversos avanços, como a aprovação do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil e a elaboração do Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente, cujo em ambos o Conselho também tem a função de acompanhar e deliberar metas para as propostas se concretizarem, sem contar a defesa e promoção de direitos para os povos e comunidades tradicionais, crianças e adolescentes em situação de rua, jovens LGBTI, dentre outras realidades que vivem os meninos e meninas brasileiros.
“É importante entender que, mesmo ele não sendo responsável pelo atendimento direto à criança e ao adolescente, é ele o guardião desses direitos na medida que edita as diretrizes, as políticas e é também quem atua para garantir o orçamento para a criança e adolescente que é requisito chave para garantia desses direitos”, revela a advogada do Alana.
Sobre o Fundo Nacional da Criança e do Adolescente (FNCA), oriundo de recursos destinados para ações e projetos na área em que o órgão atua, segundo o vice-presidente do Conanda e representante da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) no conselho, eleito em dezembro de 2018 para o mandado 2019-2020 e exonerado com o decreto presencial, Antonio Lacerda Souto conta que ano passado o fundo possuía R$ 13 milhões.
“Esse dinheiro está perdido porque não conseguimos deliberar. Desde o começo do ano o governo nos asfixia. O Conanda está parado. As nossas pautas não são prioridades neste governo. O próprio presidente já anunciou que trabalho infantil não é problema [em live no Facebook em 4 de julho de 2019 Bolsonaro afirmou “trabalhando com nove, dez anos de idade na fazenda, eu não fui prejudicado em nada. Quando um moleque de nove, dez anos vai trabalhar em algum lugar, está cheio de gente aí: trabalho escravo, não sei o quê, trabalho infantil”]. Então nossos planos nacionais viram uma lacuna. A gente vinha lutando para que no lugar de construir mais sistemas prisionais, a gente pudesse construir mais escolas e que a gente tivesse políticas públicas nas favelas e comunidades pobres para essas pessoas no futuro terem oportunidade”, desabafa o vice-presidente que volta a seu posto com a posição de Barroso do STF.
O interesse do governo em enfraquecer um órgão tão importante como o Conanda, na opinião de Antonio Lacerda ocorre por discordâncias ideológicas. Enquanto as entidades civis do Conselho, segundo ele, defendem uma atenção aos LGBTI, são contra a educação domiciliar e à Escola sem Partido, buscam disseminar o debate de gênero nas escolas, dentre outras questões, o ministério de Damares Alves vai na linha oposta, sendo considerado ultraconservador. “Com isso, o governo começou a alegar que custava muito caro manter a participação da sociedade civil. Nós entendemos como uma desculpa para desmobilizar, desmontar e caçar o mandato de todas as 14 entidades que faziam parte do Conanda. Com o decreto presidencial, quem decide quem preside o Conselho é o presidente da República e não mais a sociedade civil. Na última eleição, mais de 100 entidades concorreram e 14 titulares foram escolhidas. Agora todos fomos caçados”, desabafa Antonio.
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Os brasileiros esquecem, e na maioria dos casos não fazem ideia de que os direitos hoje garantidos a todos e todas são frutos de longas lutas de participação social. Antes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e da própria Constituição Federal, ambos elaborados com participação civil, vigorava o Código de Menores, criado na década de 70 e que via a criança e o adolescente como objeto. “O Código de Menores criava diferenciações entre aqueles que deveriam ser cuidados e aqueles que deveriam ser objetos de intervenção por estarem em situação irregular, especialmente crianças e adolescentes em situação de rua ou que haviam cometido ato equivalente a crime. Isso acaba por reproduzir problemas estruturais em nossa sociedade, especialmente a discriminação por motivos de raça e classe”, aponta a advogada Thaís Dantas.
Porém, a partir da Constituição Federal de 1988, a advogada explica que houve uma alteração: reconhecer crianças e adolescentes não como objetos, mas sujeitos de direitos que estão em uma situação peculiar de desenvolvimento e por isso devem ter uma proteção integral diferenciada. “A partir disso, a atuação do Estado não deve ser de tutela da criança e adolescente somente quando ele já está em situação de vulnerabilidade. Deve ser uma atuação que promova direitos e que previna violações e que coloque toda criança e adolescente no mesmo patamar como merecedor de absoluta prioridade. Nesse cenário, há previsões no Estatuto da Criança e do Adolescente que são protetivas na garantia dos direitos deles”, explica.
Sobre discordâncias ideológicas, em 23 de agosto de 2018, o então candidato à Presidência, Jair Bolsonaro atacou: “o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] tem que ser rasgado e jogado na latrina. É um estímulo à vagabundagem e à malandragem infantil.”
Neste momento do país em que ainda é necessário reconhecer os direitos das meninas e meninos, Thaís Dantas alerta que “é fundamental fortalecer a compreensão de que colocar crianças e adolescentes em primeiro lugar não é uma escolha e sim um dever. Ainda mais nesse caso específico do decreto presidencial em que há um desrespeito à criança e ao adolescente e uma violação à nossa Constituição Federal.
Procurado pela Educação, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), por meio de sua assessoria de comunicação declarou por e-mail que a redução da participação civil no Conselho está alinhada aos cortes nos ministérios que aconteceram logo que Bolsonaro tomou posse “e não motivada por um propósito deliberado de enfraquecer a representação da sociedade civil, que se mantém paritária com o governo em todos os colegiados em que é legalmente admitida. Não se demonstra qual o prejuízo que restará às políticas públicas da infância e adolescência na redução numérica do Conselho, mormente quando o decreto estabelece que o colegiado poderá convidar órgãos públicos e entes privados, para a participação e qualificação dos debates realizados em seu âmbito. Portanto, o argumento de não existência ou de inadequado funcionamento do Conanda provocado pelo decreto 10.003 de 2019 não se sustenta.
A seguir, confira a resposta do MMFDH:
“Por sua importância política e técnica para a política de direitos da criança e do adolescente, que se consubstancia no leque de atribuições do Conanda – Conselho Nacional dos Direitos de Crianças e Adolescentes, dentre elas, a de elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84,caput, incisos IV e VI, alínea “a”, da Constituição, e tendo em vista o disposto na Lei nº 8.242, de 12 de outubro de 1991, alterou, por meio do decreto n° 10.003 de 2019, o decreto nº 9.579, de 22 de novembro de 2018, para adequar o funcionamento do Conanda à reforma administrativa efetuada pela Lei n. 13.844, de 18 de junho de 2019, oriunda da Medida Provisória n. 870, de 1º de janeiro de 2019, visando a uma maior eficiência da administração federal e à melhor aplicação dos recursos públicos, reduziu o número de ministérios de vinte e nove para vinte e dois.
…Dessa forma, a redução do número de membros do Conanda de 14 para nove do poder público e nove da sociedade civil foi consequência da redução do número de ministérios e não motivada por um propósito deliberado de enfraquecer a representação da sociedade civil, que se mantém paritária com o governo em todos os colegiados em que é legalmente admitida. Não se demonstra qual o prejuízo que restará às políticas públicas da infância e adolescência a redução numérica do conselho, mormente quando o decreto estabelece que o colegiado poderá convidar órgãos públicos e entes privados, para a participação e qualificação dos debates realizados em seu âmbito.
Portanto, o argumento de não existência ou de inadequado funcionamento do Conanda provocado pelo decreto n° 10.003 de 2019 não se sustenta. O decreto cumpre o dispositivo legal de representação paritária do poder público e da sociedade civil, nas áreas de políticas públicas envolvidas na política de direitos da criança e do adolescente, de modo a assegurar que tais direitos sejam priorizados e efetivados nas políticas, programas e projetos elaborados e implementados pelo governo federal, em parceria com estados e municípios.
Além de estar totalmente comprometido com o Estado democrático de direito, com a legalidade e com a fiel observância e o exato cumprimento da Constituição Federal de 1988, o governo brasileiro está firmemente comprometido com os princípios e direitos individuais e coletivos por ela assegurados. Entre esses princípios constitucionais, se destaca o do pluralismo político, recordado no preâmbulo da Constituição e erigido em fundamento da República pelo seu art. 1º, V.
A fim de cumprir o mandamento de pluralismo consignado na Constituição, foi publicado o decreto nº 10.003/2019 prevendo a reestruturação do Conanda. A realidade aponta para a urgência em garantir a participação das entidades não governamentais de âmbito nacional, de atendimento dos direitos da criança e do adolescente para a composição do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda no biênio 2020-2021, com o diferencial da proposta de regionalização, bem como a distribuição das vagas as entidades não governamentais de âmbito nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente.
É com este propósito de assegurar o pluralismo político no Conselho que o governo federal tem envidado esforços para fortalecer a política e a otimização da atuação dessas instâncias num país continental, com uma pluralidade política e social sem igual.
A edição do decreto n° 10.003 de 2019 não só reafirma a importância da participação social no Conanda para a política de direitos da criança e do adolescente, como também assegura que ela seja possibilitada para todas as organizações da sociedade civil, por meio de um processo de seleção amplo e transparente.
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